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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200015 

    ARTIGOS
    AGROECOLOGIA

     

    Segurança alimentar e nutricional: sistemas agroecológicos são a mudança que a intensificação ecológica não alcança

     

     

    Juliana Schober Gonçalves Lima

    Professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS), doutora pela Universitat Hohenheim (Alemanha) em planejamento e desenvolvimento rural sustentavel e pós-doutoranda na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde desenvolve a pesquisa "Sistemas agroalimentares, territórios, soberania e segurança alimentar"

     

     

    Houve uma longa caminhada, repleta de adaptações e lutas, para que a presença determinante da agricultura se expandisse pelos territórios do globo terrestre, exercendo um poder decisivo na história das civilizações humanas. Por volta de 5 mil a.C., a agricultura estava presente em quase todos os continentes, criando novos modos de produção e consumo de alimentos. Roberts (1), enquanto discorre sobre os impactos da agricultura nas muitas dimensões do desenvolvimento humano, afirma que a agricultura esteve relacionada à origem de um fenômeno que se tornaria o marco da economia alimentar: o aumento demográfico. Segundo dados do autor, em 10 mil a.C. existiam aproximadamente 5 milhões de indivíduos em todo o mundo, que aumentaram para talvez cerca de 20 milhões em 5 mil a.C. devido à nova dinâmica de produção e acesso ao alimento viabilizados pelo desenvolvimento da agricultura.

    Assim, historicamente, a agricultura exerceu uma forte influência sobre a quantidade de alimentos disponíveis para o consumo humano no mundo e foi fundamental para elevar a densidade populacional do planeta desde os seus primórdios. Entretanto, apesar de toda a força civilizatória da agricultura, muitos povos se tornaram vulneráveis por falta de alimentos e a fome se tornou uma realidade severa e desumana para milhões de indivíduos. Tal realidade é uma construção das sociedades humanas que transformaram a agricultura em poder através da geração de excedentes e originaram, ao longo do tempo, um sistema agroalimentar global excludente e moldado pelo mercado.

    Após a segunda metade do século XX, a revolução agrícola contemporânea e a sua variante, conhecida como revolução verde, foram capazes de elevar a produtividade e a produção de alimentos no mundo, porém, essas revoluções causaram um empobrecimento significativo dos camponeses, tornando as populações rurais das regiões menos favorecidas do globo vulneráveis à fome e à desnutrição, originando realidades surpreendentes, como a citada por Mazoyer e Roudart (2):

    (...) Enfim, em certos países em desenvolvimento, no sudeste asiático particularmente (Tailândia, Vietnã, Indonésia...), o aumento da produção devido à revolução verde combina-se com altos níveis de rendas e de salários locais tão baixos que esses países tornaram-se exportadores de arroz enquanto a subnutrição arruína os campos.

    Apesar do aumento do volume de alimentos, viabilizado pela revolução agrícola contemporânea e revolução verde, o número de indivíduos subnutridos no mundo ainda é grande. As estatísticas apresentadas pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) (3) mostram que existem ainda cerca de 795 milhões de pessoas subnutridas no mundo, indicando que as metas dos Objetivos do Milênio referentes à segurança alimentar e nutricional não foram alcançadas até o ano 2015. Vários fatores contribuem para a insegurança alimentar nas próximas décadas. Estes incluem o crescimento populacional e aumento da demanda por alimentos, a competição pelo uso do território para a produção de alimentos, a competição pela água e os conflitos causados pelo múltiplo uso dos recursos naturais necessários à produção de alimentos. Além desses fatores, a segurança alimentar e nutricional terá que enfrentar as incertezas da oferta de alimentos causadas pelas mudanças climáticas. Atualmente, a taxa de crescimento populacional mundial está em torno de 1,18% por ano. As estimativas indicam que, com esta taxa de crescimento, a população mundial de humanos poderá alcançar aproximadamente 8,5 bilhões de pessoas em 2030 (4).

    Evidentemente, a segurança alimentar e nutricional (SAN) das populações humanas depende também da capacidade dos sistemas produtivos transformarem recursos naturais em biomassa destinada à alimentação humana. Entretanto, isto não é suficiente e tampouco se trata de um desafio meramente tecnológico. Os múltiplos determinantes da SAN nos níveis macro-sócio-econômico - regional e local; e domiciliar - evidenciam que a SAN constitui um conceito abrangente e multidisciplinar. Este envolve questões de acesso a alimentos de qualidade, práticas alimentares saudáveis, práticas sustentáveis de produção, cidadania e direitos humanos (5).

    Toda a complexidade dos determinantes da SAN se manifesta, sobretudo, no mundo rural onde o trabalho árduo diário dos camponeses da terra e da água não é suficiente para que eles próprios vivam livres da fome e da insegurança alimentar e nutricional. Estima-se que a grande maioria dos indivíduos subnutridos no mundo pertence ao mundo rural (2; 3).

    A existência desses camponeses, e de muitos outros no mundo rural que vivenciam a insegurança alimentar, evidenciam que as políticas de desenvolvimento e alimentares estão equivocadas. As de desenvolvimento estimulam a produção de alimentos, segundo os princípios da revolução agrícola contemporânea e revolução verde. As alimentares consistem em suprir cidades e povoados com gêneros alimentícios a preços sempre mais baixos. Ambas empobrecem ainda mais os camponeses e os mais pobres que constituem a maioria das pessoas subnutridas no mundo.

    No corrente cenário de rápido crescimento populacional, novos paradigmas de produção e consumo de alimentos devem ser orientados por modos de produção eficientes que sejam capazes de produzir um volume considerável de biomassa de alimentos, ao mesmo tempo em que a biodiversidade é conservada e os impactos negativos associados à produção de alimentos são minimizados (6-7). Neste contexto, o conceito de intensificação ecológica de sistemas de produção de alimentos ganha importância e surge como uma alternativa aos modos de intensificação convencionais que são frequentemente associados a impactos socioambientais negativos (8).

    O aumento da produção de alimentos por unidade de área, ao mesmo tempo em que a biodiversidade dos territórios ocupados por sistemas de intensificação ecológica é preservada, é uma vantagem importante se comparada aos sistemas convencionais de intensificação da produção de alimentos. Ao inserir a dimensão da sustentabilidade ambiental nas práticas alimentares, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional indica que modos de produção de alimentos nos moldes da intensificação ecológica são necessários para a garantia da SAN, definida segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) (Lei no 11.346, de 15 de julho de 2006) como:

    "A realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis"

    No entanto, apesar das vantagens ambientais e do impacto positivo sobre a biodiversidade, a ocupação de territórios por sistemas de intensificação ecológica não é garantia de segurança alimentar e nutricional, cujo conceito abrangente e de natureza interdisciplinar envolve questões de acesso a alimentos de qualidade, práticas alimentares saudáveis, práticas sustentáveis de produção, cidadania e direitos humanos (5).

    É nesse cenário que a ocupação dos territórios por sistemas agroecológicos se mostra mais eficiente para a garantia de segurança alimentar e nutricional do que a simples intensificação ecológica. Os camponeses da terra e da água, ao se apoderarem do território pelos caminhos da agroecologia, plantam mudanças no solo do sistema agroalimentar global e fazem desabrochar novos paradigmas de produção e consumo de alimentos.

    A garantia da segurança alimentar e nutricional para todos, demanda mudanças estruturais profundas na sociedade moderna e a agroecologia segue na direção dessas mudanças, através do trabalho da agricultura familiar. Segundo De Schutter (9) a agroecologia é uma forma de desenvolvimento da agricultura que demonstra conexões conceituais com o direito humano à alimentação, concretizando esse direito humano para muitas populações vulneráveis espalhadas pelo mundo, além de contribuir para um amplo desenvolvimento econômico. A agroecologia contribui para a disponibilidade de alimentos elevando a produção no campo, reduz a pobreza rural aumentando o acesso por alimentos de alta qualidade, contribui para as adaptações frente às mudanças climáticas, além de permitir a participação dos produtores de base familiar nos processos de produção e disseminação tecnológica.

    O relatório "O estado da insegurança alimentar no mundo" (3) mostra que o Brasil não integra mais o mapa da fome no mundo e que o país alcançou as metas estabelecidas pelas Nações Unidas em relação à fome nos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), persistindo a insegurança alimentar apenas em alguns grupos populacionais. Sem dúvidas, a agroecologia e a produção familiar desempenharam papel importante nesse contexto. Para garantir o Brasil fora do mapa da fome no mundo, o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (10) incorporou em suas metas, até o ano 2019, a transição agroecológica. A escolha da agroecologia como ferramenta de combate à fome no Brasil tem sido também observada em outras partes do mundo, onde as políticas de combate à fome tem priorizado cada vez mais a prática da agroecologia para a garantia de segurança alimentar e nutricional das populações humanas.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Roberts, P.. O fim dos alimentos. Ed Elsevier. (2009) 364p.

    2. Mazoyer, M. e Roudart, L.. História das agriculturas no mundo. Ed. Unesp. (2010) 567 p.

    3. FAO. 2015. State of food insecurity in the world. Food and Agriculture Organization of the United Nations. (2015). 61p. Roma.

    4. United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2015). World Population Prospects: The 2015 Revision, Key Findings and Advance.

    5. Kepple, A.W. e Segall-Corrêa, A. M.. "Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional". Ciência & Saúde Coletiva, (2011) 16(1):187-199.

    6. Thrupp, L. A.. Linking agricultural biodiversity and food security: the valuable role of agrobiodiversity for sustainable agriculture. International affairs 76.2 (2000):283-297.

    7. Bommarco, R.; Kleijn, D.; Potts, S. G. "Ecological intensification: harnessing ecosystem services for food security". Trends in Ecology & Evolution 28.4 (2013):230-238

    8. Tscharntke, T. et al. "Global food security, biodiversity conservation and the future of agricultural intensification". Biological Conservation 151.1 (2012):53-59.

    9. De Schutter, O. "The right of everyone to enjoy the benefits of scientific progress and the right to food: from conflict to complementarity". Human Rights Quarterly 33.2 (2011):304-350

    10. Plansan. 2016-2019. Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília. (2016) 68p.