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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo Apr./Jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200013 

    ARTIGOS
    AGROECOLOGIA

     

    Convergências e divergências entre feminismo e agroecologia

     

     

    Ana Paula Lopes FerreiraI; Luis Cláudio MattosII

    IDoutora em agroecologia pela Universidade de Córdoba, Espanha, no Instituto de Sociologia e Estudos Campesinos, e é coordenadora do Programa de Direitos das Mulheres na ActionAid Brasil
    IIDoutorando de ciências sociais em desenvolvimento, agricultura e sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

     

     

    Este artigo está alicerçado em estudos dos autores que analisaram o processo de aproximação, ora em curso, estabelecido entre as perspectivas feminista e agroecológica no Brasil. São analisados os elementos acerca do lugar de subordinação ocupado pelas mulheres na agricultura familiar brasileira. Um elemento chave deste artigo reside na ideia de que, no âmbito da família rural camponesa, persistem processos que perpetuam relações de gênero injustas, que reforçam o poder patriarcal. Tratar a família como unidade monolítica torna o desenvolvimento agroecológico incompleto e imperfeito, daí a importância da aproximação entre a agroecologia e o feminismo. São também analisadas as dificuldades enfrentadas, os desafios superados e a superar, além do potencial sinérgico dessa aproximação. Desta forma, procura-se contribuir para a evolução futura tanto da agroecologia como do feminismo, a partir dos passos dados e lições aprendidas com a trajetória.

    No Brasil, o debate agroecológico iniciou-se na década de 1980 influenciado por discussões pautadas por movimentos de oposição ao processo de modernização da agricultura que se intensificou na segunda metade do século XX. Essa modernização tem sido responsável pelo aumento das contaminações causadas pelos agrotóxicos, descontrole das pragas e doenças, degradação dos solos e dos recursos hídricos, entre outros danos. Pouco a pouco, o debate ampliou-se para consequências sociais do modelo de desenvolvimento vigente, como a concentração de terra que leva à pobreza e exclusão no campo, à precarização das relações do trabalho e, por fim, ao êxodo rural. Enquanto movimento, a agroecologia ganhou força nos anos 2000 com a realização do I Encontro Nacional de Agroecologia (I ENA) e a construção da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

    Em meio a consensos e dissensos, ao longo desse período, emergiu no país um novo processo político. As organizações que iniciaram seu trabalho no campo agroecológico, passaram a incorporar, mesmo que tangencialmente, uma abordagem de gênero. Por sua vez, as organizações feministas mesmo com origem urbana, ao se depararem com a realidade rural, passaram a incorporar a agroecologia em suas abordagens de trabalho.

    O termo agroecologia aqui descrito diz respeito, por um lado, a uma ciência e, por outro, a um movimento social, reunindo uma visão holística e um enfoque sistêmico. Não se trata apenas de uma forma de praticar agricultura, nem tão somente ao uso de tecnologias que não agridam ao meio ambiente. Sua proposta é, sobretudo, a partir da agricultura familiar romper com o modelo hegemônico de desenvolvimento rural baseado no monocultivo, no latifúndio, no agronegócio que formam a base do modelo capitalista de desenvolvimento rural gerador de exclusão social (1).

    Da mesma forma, o feminismo aqui abordado também está relacionado a uma teoria e a um movimento que se retroalimentam e, de várias formas, põe em relevo a opressão que o gênero masculino exerce sobre o gênero feminino (2). Essa abordagem questiona o papel de subordinação da mulher e os vários outros tipos de opressão social que ela enfrenta. O feminismo traz uma valiosa contribuição analítica sobre o conceito de patriarcado, revelando sua raiz histórica. Apesar de várias mudanças sociais e legais que beneficiaram as mulheres nos últimos anos, o patriarcado, que herda um passado de opressão de classe e uma cultura escravocrata, ainda é muito presente na sociedade brasileira. Com isso o desrespeito aos direitos das mulheres ainda é prática cotidiana.

    Assim, os termos agroecologia e feminismo, trazidos por este artigo, se colocam dentro de projetos de transformações sociais amplas, que levam a novos entendimentos e novas concepções sobre cidadania, democracia, política e pobreza. Ambos são tanto teorias críticas quanto movimentos sociais e alimentam, e são alimentados, por vivências concretas.

     

    AGROECOLOGIA E AS MULHERES AGRICULTORAS

    Em relação à agricultura camponesa, a agroecologia se expressa como um movimento de resistência ao modelo de desenvolvimento em vigor e seus problemas sociais, culturais, ambientais e econômicos. Representa uma luta dos/as camponeses/as pela autonomia frente ao capital e ao agronegócio.

    Isto por si deveria conferir aos processos agroecológicos um caráter emancipatório para todas as pessoas. Todavia, ao aprofundar essa análise com relação à condição da mulher agricultora, observamos que esse caráter emancipatório deixa a desejar. Ou seja, muitas vezes os projetos e iniciativas com uma perspectiva agroecológica não avançam em suas propostas de emancipação das mulheres camponesas, que, na maioria das vezes, são desprovidas de poder dentro e fora de suas famílias. Pacheco (3) destaca a importância que a perspectiva de gênero tem nas discussões sobre as políticas que incluem sistemas de produção. A autora enfatiza a sua ausência dessa perspectiva afirmando que:

    (...) a invisibilidade do trabalho das mulheres agricultoras é antes que nada uma questão política. Os "silêncios" sobre as mulheres requerem outra matriz de análise que parta dos ecossistemas e sistemas de produção, da ampliação do conceito de trabalho e produtivo, em articulação com a questão da diversidade social, como constitutiva de uma visão de agricultura sustentável que relacione gênero e agroecologia. O debate continua em aberto. (3, p.11) (Pacheco, 1997, p. 11)

    A perspectiva agroecológica tem demonstrado potencial de abrir espaços para que as mulheres agricultoras enfrentem sua condição de vulnerabilidade e, neste sentido, conquistem mais poderes nas esferas pessoal, produtiva, familiar e política. Entretanto, o trabalho com a agroecologia, por si só, não é suficiente para que a desvalorização e a invisibilidade das mulheres sejam suficientemente problematizadas. Neste sentido, o diálogo entre as perspectivas agroecológica e feminista é um importante caminho para o enfrentamento político sobre alguns dos dilemas vivenciados pelas mulheres no meio rural.

    As mulheres agricultoras são desprovidas de poder porque enfrentam uma "dupla dependência". A primeira dependência está relacionada ao fato de serem camponesas e, historicamente, o campesinato é um grupo cuja inserção social se dá em condições subordinadas em relação ao conjunto da sociedade. Ser camponês em uma sociedade industrializada e urbanizada está associado ao atraso, à ignorância, ao apego à tradição, ao conservadorismo. Significa, nesse contexto, não ser moderno e, portanto, ser inferior. E a segunda dependência está relacionada ao fato de serem mulheres imersas em relações familiares desiguais e hierárquicas, onde a opressão feminina é naturalizada (4).

    Siliprandi (5) questiona a existência da família idealizada - monolítica e harmônica - pela sociedade. A autora afirma que nem todos os membros da família contribuem para o êxito do empreendimento familiar da mesma forma, nem todos têm os mesmos objetivos e estratégias de ação. Essa família é uma ficção e se ela existe, em alguns contextos, não será sem tensões (6). Existem fatores, inclusive laços afetivos, que fazem com que as pessoas colaborem dentro da família. Porém, existem também forças que levam as pessoas a competirem entre si, tudo isso permeado por relações de poder historicamente construídas (7). A perpetuação dessa situação se apoia em aspectos materiais, institucionais e, não raro, sacramentado em leis (8). Sem o questionamento sobre a família idealizada, parte das organizações que trabalha com a agroecologia acredita que, ao trabalhar com a família, estão trabalhando com a perspectiva emancipatória para as mulheres. Naturaliza-se o fato de que trabalhar a "família como um todo" é o mesmo que trabalhar com "todos os membros da família". Na prática, as mulheres não usufruem dos mesmos direitos dos homens por ser membro da família (9). Tratar monoliticamente as famílias oculta as relações desiguais de poder que as mulheres agricultoras sofrem em suas relações familiares.

     

    PROCESSO DE APROXIMAÇÃO ENTRE O FEMINISMO E A AGROECOLOGIA

    A aproximação entre o feminismo e a agroecologia se confunde com a própria história das lutas feministas, que no Nordeste foram protagonizadas por organizações como a Casa da Mulher do Nordeste (CMN), em Pernambuco, o Centro Feminista Oito de Março (CF8), no Rio Grande do Norte, e o Cunhã Coletivo Feminista, na Paraíba.

     

     

    No Brasil a luta feminista surgiu no final dos anos de 1970, durante a redemocratização, influenciada pelos movimentos feministas europeu e estadunidense fortemente baseado em questões de saúde e direitos reprodutivos. A emancipação pelo corpo feminino era um debate relevante. Na época, crescia no país o lema "nosso corpo nos pertence", uma das principais bandeiras do movimento internacional de mulheres. Em um segundo momento, a emancipação das mulheres passou a incorporar também sua autonomia econômica. Essa discussão envolveu parte das pessoas que constituíram, em 1980, a Casa da Mulher do Nordeste. Pouco a pouco, no campo, crescia a necessidade de dar visibilidade às experiências protagonizadas pelas mulheres (10).

    A redemocratização do país fez crescer a participação das mulheres na esfera pública. Além disso, o próprio Estado criou inúmeras secretarias e coordenadorias que ampliaram as políticas da agricultura familiar como um todo com rebatimentos positivos sobre as mulheres rurais. Parte dessas políticas já foram fruto das reivindicações dos diferentes movimentos de mulheres e organizações feministas e agroecológicas.

    Mesmo diante do acúmulo desse debate, o I Encontro Nacional de Agroecologia, realizado em 2002, não considerou a centralidade da pauta dos movimentos das mulheres e, por isso, o evento acabou por se tornar um marco para a aproximação dos dois movimentos.

    Realizado em um contexto de revisão de políticas neoliberais e ampliação das demandas sociais, o evento teve fundamental apoio do governo federal, além das entidades de cooperação internacional que historicamente apoiavam as organizações líderes nas esferas agroecológica e feminista. Criaram-se, assim, as condições para uma intensa troca de experiências entre agricultores e agricultoras de várias partes do país, com apresentação de 432 iniciativas agroecológicas protagonizadas por agricultores e agricultoras de base familiar.

    A presença de mulheres, no entanto, ficou aquém do esperado. Apenas 297 em um total de 1.100 participantes. Já de partida, essa proporção despertou um intenso debate, uma vez que 27% não refletia o nível de envolvimento das mulheres em experiências agroecológicas nas comunidades. Ademais, a metodologia do I ENA contemplava oficinas temáticas sobre temas relevantes do movimento agroecológico.

    Uma dessas oficinas referia-se "à questão de gênero no desenvolvimento agroecológico". A inclusão desse tema na programação representou a tentativa de demonstrar sua relevância como tema transversal para o conjunto de participantes do movimento agroecológico. Entretanto, a oficina com esse tema teve somente a participação de 3 (três) homens, reforçando a ideia de que as questões de gênero estavam somente relacionadas às mulheres, uma ideia fortemente criticada no âmbito do feminismo. Em função disso, o grupo participante tomou a iniciativa de dissolver-se e distribuir-se em outros temas, um ato político marcante durante o evento.

    Com isso, tornou-se clara a reflexão de que a decisão de ter formatado um espaço exclusivo para a discussão de gênero, não possibilitaria sua interação com as demais oficinas temáticas. Esse mesmo grupo também elaborou uma carta, lida na plenária final do encontro, expressando que, tanto a discussão do próprio grupo, quanto as discussões dos demais grupos, tinham sido prejudicadas com a metodologia prevista de criar um espaço específico para a temática gênero no desenvolvimento agroecológico. Esse episódio dentro do I ENA desencadeou um processo de articulação no sentido de incorporar a questão das relações sociais de gênero na pauta política do movimento agroecológico na fase pós evento.

    O primeiro desdobramento desse encontro foi a criação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), onde participariam um conjunto de movimentos, pesquisadores/as, redes e organizações da sociedade civil. Essa articulação vem então ampliando o debate de temas mobilizadores, valorizando as dinâmicas regionais existentes, além das experiências concretas de promoção da agroecologia. Esse trabalho tem influenciado a formulação de propostas de políticas públicas, levando também a uma aproximação do governo com a sociedade civil organizada.

    Na estrutura de funcionamento da ANA, foram criados grupos de trabalho (GTs) sobre os temas de: crédito, certificação participativa e assessoria técnica e extensão rural (Ater). Foi uma decisão política das mulheres não criar um GT de mulheres nesse momento, e sim atuar nos demais GTs.

     

    A CONSTITUIÇÃO DOS GT-MULHERES DA ANA E GT-GÊNERO DA ABA

    Logo após o I ENA, fortalecia-se o debate sobre a possibilidade de formação de um grupo específico de mulheres para tratar a temática de gênero, todavia não se chegou a nenhuma proposta concreta de imediato, visto que algumas pessoas tinham o receio de que a criação de um GT sobre gênero viesse a reforçar a separação entre gênero e os demais temas, como havia acontecido no I ENA. Naquele momento, o passo mais importante para incorporar a perspectiva de gênero na ANA era ampliar e qualificar o envolvimento de mulheres de várias organizações, nos GTs constituídos.

    Essa estratégia manteve-se viva por um conjunto de grupos e organizações que possuíam acúmulo simultâneo em discussões de gênero e de agroecologia, notadamente o grupo de trabalho de gênero e agroecologia da região Sudeste, a Rede Economia e Feminismo (REF), além da ONG Fase.

    Em 2004, essas mesmas entidades animaram a realização do I Seminário Nacional sobre Gênero e Agroecologia. A estratégia de incorporação do enfoque de gênero na ANA configurou-se o principal ponto de debate do seminário. Se, por um lado, a criação de um GT específico sobre gênero apresentava riscos de reforçar uma fragmentação, por outro lado, avaliou-se que o GT poderia se tornar uma importante estratégia de fortalecimento desse debate na ANA. Assim, nascia o GT Gênero da ANA que, mais tarde, veio a se chamar GT Mulheres da ANA.

    É preciso destacar que a criação desse GT não significava um retrocesso em relação à crítica sobre a metodologia do primeiro ENA, que criara um espaço de segregação para as mulheres. Ao contrário disso, esse GT nasceu como um espaço de auto-organização exclusivamente das mulheres para qualificar sua participação em espaços na ANA (GTs, núcleo executivo, coordenação dos ENAs) e além da ANA (Consea, Comitê Gestor do Programa de Organização Produtiva das Mulheres Rurais, Anater, Conferências Nacionais de Ater e Desenvolvimento Rural Sustentável etc). Hoje consideram-se vários outros espaços – Marcha das Margaridas, Rede Ater, Ministério de Desenvolvimento Agrário, entre outros – como essenciais para a discussão da agroecologia e o feminismo. Estrategicamente, o GT promove reuniões ampliadas antes dos eventos mais relevantes para a agroecologia, para que as mulheres possam se distribuir em grupos temáticos diversos (11) (Cardoso, 2015).

    O GT Mulheres da ANA abriu um caminho de diálogo entre as organizações que já assessoravam os grupos de mulheres atuantes no campo agroecológico com as organizações feministas, tais como: Sempreviva Organização Feminista, SOS-Corpo, Casa da Mulher do Nordeste e Centro Feminista 8 de Março.

    De 2004 até o momento, o GT mulheres da ANA tem se nutrido da experiência de base protagonizadas por mulheres e da discussão qualificada das organizações feministas e agroecológicas. O diálogo do GT com a ANA como um todo não é livre de tensionamentos, mas cada vez se reconhece mais que há muitos pontos de convergência. As trocas de aprendizagens entre as mulheres que atuam com perspectivas agroecológicas e feministas tem sido a chave para o crescimento da sinergia entre esses campos na Articulação Nacional da Agroecologia.

    O primeiro Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) foi realizado em 2003. Organizado pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA Agroecologia), o CBA acontece a cada dois anos, reunindo instituições de ensino, pesquisa e extensão, além da sociedade civil organizada envolvida com as demandas da agricultura familiar. Inicialmente pensado como espaço de valorização da pesquisa acadêmica em agroecologia, o CBA vem se constituindo como espaço de diálogo entre os conhecimentos científicos e práticos no âmbito da agricultura familiar e agroecológica tanto no Brasil, quanto no mundo.

    Foi a partir das demandas da própria ABA, que se iniciaram as discussões para qualificar o debate de gênero nos CBAs. Isso abriu caminhos para que o GT Mulheres da ANA passasse a ter uma incidência nos CBAs. Mas foi somente em 2011, no VII CBA, que se formou o GT-Gênero.

    Com forte influência do GT Mulheres da ANA, o GT-Gênero da ABA vem colocando enfaticamente no meio acadêmico a importância da convergência entre o feminismo e a agroecologia. Tal qual a experiência vivida na ANA, esse debate não tem se realizado sem tensionamentos. Divergências acerca do próprio conceito de agroecologia na academia acirram os debates.

    Um marco desse acirramento ocorreu no VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia, em 2013, cujos enfrentamentos deram força à utilização do slogan "sem feminismo não há agroecologia", adotado por muitas mulheres nesse campo. Isso tem gerado importantes reflexões sobre o significado político do termo agroecologia na vida das pessoas.

     

    QUESTÕES LEVANTADAS A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE APROXIMAÇÃO

    Percebe-se que, a partir da realização do I ENA, vários eventos e processos ilustram a aproximação entre os dois movimentos. Ainda que tenham ocorrido divergências, os avanços são indicadores das convergências e aprendizados mútuos.

    No entanto, o que se viu foi que o maior esforço para essa aproximação partiu dos movimentos de mulheres e das organizações feministas. Ora sob olhar reticente e resistências dos homens ora mais acolhidas. Mas, sempre partem delas as iniciativas e propostas de discussões relativas às mulheres na composição das pautas de encontros, seminários, políticas públicas etc.

    O resultado do encontro da agroecologia com o feminismo tem um efeito sinérgico no enfrentamento de dilemas vivenciados pelas mulheres no meio rural, ampliando os alcances tanto da agroecologia quanto do feminismo.

    Ao valorizar o conhecimento local, a perspectiva agroecológica revela a importância das mulheres na construção de sistemas agroflorestais, quintais, hortas, manejo da criação de animais, entre outros sistemas produtivos. Introduzir o feminismo na construção do campo agroecológico contribui na ampliação do enfoque para além das questões tecnológicas, produtivas e ambientais. As questões sociais ganham evidência, incluindo a busca da justiça e equidade nas relações de gênero.

    Há consenso de que tais relações injustas e desiguais são socialmente construídas e, portanto, podem e devem ser socialmente desconstruídas. Por isso, o feminismo se nutre dos debates acerca da soberania alimentar, políticas públicas rurais e sustentabilidade ambiental apresentados pela agroecologia. Dessa forma, a agroecologia passa a ser um instrumento a mais para essa desconstrução, a partir do processo de empoderamento das mulheres.

    O feminismo e a agroecologia, quando trabalhados de forma integrada, podem retirar as mulheres de várias situações de opressão, a saber: (i) proibições à prática da agricultura sem agrotóxicos e adubos químicos; (ii) proibições à participação em atividades coletivas, tais como reuniões e intercâmbios; (iii) proibições à vida econômica e acesso a mercado, tais como inserção em feiras e mercados institucionais; (iv) proibições à participação política, reinvindicação de direitos e acesso a políticas públicas, como créditos agrícolas. Desta forma a integração das duas perspectivas ajuda no enfrentamento da naturalização de relações sociais injustas, nos quais o papel das mulheres é tornado invisível.

    A aproximação das organizações que trabalhavam no meio rural numa perspectiva agroecológica com organizações feministas surgidas em um contexto urbano, contribuiu para que o feminismo tivesse uma maior clareza sobre a realidade do meio rural. Dentre essas contribuições está a dimensão da participação política no campo, como o acesso à terra, incluindo a luta pelo título da terra e o direito ao crédito.

    Como exemplo, tem-se a criação do Pronaf Mulher, fruto da luta das mulheres, que criou mecanismos específicos para sua aplicação em moldes agroecológicos, incorporando a reflexão sobre a opressão sofrida pelas mulheres. Assim, a aplicação do Pronaf Mulher é discutida por organizações feministas que prestam assessoria técnica às agricultoras.

    A agroecologia representa uma ruptura com o paradigma convencional da produção agrícola, altamente machista. A valorização do conhecimento local, especialmente das mulheres, na abordagem agroecológica facilita a introdução dos temas do feminismo no âmbito rural.

    A agroecologia vem ajudando a ampliar o olhar ambiental e político do feminismo. Temas como as mudanças climáticas e os transgênicos, comuns na agroecologia, passaram a compor os debates feministas. Outros temas, como os quintais produtivos e segurança alimentar, eram vistos com desconfiança pelas feministas que os associavam a uma extensão do trabalho doméstico atribuído à mulher, reforçando o seu lugar dentro das cozinhas.

    A medida que foi se estreitando a aproximação entre as organizações feministas e as agroecológicas, passou-se a compreender a importância histórica das mulheres na agroecologia, e o quanto elas ainda têm a contribuir na construção desse conhecimento. É fundamental que esse conhecimento venha à tona como construção específica das mulheres. Esta valorização é fundamental para garantir que isso não lhes seja expropriado pelos homens em sistemas economicamente patriarcais.

    A agroecologia permitiu ao feminismo reforçar o trabalho com geração de renda das mulheres, ao combinar elementos como a valorização dos alimentos locais (caprinos, plantas medicinais, mel, hortaliças etc) com o acesso ao mercado. Esse trabalho passa pelo desenvolvimento de sistemas agroecológicos em quintais produtivos (hortas e pomares), beneficiamentos em compotas, doces e queijos (12) (CMN/CMC, 2008).

    A sinergia gerada por essa aproximação tem feito surgir outros temas relevantes para ambos os movimentos. Dentre eles está a demanda por uma assistência técnica específica feminista e agroecológica. Essa experiência ainda embrionária, surgiu no âmbito das entidades de Ater agroecológicas. As sistematizações e intercâmbios das experiências e a valorização do conhecimento local, são uma base importante para a sua evolução. Essas novas modalidades de Ater estão diretamente relacionadas ao acesso aos mercados institucionais, às políticas públicas e à maior participação e filiação feminina nos sindicatos de trabalhadores/as rurais (STRs). Estes são importantes passos para o início de um processo de empoderamento das mulheres (13) (MMC Brasil, 2004).

     

    CONCLUSÃO

    Após cerca de 20 anos de trabalho, formações, publicações, encontros, criação de organizações feministas-agroecológicas, de setoriais de mulheres em diversas redes, movimentos e sindicados, já há um certo consenso em torno da importância da aproximação entre a agroecologia e o feminismo. Considera-se essencial a participação das mulheres nos espaços de decisão e articulação do movimento agroecológico. Entretanto, ainda há necessidade de se monitorar constantemente essa participação para que esses avanços não retrocedam.

    O reconhecimento das lutas das mulheres e, sobretudo, do feminismo na agroecologia não é fluido. Demanda um esforço dos homens no sentido de compreender e contribuir para a alteração da histórica desigualdade enfrentada pelas mulheres. Mas, sobretudo, demanda um esforço das mulheres para desnaturalizar a concepção de que as suas ideias e seus trabalhos têm menos valor do que as dos homens. Isto implica em um despertar das próprias mulheres, uma vez que estão inseridas numa sociedade machista e patriarcal.

    A trajetória de aproximação apresentada ao longo deste trabalho mostra que as mulheres constantemente precisam lutar para evidenciar o valor do seu trabalho. Isto não difere os ambientes feministas tradicionais da discussão na agroecologia. Muitas mulheres que trabalham diariamente na produção agroecológica são invisibilizadas em favor da valorização exclusiva do trabalho masculino. Ou, em uma situação ainda pior, atribui-se aos homens o crédito do que foi de fato fruto do esforço das mulheres.

    Além disso, a questão da violência contra a mulher é, muitas vezes, naturalizada no meio rural. Há casos até de que, em nome de uma proteção da imagem positiva de alguns agricultores referenciais em agroecologia, episódios de violência sejam sistematicamente omitidos. Ainda neste tema, muitas organizações da agroecologia tratam com receio da violência contra a mulher, alegando não ter as competências e capacidades para enfrentar essa questão.

    Se, por um lado, a abordagem agroecológica, com tratamento monolítico das famílias não garante a emancipação da mulher, por outro, pode-se afirmar que não há completude agroecológica em experiências cuja emancipação da mulher não esteja em perspectiva, e que não se insira um enfrentamento das estruturas do patriarcado. Assim, só haverá agroecologia na medida em que forem introduzidas as questões do feminismo na própria concepção do fazer agroecológico, que deve estar presente em todos os seus níveis, desde o cotidiano das experiências de campo até a pesquisa em agroecologia, passando pela assistência técnica e formulações de políticas públicas.

    A participação comunitária estimulada pelas perspectivas feministas e agroecológicas representa o início de um processo de emancipação, que muda a vida das mulheres agricultoras, abrindo caminhos, trazendo autonomia e poder de decisão. Verifica-se que todas as mulheres que iniciam uma participação comunitária, tem a preocupação de socializar suas aprendizagens e lições com as outras mulheres que as cercam. Essa prática se dá sob o argumento de que juntas ganham força e se apoiam.

    Por fim, é importante destacar que a trajetória de aproximação da agroecologia com o feminismo, incluindo seus alcances, não seria possível sem a participação do poder público. Neste sentido, o atual contexto político e econômico nacional, que tem em perspectiva a diminuição do papel do Estado e constrição de gastos sociais, representa uma forte ameaça aos alcances registrados ao longo da trajetória descrita neste artigo. Sinais desses retrocessos já se fazem notar com a extinção do MDA, com a mudança de status da secretaria especial da mulher, além de uma significativa redução da participação de mulheres em escalões do governo e o ressurgimento da figura decorativa de primeira dama.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Sevilla Guzmán, E. . De la sociología rural a la agroecología. Córdoba: Icaria Editorial, 2006.

    2. Amorós, C. & De Miguel, A. . Teoría feminista: de la ilustración a la globalización. Madri: Minerva Ediciones. 2007.

    3. Pacheco, M. . "Sistemas de produção: uma perspectiva de gênero". Revista Proposta - Desenvolvimento Sustentável, 25(71). 1997.

    4. Ferreira, A. P. . La importância de la perspectiva feminista en el empoderamiento de las mujeres campesinas. Universidad de Córdoba e Universidad Internacional de Andalucía, Cordoba. 2008.

    5. Siliprandi, E.. "O que se pensa, o que se faz, o que se diz: discursos sobre as mulheres rurais". Educação em Debate, 2(44), 106-110. 2002.

    6. Agarwal, B.. Engendering the environment debate: lessons from the Indian subcontinent (Vol. vi). East Lansing, Michigan: Center for Advanced Study of International Development - Michigan State University. 1991.

    7. Avila, M.. "Divisão sexual do trabalho: desafio para a agroecologia". In: C. Silva, Encontros possíveis: feminismo e agroecologia (1ª ed.). Recife: SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia. 2007.

    8. SOS Corpo. . Cadernos de Críticas Feministas (vols. V, nº 01). Recife: SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia. 2011.

    9. CMN. As relações de gênero na agricultura familiar - diagnóstico do Pajeú. Casa da Mulher do Nordeste, Recife. 2003.

    10. Ferreira, A. L.. Acercamiento entre las perspectivas feminista y agroecológica potencializando procesos de empoderamiento de las mujeres rurales brasileñas, desde el territorio del Pajeú, Sertão del Pernambuco. Córdoba. 2015.

    11. Cardoso, E. . História do processo de criação do GT-Mulheres da ANA. 2015.

    12. CMN/CMC. Práticas feministas: sistematização de experiências em meios de vida sustentáveis. Casa da Mulher do Nordeste e Centro das Mulheres do Cabo, Recife. 2008.

    13. MMC Brasil. Nenhuma trabalhadora rural sem documentos (5ª ed.). MMC. 2004.