SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100024 

    CULTURA
    PROSA

     

    Pela bola sete

     

     

    Plínio Marcos

     

     

    (Última Hora de SP - Edição de 12/1/1969. Página 12. Caderno 1)

    O Bereco era devagar. Não queria nada com o batente. Seu negócio era sinuca. E nisso ele era cobra. De taco na mão fazia embaixada. Conhecia os trambiques do jogo e sabia como entrutar o parceiro. Então estava sempre com a bufunfa1 em cima. Sabe como é o lance. Sempre tem um panaca pra desconhecer o nome do mandarim. E o Bereco ajudava. Se vestia como um Zé Mané qualquer. Neca de beca tranchana. Isso espanta o loque. O babado era se fazer de besta. Tirar onda de operário trouxa. Desses que dá um duro do cacete de sol a sol, se forra prato feito, e na folga vai fazer marola em boteco. Daí sempre tem um malandrinho pra tomar os pixulés do otário. Se fazer passar por coió era o grande trambique do Bereco. Com essas e outras ele engrupia até muito vagau escolado. Até no Bar Seleto de S. Vicente, ponto certo dos grandes tacos do mundo, o Bereco deu esse deschavo. E grudou. Pensaram que ele era pão ganho e ele tomou o sonante dos pintas. E assim o Bereco ia remando seu barco em maré mansa.

    Mas é como diz o Zagaia:

    - Um dia é da caça outro do caçador.

    E se Zagaia diz é que é. Todo mundo sabe disso. Porém acontece, que como não dá pro nego tocar fogo no mar pra comer peixe frito, tem que botar pra quebrar. E o Bereco ia firme. Só ganhando. Um pato atrás do outro era depenado. Sem dó. Que nas paqueras da vida é cada um pra si. Mas chegou a virada.

    Era fim de mês. Dia de pagamento da Refinaria de Petróleo. O Bereco que estava por dentro se picou pra2 Cubatão. Se plantou num salão dos bordejos da refinaria e ficou na moita. Logo foi baixando a freguesia. Tudo de capacete de lata. A batota estava contentona de envelope no chorro. E o Bereco só espiando o lance. De vez em quando tirava um paco de nota pra pagar uma coca-cola. Era a milonga. Logo um capacete de lata mais afobado se assanhou com o dinheiro do majura. Sentiu a moquinha pegar e quis tomar. Mediu o Bereco e foi no xaveco da pinta. O Capacete de Lata3 tinha um joguinho enganador. Desses que é bom em mesa de sindicato. Mas levou fé em si e nenhuma no Bereco. Encarnou no moço:

    - Como é parceiro? Quer fazer um joguinho?

    O Bereco não deu pala.

    - Jogo nada.

    O Capacete de Lata cercou.

    - A leite de pato.

    O Bereco deixou andar.

    - Se é de brinquedo vamos lá.

    E começou o jogo. O Bereco sentiu o parceiro e tirou de letra. O capacete não sabia nada. O Bereco deu o engano. Os primeiros dez mirréis, os segundos e os terceiros o Bereco empurrou pro trouxa. E se fez de bronqueado. Partiu pros vinte, pros cinquenta e pro cem mil. O Capacete de Lata estava se deitando. Era seu bilhete premiado. Com o dinheiro que ganhou do Bereco e o seu ordenado já tinha um milheiro no porão. Daí o Bereco selou:

    - O tudo ou nada.

    O Capacete de Lata nem balançou.

    - Um milhão na caçapa.

    Todo mundo de botuca ligada na mesa. O Capacete saiu pela cinco. Errou. O Bereco se tocou que o xereta4 estava nervoso. Teve que maneirar. Cozinhar o galo. Senão ia ficar escrachado o perereco. Errou na cinco que estava cai não cai. E o joguinho ficou de duas muquiranas. Só na bola da mesa. O Bereco não embocava. Só colhia as mancadas do capacete de lata. Se o bruto metia uma três. O Bereco fingia que era sem querer, e deixava uma sinuca de bico pro inimigo. E na catimba do Bereco e no virador do Capacete de Lata o jogo foi comprido pacas. Os sapos nem chiavam. Seguravam as pontas. Era tudo torcedor do Capacete de Lata. Trabalhadores da refinaria de petróleo de Cubatão. Mas o Bereco nem estava aí. Já contava com o dinheiro da caçapa. Aí chegaram na bola sete. Só a sete estava na mesa. E o jogo estava por ela. O Bereco folgado, muito à vontade encostou a negra na parede. O Capacete de Lata tremia, suava. Estava com o motor batendo acelerado. Fez mira. Começou a pensar que tinha quatro filhotes no seu chatô, aluguel de casa, rango, escola, remédio e os cambaus. Pensou no que ia dizer pra mulher. Com a cabeça cheia de minhocas deu na cara da bola. Uma chapada. A negra rolou para o lado, a branca pra outro. O Capacete de Lata sentiu um alívio. Pelo menos acertou na bola. Mas o recreio durou pouco. Quando as bolas pararam a sete estava na boca da botija. Pedindo pra cair. E a branca no meio da mesa. Ninguém por mais cego que fosse errava aquela. O Bereco sorriu. Deu a volta na mesa devagar. Bem devagarinho. Enrustido, sem dar bandeira ia gozando as fuças do otário. O Capacete de Lata só faltava abrir o bué. Deu a volta e ficou atrás da caçapa em que a bola ia cair. O Bereco deu uma dica de leve.

    - Vai secar?

    O Capacete de Lata quis falar mas não deu. Se engasgou. O Bereco não se flagrou no olhar do panaca. Se tivesse visto as bolas de sangue nas botucas do capacete de lata ia ficar cabreiro. Não viu e fez a presepada. Passou giz no taco com calma. Se ajeitou na mesa, com calma. Aí levantou a mira. Viu a bola branca, a sete, a caçapa, atrás da caçapa um revólver quarenta e cinco, atrás do revólver o Capacete de Lata. O Bereco quis saber:

    - Que é isso meu compadre?

    O Capacete de Lata espumou, babou e resmungou.

    - Se meter essa sete eu te mato.

    O Bereco viu logo que era jura. Se fechou em copa. Deu na bola de esgulha, o taco espirrou. Relou na sete e as duas ficaram na berba da caçapa. Coladas. O Bereco fingiu que não havia nada. Deu a?5 - Ficou pra você compadre.

    O Capacete de Lata guardou o revólver, treta, a raiva e tudo. Foi de cabeça. Deu no taco e bimba. A branca e a negra mergulharam juntas. O Bereco só ficou olhando. As lágrimas correram nos olhos do Capacete de Lata. Estava tão embaixo que não dava pra pegar a arma e aprontar o salseiro. Só deu um lamento.

    - Tenho quatro bacuris.

    O Bereco fez que não escutou. Recolheu a grana. E saiu de fininho. O Capacete de Lata saiu logo atrás. Ninguém se mexeu. Passou um tempo e veio o estouro. Meio mundo foi ver as rebarbas. No meio da rua o Capacete de Lata estava estarrado. Tinha o revólver na mão e uma bala na orelha. Se acabou. O Bereco só teve pena de nunca mais poder dar grupo em trouxa do Cubatão. Perdeu um grande pesqueiro.

     

     

    Plínio Marcos (Santos, 1935 - São Paulo, 1999) foi palhaço, camelô, ator, dramaturgo, diretor e escritor. Além da produção em teatro, que gerou obras-primas como Barrela, Navalha na carne, Dois perdidos numa noite suja, Querô, entre outras, escreveu contos, novelas, reportagens, memórias e crônicas. Foi traduzido e encenado em francês, espanhol, inglês, italiano e alemão. Parte de sua obra foi adaptada para cinema e TV. Atualmente, o conjunto de suas obras teatrais está sendo preparado para edição de um livro pela Funarte, com organização e aparato crítico de Alcir Pécora.

     

     

    1. Termo atualizado; no original de jornal consta "bofunfa".
    2. Termo atualizado; no original de jornal consta "pro".
    3. Opta-se nesta crônica em deixar a expressão capacete de lata em maiúscula, por se tratar de nome de personagem; exceto uma das expressões que já se encontrava em maiúscula, conforme original de jornal, as demais sofrem a atualização aqui observada.
    4. Termo atualizado; no original de jornal consta "chereta".
    5. Da forma como está no original de jornal.