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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo Apr./Jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200008 

    MUNDO
    BIOLOGIA

     

    Tirando as corujas da escuridão

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

    A coruja do campanário ou coruja da igreja (Tito alba) é uma espécie que ocorre em quase toda América Latina. De hábitos noturnos, ela prefere fazer ninhos em buracos de árvores, fendas em rochas e também em torres de igrejas, daí esse nome popular. Ela se alimenta de pequenos mamíferos e aves, morcegos, ratos e insetos grandes.

     

     

    Para caçar fica camuflada em galhos de árvores. Com visão noturna e audição extremamente aguçadas, quando percebe qualquer movimento, ela se aproxima silenciosamente até cercar e capturar sua presa entre suas garras. Mais leve do que a de outras aves, a pelagem das corujas permite que ela mova as asas quase sem ruído, o que facilita esses ataques sorrateiros e, quase sempre, fatais para as presas. Essa é uma das características que, ao longo do tempo, ajudou a alimentar mitos e crendices sobre as corujas, muitos deles associados ao mau agouro e à morte.

    Para os astecas, incas e maias, essas aves são símbolo da morte e destruição, motivo pelo qual podem ser facilmente encontradas em representações do deus asteca da morte, Miclantecuhtli. Até hoje, algumas pessoas acreditam que as corujas podem arrancar os olhos e o coração de uma pessoa, enquanto outros ainda acham que as corujas trazem má sorte. Como essas histórias são criadas e por que persistem? Para Jack Clinton Eitniear, diretor do Centro de Estudos de Aves Tropicais, sediado no Texas, Estados Unidos, essas histórias têm origem em um certo temor em relação aos animais de hábitos noturnos, como as corujas. "Muita gente sabe de alguma história de alguém que foi atacado por uma coruja ao se aproximar de seu ninho e é provável que esses episódios ajudem a perpetuar os mitos", lembra. Tirando essas crenças e mitos, o público geral têm pouco conhecimento sobre as corujas e mesmo entre os ornitólogos é consenso que há várias espécies que ainda não foram estudadas, especialmente as que vivem no México, América Central e do Sul.

    É essa lacuna que o livro Los búhos neotropicales, diversidad y conservación tenta preencher. Organizado pelos pesquisadores Paula Enríquez e José Luis Rangel-Salazar, do Departamento de Conservação e Biodiversidade do Colegio de la Frontera Sur (Ecosur), no México, a obra foi publicada em 2015 em formato digital, de acesso livre (http://bibliotecasibe.ecosur.mx/sibe/book/000012610). "O livro reúne o conhecimento sobre biologia e ecologia das corujas distribuídas em cada um dos países da região neotropical (menos Peru, Honduras e Costa Rica). Também chama a atenção para as ameaças a essas espécies presentes em cada país e as estratégias de conservação para protegê- las", conta Enríquez. Esse ano, após revisão e atualização, a obra será publicada no formato impresso, em inglês, pela editora Springer Nature, especializada em literatura científica.

    Para o professor José Carlos Motta Junior, do Laboratório de Ecologia de Aves (Labecoaves) da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do capítulo sobre corujas do Brasil, a importância da publicação é ser um veículo de divulgação de ciência sobre um animal ainda sujeito a crendices – os textos adotam uma linguagem acessível ao público leigo – e, ao mesmo tempo, uma ferramenta para ampliar conhecimentos sobre essas aves: "No Brasil algumas espécies de corujas menos conhecidas podem estar fora de listas de animais ameaçados exatamente por não se ter quase nenhuma informação sobre elas", acredita.

     

     

    PÁSSAROS DA NOITE

    As corujas são um bom exemplo dos processos de diversificação das espécies. Atualmente estão descritas um total de 250 espécies em todo o mundo, distribuídas em todos os ambientes, com exceção da Antártida e das ilhas oceânicas. A maioria das espécies são arbóreas e de hábitos noturnos, mas existem espécies terrestres, que caçam e se alimentam durante o dia. Seu tamanho também varia consideravelmente. A espécie com menor tamanho tem 14 centímetros ou menos (Micrathene whitneyi) e a maior chega a 80 centímetros de altura (Bubo bubo). Apesar de estarem dispersas em quase todos os continentes, a maioria vive em áreas tropicais, sendo que um terço em áreas neotropicais.

    São as únicas aves com olhos dirigidos para frente, com visão estereoscópica altamente desenvolvida que, a despeito da pequena mobilidade, apresentam um amplo campo visual porque podem mover a cabeça até 270 graus. A estrutura dos olhos permite enxergar com baixas intensidades de luz. Algumas espécies desenvolveram um sistema de audição com orelhas assimétricas, provavelmente para melhorar as estratégias de localização de presas em ambientes noturnos com vegetação densa. Podem capturar animais vertebrados de vários tamanhos. No estômago ocorre a separação de pelos e ossos que, em forma de pelotas, são regurgitados e, em geral, ficam depositados debaixo dos ninhos. A coleta e análise dessas pelotas pode gerar valiosas informações sobre a dieta dessas aves.

    Seus hábitos noturnos impõem bastante dificuldade de observação e registro, por isso várias espécies ainda não foram suficientemente estudadas. As corujas apresentam grande valor ecológico para os ecossistemas em que habitam porque ocupam o último nível da cadeia trófica. O conhecimento sobre essas populações é uma medida para regular o tamanho das populações de suas presas, informação fundamental para o manejo florestal.

     

    AMEAÇAS

    Tanto no México quanto nos demais países da América do Sul e Central, a principal ameaça para as corujas é o desflorestamento, fator que reduz tanto a disponibilidade de locais para construírem seus ninhos como a quantidade de alimento. Além disso, em algumas espécies, a alimentação está diretamente relacionada com a reprodução, ou seja, sem a quantidade de alimento suficiente, as fêmeas deixam de colocar ovos. No caso do México, Enríquez e Salazar apontam que os processos de fragmentação de áreas florestadas têm provocado mudanças na distribuição e variação das espécies. Algumas têm se adaptado a áreas parcialmente urbanas dependendo de fatores como vegetação, disponibilidade de alimentos e lugares para construírem ninhos.

    Em outras localidades, entretanto, muitas espécies correm risco de extinção. A Norma Oficial Mexicana (NOM-059) considera atualmente 18 espécies de corujas em alguma categoria de risco, número que representa 53% das espécies do país. Os pesquisadores destacam, entretanto, que ainda há pouca informação sobre as tendências populacionais dessas espécies em risco.

    O avanço da fronteira agrícola, causa de desmatamentos em vários países da América Latina, inclusive no Brasil, impacta diretamente na disponibilidade de fontes naturais de alimentos como, por exemplo, insetos que compõem a dieta de algumas espécies de corujas. É o que tem acontecido mais recentemente no Panamá, especialmente na vertente do Pacífico, onde avançam plantações de arroz. O mochuelo ferruginoso é um clássico consumidor de insetos diurnos, mas a aplicação de inseticidas em áreas próximas dos bosques onde essa coruja vive, afeta diretamente a quantidade de alimento. O cultivo extensivo de arroz propicia também a proliferação de ratos silvestres e os raticidas utilizados para combatê-los afetam a população de corujas por acumulação de praguicidas em seu corpo. Por outro lado, a redução na população de corujas favorece o aumento da população de ratos, abrindo espaço para o desenvolvimento de enfermidades como o hantavírus, como já aconteceu nos distritos de Aguadulce, Parita, Guararé e Tonosí, na Península de Azuero, no Panamá.

    Individualmente, os fatores que ameaçam essas aves variam muito. Na Argentina, por exemplo, pesquisadores apontam a caça, em muitos casos devido a superstições, a eletrocussão em fios de alta tensão e, principalmente, o atropelamento em rodovias e estradas. Isso se deve provavelmente ao deslocamento das aves no solo ao perseguirem suas presas e à visão em túnel, que impede as corujas de perceber os veículos se aproximando quando cruzam uma rodovia perpendicularmente. Na Bolívia é uma prática comum indivíduos serem capturados para confecção de trajes folclóricos como máscaras elaboradas com o animal inteiro. "Ainda que estas aves provavelmente sejam parte de ritos e crenças desde muito tempo, com certeza nunca se utilizou a quantidade de animais como atualmente. Como não existem estudos sobre a magnitude real dessas práticas, nem tampouco sobre a mortalidade das corujas que são eliminadas por serem consideradas de mau agouro, é possível que estejamos subestimando o impacto que esses fatores têm sobre a população dessas aves", afirmou Diego Méndez, da Asociación Armonía, uma ONG dedicada ao estudo e proteção da fauna boliviana.

    Para Enríquez, a comunicação da ciência é essencial tanto para promover a conservação das espécies que estão ameaçadas, como para aumentar a compreensão sobre essas aves pelo público leigo, diluindo essa aura de mau agouro em torno das corujas que pode, de fato, impactar em suas populações. "A comunidade científica tem uma responsabilidade social e parte dessa responsabilidade é a comunicação da ciência", aponta.

     

    MODIFICANDO PERCEPÇÕES

    Estudos recentes indicam que a percepção positiva sobre as corujas, especialmente por parte da população rural, varia conforme a espécie e seus hábitos. As que comem ratos, por exemplo, são vistas como benéficas. Um estudo de 2004 avaliou o nível de conhecimento sobre corujas por parte de estudantes, professores e habitantes de uma zona rural em Valdivia, sul do Chile. Os resultados indicaram pouco conhecimento e uma atitude negativa em relação a essas aves. Curiosamente, mais de 80% da população acredita que as aves trazem benefícios porque comem ratos. Por outro lado, outra pesquisa junto a agricultores mostrou que eles consideram as corujas aves de mau agouro. Com isso, muito animais são mortos quando "cantam" perto das casas dessas pessoas. Para Ricardo Figueroa, da Faculdade de Ciências Florestais e Recursos Naturais da Universidade Austral, em Valdivia, o fortalecimento de programas de educação ambiental poderia contribuir para desenvolver e consolidar uma percepção e atitude positivas para com as corujas em mais habitantes rurais. "Esses programas poderiam basear-se essencialmente nos serviços ecossistêmicos prestados por essas aves, por exemplo o controle da população de roedores de importância zoonótica", acredita.