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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo Apr./Jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200011 

    ARTIGOS
    AGROECOLOGIA

     

    Educação em agroecologia: reflexões sobre a formação contra-hegemônica de camponeses no Brasil

     

     

    Romier da Paixão Sousa

    Engenheiro agrônomo, doutor em estudos sobre o meio ambiente pela Universidad Pablo de Olavide, na Espanha. Educador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará e vice-presidente norte da Associação Brasileira de Agroecologia (2015-2017)

     

     

    Em geral, as instituições de educação agrícola de ensino médio e superior têm formado profissionais baseados em um modelo agrícola produtivista procurando a obtenção de altos rendimentos, através da mecanização agrícola, a aplicação intensiva de agrotóxicos, uso de fertilizantes quimicamente sintetizados, o uso de variedades de plantas melhoradas artificialmente, e a utilização de técnicas "modernas" de manejo, acompanhando as orientações gerais dos processos de modernização da agricultura mundial (1). Mas, os impactos sociais, culturais, ambientais e econômicos têm mostrado a necessidade de repensar esses processos formativos (2).

    Além disso, há um caminho significativo de resistência, a partir da construção do enfoque agroecológico para a formação de técnicos, pesquisadores e camponeses, em especial nas ciências agrárias. As experiências de organizações de camponeses têm resultado em promoções diferenciadas da forma de fazer educação no espaço rural desde os anos 1970. O caso da educação rural alternativa, que tem sido realizado no México, Nicarágua, Brasil, Cuba e em outros países, é muito importante neste contexto.

    Iniciativas como essas estiveram presentes em toda a região, como uma forma de resistência política, social e pedagógica impulsionada por diversas organizações e movimentos sociais. Porém, assim como no Brasil, essas experiências geralmente são de caráter não formal, caracterizadas por desenvolver-se fora das estruturas do Estado. São trabalhos como: "Capacitação para o trabalho, a vida e a saúde; educação popular para definir demandas sociais e econômicas específicas: cursos, seminários, oficinas, intercâmbios tecnológicos, feiras culturais, publicações impressas, vídeos etc" (3). Essas ações estão baseadas geralmente em uma educação popular (4).

    Outro momento de resistência chave foi através dos serviços de assessoramento técnico, realizados a partir da chamada "agricultura alternativa", que sempre estiveram associados aos processos de educação não formal, baseados nas pedagogias populares, em especial àquelas ligadas às ações das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, mas com pouca ligação às instituições de educação formal.

    Esses movimentos de resistência foram a base inicial para processos formativos mais estratégicos estabelecidos pelos diferentes movimentos sociais. Os camponeses e suas organizações queriam ter o controle social e político da formação das crianças e dos jovens camponeses, levando em consideração o problema que a formação tradicional nas escolas rurais do Estado trazia (isso onde havia escolas), como por exemplo a negação do campo como um espaço de vida e trabalho.

    Na origem dessas iniciativas mais formais, apresentam-se dois importantes movimentos alternativos de educação profissional. Um deles se manifesta com a fundação das Escolas Famílias Agrícolas (EFAs). Outra experiência de formação por alternância são as Casas Familiares Rurais (CFRs) que estão ligadas, entre elas, através de associações e redes regionais de Centros Familiares de Formação por Alternância (Ceffa) (5). Nos últimos anos começaram a trabalhar com a formação profissional de nível médio associado aos governos estadual e federal. São instituições coordenadas por associações de camponeses e o principal público são as crianças e jovens vinculados a essas associações.

    O outro movimento de educação alternativa no campo surge da crítica da concepção, fundamentos e práticas que guiaram a educação rural e agrícola. Na década de 1990, os movimentos sociais, em particular o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conduziram uma proposta para estabelecer o paradigma da "educação do campo" (6). Mas, esses movimentos de construção de alternativas educacionais têm uma proximidade no Brasil e se fundem no conceito da "educação do campo", conforme descreve Queiroz e colaboradores (7):

    "Compreendemos que, no Brasil, os centros que trabalham com a pedagogia da alternância, nasceram das necessidades dos agricultores de uma educação que seja um instrumento de luta e de organização para a conquista e a permanência na terra. Entendemos ainda que as Escolas Famílias Agrícolas são escolas vivas, que estão sendo construídas baseadas nas associações de agricultores, sindicatos de trabalhadores rurais, comunidades cristãs, cooperativas, assentamentos da reforma agrária e/ou outras organizações e movimentos sociais. E, por fim temos consciência que, no Brasil, eles formam parte da longa caminhada da construção da educação do campo, como bem mostrou a II Conferência Nacional de Educação do Campo" (7, p. 29).

    A educação do campo nasce sobre uma lógica de mobilização dos movimentos camponeses, com uma proposta de desenvolver novas metodologias de ensino, revalorizar os saberes populares e propor políticas públicas diferenciadas para a população do espaço rural. Intensos processos de lutas sociais protagonizadas pelos movimentos sociais rurais; os enfrentamentos com a força ofensiva neoliberal no país, estabelecida na década de 1990 e experiências educativas inovadoras são a base para o avanço da construção coletiva do paradigma da educação do campo. A educação do campo é um "fenômeno da realidade brasileira atual", sendo considerada uma "categoria de análise" das práticas e políticas de educação dos trabalhadores e camponeses em seus territórios (8).

    Este processo de institucionalização da educação do campo tem progredido em diferentes direções, com a criação de espaços de gestão específicos nas estruturas dos governos (secretarias, coordenações, grupos de trabalho etc), a criação de cursos específicos e, mais recentemente, uma articulação entre as ações da educação do campo com as políticas de agroecologia começam a ganhar força de discussão a partir das demandas dos movimentos camponeses.

    Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é refletir sobre o processo de avanço da educação profissional agroecológica articulada ao movimento da educação do campo no Brasil.

     

    A CONTRA-HEGEMONIA NA CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO COM ENFOQUE AGROECOLÓGICO

    É neste ambiente de contradições e em uma lógica contra-hegemônica de educação que os movimentos sociais e grupos de pesquisadores/professores das universidades, institutos federais e organizações da sociedade civil vêm fortalecendo ações práticas e políticas como resistência. Apesar do contexto de políticas neoliberais em vigor, em 1998 se estabeleceu o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), fortemente influenciado pelos movimentos em relação à atenção de suas demandas de educação no meio rural.

    O Pronera começou como um programa de governo, ligado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com uma estratégia de apoiar cursos de alfabetização e incremento do nível educativo primário nos assentamentos rurais (9). Esses cursos eram realizados, em princípio, principalmente pelas universidades.

    Porém, posteriormente, surgiu a preocupação com uma extensão rural comprometida com o processo de reforma agrária e ganhou força a proposta dos cursos de formação de nível técnico, para a formação de profissionais para atuar a partir de uma compreensão da dinâmica e funcionamento dos assentamentos rurais, assim como para apoiar os movimentos sociais e as gestões das organizações sociais, como associações e cooperativas.

    Os cursos formais com enfoque agroecológico começam a surgir a partir de relações de colaboração entre os movimentos sociais, as universidades e escolas agrotécnicas, apoiados pelo Pronera. Os primeiros cursos foram de técnicos em agropecuária com enfoque agroecológico e tinham como objetivo formar profissionais para atuar na assessoria técnica dos movimentos sociais, como diz Molina e Jesus (10): "Foram priorizados cursos relacionados ao apoio à produção, na perspectiva de contribuir com a mudança da matriz tecnológica das áreas reformadas, como, por exemplo, os cursos técnicos no âmbito da agroecologia e da administração de cooperativas" (10, p.36).

    Os movimentos sociais do campo demandavam cursos que pudessem articular com seus princípios de formação, construídos ao longo dos anos no âmbito do movimento. Em geral, não foi uma tarefa fácil introduzir esses princípios nas lógicas positivistas das universidades e escolas agrotécnicas, em especial das ciências agrárias, por serem historicamente conservadoras em suas formas de ensino e pensamento de formação. Geralmente, esses cursos foram motivados pelas demandas dos movimentos em determinados territórios associados a grupos de professores das universidades que já trabalhavam, de alguma forma, com educação nos assentamentos rurais.

    Porém, Michellotti e Guerra (11) expressam que nos projetos de cursos de ciências agrícolas apresentados pelo Pronera, ao menos duas questões inovadoras têm sido frequentes: 1) a agroecologia como base de uma nova matriz científica-técnica; 2) mudar os tempos e espaços educativos como base de uma nova matriz metodológica (10). No entanto, estes dois elementos presentes na grande maioria dos projetos executados precisam ganhar qualificação, com o risco de serem tratados como reducionistas e estáticos. O caráter agroecológico do curso não pode ser enxergado apenas como a introdução de algumas questões isoladas. Também não pode ser considerado como uma simples substituição de algumas técnicas convencionais por outras "alternativas". É necessário, no mínimo, construir uma formação baseada nas diferentes dimensões da agroecologia.

    Esses cursos foram ampliados com o passar dos anos. Dados de Molina e coautores (12) comprovam que, durante seus 15 anos, o Pronera/Incra formou 7.700 trabalhadores de nível médio e 3.120 trabalhadores na graduação. Destes, 775 foram formados especificamente nos cursos de agroecologia. Houve 18 cursos de nível médio no modo de educação de jovens e adultos (EJA), níveis técnicos médio integrados e de graduação em agroecologia. Além dessa listagem específica, muitos projetos eram de outros cursos, mas com ênfase em agroecologia (13).

    Em trabalho recente de Molina e colegas (12) confirma que a formação em cursos com enfoque agroecológico, com apoio do Pronera/Incra, ganhou espaço entre as instituições de ensino profissional e universitário. Mas, nas regiões em que as dinâmicas de assentamentos rurais estavam associadas a grupos de professores e instituições de ensino, esses processos foram mais intensos. Diversos cursos surgiram com ênfase em agroecologia, como os de agrofloresta, agropecuária, agronomia, residência agrária, cooperativismo e agroindústria (Figura 1).

     

     

    Uma das aprendizagens no processo de construção dos cursos em agroecologia nessas instituições foi o papel do apoio do Pronera e sua importância na promoção de reflexões coletivas sobre o ensino clássico nas escolas, em especial de ciências agrárias, questão verificada por Santos e coautores (13) em uma avaliação mais ampla:

    Ao financiar cursos formais de educação superior e técnica, o Pronera contribui para uma reflexão crítica do ensino tradicional transmitido nas instituições públicas e comunitárias. No caso específico do ensino de ciências agrárias, estes cursos formais executados em parceria com os assentados - os protagonistas do campo e da reforma agrária abrem espaço para um verdadeiro diálogo de conhecimentos entre a universidade e os camponeses, provocando uma revisão crítica dos currículos tradicionais (13, p.10).

    Os cursos apoiados pelo Pronera/Incra permanecem como um importante catalisador de experiências de formação alternativas, mas com dificuldades de se manter após a conclusão dos projetos. No entanto, parece ter influenciado as instituições de ensino que têm sido desenvolvidas de acordo com a constatação citada anteriormente.

    Com a lógica de formação de profissionais alinhados às bases filosóficas e práticas da educação do campo, os movimentos sociais e sindicais nos diversos territórios brasileiros passam a demandar cursos para as instituições de ensino profissional. O trabalho feito por Molina e colegas (12) faz uma avaliação crítica das diferentes experiências de formação com enfoque agroecológico conduzido por instituições formais associadas a movimentos sociais, apontando quatro questões importantes na construção dos cursos de agroecologia em relação à educação do campo:

    1) a necessária crítica e ruptura com os fundamentos epistemológicos da ciência moderna e, em especial, das ciências agrárias, que confi guram seu caráter tecnicista, estabelecendo diálogo de saberes e experiências acumuladas e o protagonismo dos educandos-camponeses na produção do conhecimento novo a partir desses cursos;

    2) a importância da organização metodológica dos cursos ser concebida a partir da alternância, garantindo a presença do território camponês, como tempo e espaço fundamental de aprendizagens; bem como uma estratégia pedagógica que promova e garanta uma gestão compartilhada entre os docentes, educandos e suas organizações camponesas, cultivando e promovendo espaços e tempo de auto-organização dos educandos;

    3) é relevante, na perspectiva do acúmulo de forças, que os cursos não fiquem restritos a experiências pontuais e marginais nas instituições de ensino, sob o risco de serem sufocados e descaracterizados pelas perspectivas hegemônicas de formação em ciências agrárias; importa, pois, a partir dos cursos do Pronera, desencadear novas atividades acadêmicas, no âmbito do ensino; da pesquisa e da extensão, que contribuam com a promoção da nova matriz tecnológica baseada na agroecologia e na soberania alimentar;

    4) é fundamental que fortaleçam as relações entre eles e os movimentos sociais e sindicais parceiros, com intervenções coletivas na realidade, via engajamento concreto nas perspectivas de desenvolvimento rural compatível com o projeto camponês de campo" (12, p. 160-161).

    Com base nestas premissas, os autores supracitados expõem as características principais desejáveis em cursos que consideram os princípios epistemológicos da educação do campo e da agroecologia:

    a) Problematização da realidade dos educandos, no sentido de resgatar, sistematizar e valorizar os espaços de vida como possibilidades de produção de conhecimento significativo (...). b) Aprofundamento das problemáticas identificadas, mobilizando os conhecimentos técnico-científicos para contribuir com a resolução dos problemas encontrados nas comunidades rurais e/ou outros espaços de problematização. A mobilização e a produção de conhecimentos com enfoque agroecológico são centrais para evitar a superficialidade das reflexões e proposição de soluções generalistas aos problemas identificados. c) Proposição e resolução dos problemas identificados, articulando docentes, educandos, movimentos sociais e camponeses para encontrar novas formas de produzir conhecimentos e superar as dificuldades enfrentadas, seja no campo produtivo ou no campo organizativo. A experimentação participativa nas comunidades, desenvolvendo iniciativas com base nos princípios agroecológicos pode ser um importante catalisador do fortalecimento das relações entre instituições de ensino, movimentos sociais, instituições de assessoria e camponeses. A implantação de unidades de experimentação com enfoque agroecológico e/ou envolvimento com políticas públicas podem fortalecer os cursos a partir da dimensão político-organizativa (12, p. 283).

    Desta forma, o movimento da educação do campo vem construindo as bases pedagógicas e operações da concepção de uma educação profissional em agroecologia, com ênfase na crítica radical ao modelo de desenvolvimento hegemônico; a procura da ruptura epistemológica com a ciência dominante; uma concepção pedagógica que valorize os espaços e a sabedoria dos povos do campo, garantindo os diferentes tempos e espaços de formação; bem como uma proposta de formação que consiga dialogar com a realidade do campo, não simplesmente procurando conhecê-la, mas também transformá-la.

    Porém, é importante refletir que esses cursos que recebem apoio do Pronera/Incra são direcionados para jovens e adultos camponeses provenientes dos assentamentos rurais, deixando milhares de jovens com outras territorialidades sem a possibilidade de acesso a esse tipo de formação. Não existe, hoje, uma política pública geral para o ensino médio de outros camponeses, que estão fora das áreas de assentamentos rurais, com uma proposta diferenciada de formação.

    Em termos de formação profissional primária com enfoque em agroecologia, além das iniciativas dos Ceffas, acima mencionadas, existem experiências recentes sendo implementadas a partir de programas de indução de políticas públicas, como é o caso do Programa Projovem Campo - Saberes da Terra. A criação de estruturas nos governos para trabalhar com o tema da educação no campo, no final dos anos 2000 (14), impulsionou alguns programas governamentais que, embora concebidos na relação de pressão e mobilização dos movimentos sociais, passaram a desenvolver ações ligadas aos governos em seus diferentes níveis (federal, estadual e municipal).

    O Projovem Campo – Saberes da Terra é uma iniciativa que objetiva realizar a formação profissional associada ao aumento de escolaridade dos jovens que não tiveram a oportunidade de concluir seu ensino fundamental. É um esforço para reunir os princípios políticos e metodológicos acumulados nas últimas décadas, a partir das primeiras ações da educação popular até as recentes reflexões em relação à educação do campo. É fruto de uma demanda dos movimentos dos jovens camponeses por uma educação mais apropriada a suas realidades. Os princípios político-pedagógicos que apoiam/orientam o programa são guiados pelas referências a uma Política Nacional de Educação do Campo e às diretivas curriculares nacionais para a escola primária. São eles: a) a escola articulada a um projeto de emancipação humana; b) a valorização do conhecimento diverso no processo educativo; c) a compreensão de diferentes tempos e espaços educativos; d) a escola ligada à realidade dos sujeitos; e) a educação como estratégia para o desenvolvimento sustentável; f) a autonomia e a colaboração entre os sujeitos do campo e o sistema nacional de educação; g) o trabalho como princípio educativo; h) a pesquisa como princípio educativo.

    Apesar dessa complexidade, o programa está "fixado" em alguns territórios e serve de base político-pedagógica para a construção de um processo de institucionalização da educação do campo com enfoque agroecológico em alguns municípios (15).

    Porém, a maioria das propostas dos movimentos sociais de reformulação da educação, são ações contra-hegemônicas frente às forças conservadoras da sociedade. Geralmente, os camponeses têm ficado fora da grande maioria das reflexões sobre educação e formação profissional para o desenvolvimento do espaço rural. O pensamento cartesiano e baseado nos produtos para a exportação e na construção de um conhecimento fragmentado é hegemônico nos processos de formação. A exclusão das propostas dos camponeses tem uma razão, quase sempre ideológica, no sentido de garantir uma educação descontextualizada e centrada na formação de uma pessoa competente para engrossar as filas de mão de obra para a agricultura industrial, repetindo uma prática histórica no país e reforçando o marco cognitivo hegemônico (16).

     

    AS PROXIMIDADES E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E A AGROECOLOGIA

    Desde o ponto de vista histórico no Brasil, podemos dizer que o enfoque agroecológico e a educação do campo têm a mesma base social de construção inicial - a resistência dos agricultores familiares camponeses e seu processo de reorganização através dos movimentos sociais. Conforme constataram Caporal e Petersen (17), uma das características marcantes da agroecologia no Brasil é um vínculo com a defesa da agricultura familiar camponesa como base social de estilos sustentáveis de desenvolvimento rural.

    O modelo de desenvolvimento implementado no espaço rural, a partir da modernização da agricultura, impulsionou uma prática educativa nas escolas do campo como reforço a uma visão de atraso e sem perspectivas para a população rural. O modo de produção camponês é situado na invisibilidade dessa lógica formativa hegemônica e suas identidades são rejeitadas. A formação profissional serve como correia de transmissão dos conhecimentos da revolução verde e tem o papel de formação de mão de obra para as empresas agroindustriais.

    A educação do campo nasce em suas origens a partir da contestação dessa lógica, questionando não somente as práticas pedagógicas baseadas no ruralismo pedagógico e o tecnicismo das escolas agrícolas, mas também o paradigma que sustentava essa concepção de ensino e, principalmente, o modelo de campo estabelecido a partir desse paradigma.

    A disputa social e científica da sociedade, em defesa de mudanças estruturais no campo, como a proposta da reforma agrária maciça no Brasil, também são características comuns dos dois enfoques. Neste sentido, a defesa de uma nova proposta de desenvolvimento rural e a negação do modelo baseado no agronegócio são parte integrante dessa aproximação político-filosófica da agroecologia com a educação do campo. Isso significa claramente uma postura contra-hegemônica dos dois enfoques, considerando o atual modo de produção agroindustrial e do conhecimento estabelecido em nossa sociedade.

    Essa disputa se manifesta, inclusive, nos cursos e ações de políticas públicas com o enfoque agroecológico. O surgimento de inúmeros cursos de formação em agroecologia no Brasil nos últimos anos, por um lado ratifica a importância dessa ciência emergente no contexto atual, por outro traz como consequência um conjunto de ações formativas com perspectivas de encorajar a "produção" de mão de obra especializada para um nicho de mercado que vem crescendo em nível mundial - a agricultura orgânica, que não propõe, em princípio, a ruptura com o modelo hegemônico e aceitação dos princípios estabelecidos pelo movimento agroecológico.

    O aspecto metodológico convencional também é um elemento questionável para os dois enfoques. As críticas aos métodos lineares e unidirecionais de produção e difusão de conhecimentos são totalmente semelhantes. A busca de uma relação educador-educando, técnico-camponês de forma mais horizontal e participativa é constantemente perseguida nos cursos de formação profissional agroecológica. A adoção de uma educação crítica e transformadora também é buscada como estratégia central.

    A defesa de uma produção de conhecimento baseada na relação direta entre o conhecimento científico e a sabedoria dos povos do campo - a partir do diálogo de saberes - usando a problematização da realidade; a revalorização dos conhecimentos sociais dos camponeses; a geração e disseminação de tecnologias adaptadas às realidades territoriais, respeitando o conhecimento e não degradando o meio ambiente; a transformação da realidade social das famílias camponesas e a produção de alimentos saudáveis para seu consumo e o abastecimento dos mercados locais, são alguns dos elementos centrais da mudança metodológica e estão inclusos na educação do campo com enfoque agroecológico.

    Para isso, a ruptura epistemológica com a ciência dominante e a construção de uma perspectiva científica que valorize as sabedorias dos povos do campo, tanto do ponto de vista da sua cultura (Kosmos e corpus), quanto de seu sistema de trabalho (epistemologia camponesa), são elementos comuns nos dois enfoques (18).

    O ensino profissional em agroecologia, como foi desenvolvido na maioria dos cursos articulados ao enfoque da educação do campo, permitiu a produção de inovações, mas inovações surgidas a partir do diálogo entre saberes e próximas aos interesses, controle e saber dos camponeses. Esse aspecto comprovou a hipótese de que os camponeses estão produzindo novos conhecimentos, para além de sua sabedoria ancestral, mas em profundo diálogo com a mesma. Essas inovações camponesas são contextualizadas, adaptadas e dialogam com a complexidade dos agroecossistemas do território onde moram e trabalham.

    O diálogo de saberes teve um papel fundamental na produção das inovações, mas não seria possível sem um conjunto de contribuições teóricas e metodológicas próprias da educação crítica e transformadora que, mesmo em contradição com a realidade das escolas, tornou possível a mudança de atitude dos professores nos processos formativos. Isso foi construído a partir da formação continuada dos professores e técnicos pedagógicos que participaram diretamente nas iniciativas de formação.

    Outro ponto fundamental é a incorporação da realidade socioecológica dos camponeses no ensino. Mas, uma realidade problematizada, refletida, a partir dos conhecimentos das diferentes ciências de forma interdisciplinar, associada à valorização da sabedoria camponesa no território, promovendo assim o diálogo de saberes. Pensar uma pedagogia da transformação socioecológica - além dos diagnósticos da realidade agrária e das reflexões sem ações concretas na realidade, e com uma participação ativa dos camponeses do território - é imprescindível. Fortalecer os princípios da vida, da diversidade, da complexidade e da transformação é essencial (19).

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Sarandón, S. "El desarrollo y uso de indicadores para evaluar la sustentabilidad de los agroecosistemas". Capítulo 20 en Agroecología: El camino hacia una agricultura sustentable. - SJ Sarandón (editor) - Ediciones Científicas Americanas. 2002.

    2. Chambers, R. et al. Whose reality counts?: putting the first last. Intermediate Technology Publications Ltd (ITP), 1997.

    3. Jiménez, C.G.; Faz, G.R. Educación rural alternativa: memoria del primer foro nacional. México: Centro de Estudios para el Desarrollo Rural Sustentable y la Soberanía Alimentaria, 2009.

    4. Brandão, C.R. Educação popular. Editora Brasiliense, 1984.

    5. Estes centros educativos são originários das experiências francesas e italianas de formação de camponeses (7). Os pilares dos Ceffa foram sendo construídos até os dias atuais e se constituem em: a) Pilares meios - associação local (pais, famílias, profissionais, instituições) e pedagogia da alternância (metodologia pedagógica); e b) Pilares fins - formação integral dos jovens e desenvolvimento sustentável do meio (social, econômico, humano, político...) (MEC/CNE, 2006).

    6. Arroyo, M.G.; Caldart, R.S.; Molina, M. C. Por uma educação do campo. Editora Vozes, 2004.

    7. Queiroz, J. B.P; Silva, V. C.; Pacheco, Z. Pedagogia da alternância: construindo a educação do campo. Editora UCG, 2006.

    8. Caldart, R. S.; Pereira, I. B.; Aletejano, P.; Frigotto, G.(orgs.) Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Venâncio, Expressão Popular, p. 748-759, 2012.

    9. Havia uma grande preocupação com o alto nível de analfabetismo nos assentamentos rurais.

    10. Molina, M.C.; Jesus, S. M. "Contribuições do Pronera à educação do campo no Brasil: reflexões a partir da tríade: campo–política pública– educação". Santos, C.A. dos; Molina, M.C.; Jesus, S.M. dos S.A. In: Memória e história do Pronera. Brasília: Pronera/Incra/MDA, 2010.

    11. Michelotti, F.; Guerra, G.A.D. "Ciências agrárias e educação do campo". In: Santos, C.A. dos; Molina, M.C.; Jesus, S.M. dos S. A. In: Memória e história do Pronera. Brasília: Pronera/Incra/MDA, 2010.

    12. Molina, M. C.; Santos, C.A.; Michelotti, F.; Sousa, R.P. (2014). Práticas contra-hegemônicas na formação dos profissionais das ciências agrárias: reflexões sobre agroecologia e educação do campo nos cursos do Pronera. (orgs). - Brasília: MDA, 2014. 292 p. (Série Nead Debate; 22).

    13. Santos, C.; Michelotti, F.. e Sousa, R.. "Educação do campo, agroecologia e protagonismo social: a experiência do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)". Revista Agriculturas, v. 7. n. 4, ASPTA, dezembro de 2010.

    14. O Ministério de Educação criou o Departamento de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) para, entre outras ações, trabalhar políticas de fortalecimento da educação do campo no país.

    15. Sousa, R. da P. "Educación profesional y sabidurías de los jóvenes campesinos en la Amazonía: una reflexión desde la agroecología política". (Doctoral disertación, Universidad Pablo de Olavide), 2015.

    16. O conceito de Ploeg (2008, p. 20) de império, entendido como "um modo de ordenamento fortemente centralizado, formado por grandes empresas de processamento e comercialização de alimentos que cada vez mais operam a escala mundial e tende a se tornar dominante" ajuda a compreender a forte influência das empresas nacionais e transnacionais na construção e execução dos processos educativos e a formação profissional, principalmente nas ciências agrarias.

    17. Caporal, F.R.; Petersen, P. "Agroecologia e políticas públicas na América Latina: o caso do Brasil". Agroecología. Murcia, 2012.v.6, p.63-74.

    18. Toledo, V. M.; Barrera-Bassols, N. La memoria biocultural: la importancia ecológica de las sabidurías tradicionales (Vol. 3). Icaria Editorial, 2008.

    19. SNA/ABA. Princípios e diretrizes da educação em agroecologia. Recife: ABA-Agroecologia, 2013.

     

     

    Tradução: Marcela Salazar Granada, a partir do original em espanhol.