SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200007 

    MUNDO
    EDUCAÇÃO

     

    Ensino em alto mar desafia limites para formação de cidadão do mundo

     

     

    Germana Barata

     

     

     

    Vinte e um dias de aulas diárias até a primeira parada em uma das quase duas dezenas de portos pelo mundo. A sala, nada tradicional, acompanha o vai e vem do balanço do mar, com algumas interrupções para amenizar o enjoo ou admirar a passagem de baleias ou golfinhos. Nos intervalos, os alunos se revezam para manter as condições de higiene, o leme em curso e a sociabilidade saudável. Este é o Class Afloat (http://www.classafloat.com/), projeto de educação canadense que, desde 1984, já impactou a vida de mais de 1800 estudantes com idades de 16 a 19 anos.

    Na edição deste ano, o grupo é formado por 60 estudantes, oito professores e 12 membros na tripulação que dividem o espaço do majestoso Gulden Leeuw, um veleiro holandês de 230 pés, com um mastro de 40 metros de altura, que ao longo de um semestre a um ano percorre 20 mil milhas náuticas. "Para mim, esta é claramente uma das mais poderosas experiências educativas do mundo", afirmou David Jones, presidente do programa há seis anos.

     

     

    O Class Afloat nasceu na Nova Escócia, no Canadá, e busca cumprir o currículo educativo nacional, mas com ousadia e criatividade. Inúmeros experimentos são realizados a bordo, como a coleta de amostras de animais na água, o monitoramento do tempo e das marés. São oferecidos ainda cursos optativos como fotografia, mergulho, jornalismo, música, línguas e filosofia. Em terra firme, as experiências com as diversas comunidades trazem ainda mais riqueza para explorar a história, geografia e cultura de cada local.

    Este ano, Jones conta que os jovens passaram por Tristan da Cunha, uma das ilhas mais remotas do mundo no sul do oceano Atlântico, com seus menos de 300 habitantes, passearam de camelo pelas dunas de Marrocos e ancoraram na costa de Lisboa, em Portugal.

    O ano letivo em alto mar é para poucos, não apenas porque seu custo é alto (US$ 39 mil por ano ou US$27 mil por semestre), mas porque é voltado para aqueles que querem ser desafiados, sair de sua zona de conforto e ter uma rotina de trabalho intenso. Há a possibilidade de bolsas de estudo e de participantes estrangeiros que queiram embarcar no projeto e um período de treinamento e preparação antes do embarque.

    Das 9h às 19h os alunos recebem cinco horas de aulas, se revezam em postos de observação, atividades de navegação, aproveitam o tempo para o lazer, estudo, socialização e refeições. Das 19h30 às 22h há mais tempo de atividades extra como filmes e karaokê, antes das luzes se apagarem. Nas madrugadas, os estudantes ainda se revezam para os postos de observação noturna.

    Jones conta que a seleção de professores e estudantes é cuidadosa porque é preciso ter o perfil ideal para embarcar no Class Afloat.

     

    SUPERANDO OS DESAFIOS

    Lisa Marcos planejou por dois anos dar aulas a bordo do Class Afloat, até conseguir entre os anos de 2006 e 2008. Recém-formada em biologia e filha de velejadores, ela reconhece que a experiência tocou sua vida pessoal e profissional profundamente. Para ela, a conexão com os alunos é fundamental para despertar talentos, motivar para os estudos e dar segurança no primeiro ano fora de casa. Para esses adolescentes estar longe de casa e lidar com o enjoo é um desafio contínuo", diz. Dentre outras dificuldades, ela menciona a convivência em comunidade em um pequeno espaço e de forma intensa, além do distanciamento do estilo de vida confortável em terra firme.

    Concorda com ela Aleya McKellar, aluna de Lisa em 2007. "Alguns estudantes nunca tiveram que considerar outra pessoa além deles próprios. Então, quando tinham que cuidar do navio (espaço comum), de seus pertences e considerar como suas ações poderiam impactar os outros, isso significava um enorme desafio", conclui. "Existem regras claras de convivência que tornam a vida em comunidade mais fácil", conta Lisa, descrevendo, por exemplo, a arrumação dos espaços, o limite de comida por pessoa e a proibição de consumo de bebida alcóolica, que pode significar o desligamento do programa.

     

     

    DESCOBERTAS EM ALTO MAR

    Aleya retornou ao Class Afloat como professora de biologia com o desejo de impactar a vida de outros jovens. Ela conta que sua participação no programa foi decisiva para sua escolha profissional, para melhorar sua autoestima e liderança, pois se considerava bastante tímida e imatura. "Você aprende muito sobre si mesmo e sobre os outros quando todas as complexidades da vida lhe são tiradas", descreve. A professora transfere o aprendizado dessa experiência para o ensino tradicional.

    "Os professores não apenas me engajaram no trabalho escolar, mas também me fizeram querer me engajar na comunidade e participar como uma cidadã global", conclui. Para ela, o ambiente seguro e previsível da educação tradicional está impactando os estudantes de forma negativa, uma vez que eles não se sentem desafiados e não são preparados para lidar com o estresse e com as adversidades. "Realmente me preocupo com alguns alunos porque não acho que estejam preparados para os desafios que terão que enfrentar como adultos", afirma. "Um tema recorrente entre os colegas do Class Afloat é que muitos de nós não optamos pelo caminho convencional, mais fácil".

     


    Clique para ampliar

     

    NAUFRÁGIO NO BRASIL

    Em 2010, um acidente há 550 km do litoral do Rio de Janeiro terminou por afundar o barco Concordia, mas nenhum dos 64 tripulantes ficou ferido. Eles foram resgatados pela Marinha Brasileira depois de 40 horas de espera nos botes salva vidas. O constante treinamento de navegação e normas de segurança possivelmente foram decisivos para amenizar as consequências. O acidente quase resultou no fim do programa. Felizmente, conta David Jones, percebeu-se que o impacto do programa era muito mais positivo do que os riscos e optou-se pela continuidade. À época, o veleiro havia sido desenhado para ser um navio-escola. Após o naufrágio do Concordia, o programa conta com o aluguel de barcos como o Gulden Leeuw, construído em 1937 e remodelado em 2010.

    David Jones conta que o programa está sendo modificado. A ideia é ter uma nova base da escola em outro país, talvez a África do Sul, para que parte dos estudantes tenha uma experiência mais longa em terra firme durante metade do ano escolar, enquanto outra turma está em alto mar. No dia 20 de maio a equipe de 68 membros vai chegar ao seu destino inicial, Nova Escócia, no Canadá, com um roteiro que terá contribuído para ampliar literalmente os horizontes e os laços de seus participantes. Na bagagem, além de incontáveis lembranças, um desejo pelo novo, pela adaptação e pelos desafios. O próximo desafio que os participantes do Class Afloat terão que enfrentar é lidar com a vida em terra firme depois que o programa chegar ao fim.