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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200002 

    TENDÊNCIAS

     

    Um mundo chamado Cariri

     

     

    Marcelo Martins de Moura-Fé

    Geógrafo, professor do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri (Urca), diretor executivo do GeoPark Araripe, superintendente do Museu de Paleontologia da Urca. E-mail: marcelo.mourafe@urca.br

     

     

    A Reunião Regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência -, volta ao Ceará em 2017, mais precisamente entre 02 e 06 de maio, quando a SBPC e a Universidade Regional do Cariri (Urca), com o apoio de instituições de ensino superior, proporcionarão uma oportunidade imperdível para, dentre outras coisas, que se conheça o Cariri cearense. O objetivo deste artigo é apresentar um pouco dessa incrível região do país.

    Obviamente, naquilo que é inerente a cada um de nós em sua vivência particular, temos uma visão peculiar dos lugares que conhecemos, com os quais nos identificamos, que tomamos como nossos. Comigo não é diferente e aqui falarei do meu Cariri, de um mundo que tenho conhecido intensamente através do GeoPark Araripe.

    Antes de mais nada, falar do Cariri é versar essencialmente sobre história, sobre vida. Uma história natural de milhões de anos, emoldurada pelos monumentais processos de junção e separação (ainda em curso) de dois continentes siameses, geográfica e culturalmente: América do Sul e África.

    Essa remota história geológica, intensa como ela foi (e é), ainda tem registros demarcados na paisagem do nordeste brasileiro e, no Cariri, fomentou a estruturação geológica da maior bacia sedimentar interior do território brasileiro, a bacia sedimentar do Araripe, a qual constitui um verdadeiro livro a céu aberto, onde cada formação rochosa conta um capítulo dessa história. E essa história encontra-se com a vida.

    No Cariri estão dois dos principais depósitos fossilíferos do Brasil e do mundo: as formações Crato e Romualdo, com incríveis exemplares expostos no Museu de Paleontologia da Urca, na cidade de Santana do Cariri, ponto obrigatório de qualquer visita, legado do eterno professor Plácido Nuvens (1943-2016).

    Na formação Crato, constituída principalmente por calcários laminados, são encontrados os mais variados grupos de seres vivos, como também é abundante o número de fósseis por metro quadrado, bem preservados com tecidos moles, comprimidos ou em forma de impressões. Já a formação Romualdo é constituída por folhelhos com níveis de concreções carbonáticas, em muitas das quais são encontrados fósseis, a maioria peixes, mas também com a presença incrível de pterossauros, quelônios, crocodilomorfos, dinossauros e plantas.

    Juntas, essas formações são consideradas um Konservat Lagerstätte, ou seja, seus estratos apresentam fósseis em excelente estado de preservação e compõem parte do singular patrimônio natural do Cariri cearense. É a história da vida do planeta incrustada na alma da região

    Linhas escritas de forma caprichosa desenharam nesse "livro", na sequência, o soerguimento, para mais de 900 metros de altura, das rochas da bacia do Araripe na forma de um majestoso modelado que emoldura a região do Cariri, a chapada do Araripe. Um gigante erguido ao curso de milhares de anos que traz identificação ao Cariri, enchendo os olhos dos visitantes e o peito de seus habitantes de um forte sentimento de pertencimento.

    A chapada e seu suave e importante declínio topográfico setentrional, tal qual uma respeitosa saudação ao povo Cariri, propiciou a convergência das águas subterrâneas que vem das chuvas que caem na região, que se infiltram e brotam sob a forma de nascentes. As águas vieram, desceram a Chapada e regaram abundantemente a história humana do Cariri, modelando a paisagem, redesenhando suas terras, aprofundando seus solos e fazendo brotar uma vegetação densa, berço de uma fauna diversificada.

    Águas que fizeram da biodiversidade do Cariri um patrimônio do país, demarcado e reconhecido por meio da implantação da primeira floresta nacional do Brasil, a Flona do Araripe, em 1946.

    Nesse contexto, os primeiros habitantes da região, o povo Kariri, pôde se estabelecer e erigir sua própria história, permeada por lutas, conquistas, perdas, transformações, chegadas e despedidas de filhos e filhas, de sonhos e tradições, de mistérios e ciência, de fé e força, indígena, quilombola, europeia, nativa, uma história de vida que não cessou, que não cessa, que não para.

    O povo encontrou a natureza do Cariri, se encantou e ficou, deslumbrado com tantas belezas de um verdadeiro oásis no contexto semiárido nordestino, um cenário que seria fonte de inspiração para a criação de diversas lendas que hoje formam a mitologia da região.

    A história colonial do interior do nordeste brasileiro só chegou ao sertão do Cariri no início do século XVIII, dando início ao seu povoamento tardio com a instauração do ciclo do couro, percorrendo o Caminho das Boiadas, apagando o rastro das trilhas indígenas no caminho das águas, trilhas outrora percorridas pelo homem Kariri (ou a sociedade indígena Kariri).

    E esse povo cresceu, mudou e abraçou essa natureza, maltratando, cuidando, vivenciando. E dessa relação histórica, dialética, humana, surgiu na região um verdadeiro nicho endêmico cultural, se é que existe essa expressão.

    São incontáveis expressões culturais associadas à natureza, presentes direta e indiretamente nas mais diversas formas de artesanato (com madeira, calcário, com barro cru ou cozido, com palha), nos mitos sobre castelos e princesas, lendas associadas às rochas, relevos, às águas dos rios e nascentes, contadas por meio da história oral há várias gerações. É a relação de identidade regional com a chapada do Araripe, nas letras das canções, nas rimas dos cordéis, nas danças, nas ferramentas, na lida diária dos trabalhadores, nas roupas, nos calçados, nas casas, nas palavras e nos gestos das pessoas. O ano de 2016 marcou os 10 anos do GeoPark Araripe, o primeiro geoparque das Américas. Membro da Rede Global de Geoparques, o GeoPark Araripe situa-se em um território notabilizado tanto por seu patrimônio natural (geodiversidade e biodiversidade), quanto por seu significativo patrimônio cultural (arqueológico, artístico, arquitetônico e histórico), exemplificados em nove geossítios abertos para visitação.

    O GeoPark Araripe tem como desafio particular a imprescindível abordagem holística dessa complexa e rica região. Ao longo desses 10 anos de existência, mudou a forma de se ver o Cariri, alicerçado em dois objetivos fundamentais: (1) promover a conservação do patrimônio natural (geodiversidade e biodiversidade) e do patrimônio cultural associado; em consonância com a (2) promoção do desenvolvimento socioeconômico sustentável das comunidades locais, a priori aquelas situadas próximas aos geossítios, através da geoeducação e do geoturismo, objetivando a identificação, aproximação e cogestão desses espaços.

     

    HISTÓRIA E VIDA

    Essa abordagem considera a essência da região, complexa, indecifrável na sua totalidade, indescritível para aqueles que a sentem. O Cariri é de seu povo e do mundo também, que precisa ter a oportunidade e o privilégio de beber de suas águas, de sua história e da vida que pulsa sob o ritmo das bandas cabaçais, que faz dançar as crianças, que rejuvenesce os mais velhos, que agrada ao paladar com sua culinária, que deslumbra o olhar através das suas paisagens, texturas, formas e cores.

    É o Cariri de Bárbara de Alencar, do Padre Cícero, da beata Maria de Araújo, de lutas e das resistências, da Fundação Casa Grande, da fé, de Violeta Arrais, de Alemberg Quindins e Rosemberg Cariry, da arqueologia, dos Aniceto, da Escola de Saberes, da arte, do turismo, do beato Zé Lourenço.

    O Cariri das lendas, da música, do soldadinho do Araripe, de Espedito Seleiro, dos milagres, das romarias, da paleontologia, da ciência, do maneiro pau (um tipo de dança comum nas comunidades rurais do Cariri), do mestre Noza, da xilogravura, das paisagens, dos reisados, das águas e dos pau d'arcos, de um mundo que não se pode deixar de conhecer. Tal qual Meca para os muçulmanos, para mim, o Cariri deve ser para todos os brasileiros, um lugar sagrado de vida e história, que deve ser visitado, obrigatoriamente, pelo menos uma vez na vida, sob a pena indelével de viver uma vida incompleta.

    Estas linhas são dedicadas à força, à poesia e à alegria de Rosiane Limaverde.