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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200018 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    A luta em defesa dos animais no Brasil: uma perspectiva histórica(1)

     

     

    Natascha Stefania Carvalho de Ostos

    Historiadora, bolsista de pós-doutorado júnior do CNPq no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

     

     

    Cachorros, gatos, cavalos e outros bichos são presença constante nas redes sociais utilizadas pelos brasileiros. No Facebook, fotos e vídeos mostram animais interagindo com seus donos, provocando milhares de visualizações e "curtidas" por parte dos usuários. Em paralelo, Organizações Não Governamentais (ONGs) em defesa dos animais são onipresentes na web, denunciando casos de maus-tratos e promovendo a adoção de animais abandonados. O fenômeno de popularização da chamada causa animal é confirmado por pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que divulgou, em junho de 2015, a "Pesquisa Nacional de Saúde", com dados coletados no ano de 2013. As informações obtidas evidenciam a importância dos animais de estimação na vida dos brasileiros:

    Em 2013, 44,3% dos domicílios do país possuíam pelo menos um cachorro, o equivalente a 28,9 milhões de unidades domiciliares. [...] A população de cachorros em domicílios brasileiros foi estimada em 52,2 milhões, o que indicou uma média de 1,8 cachorro por domicílio, considerando-se o conjunto de domicílios com este animal. Em relação à presença de gatos, 17,7% dos domicílios possuíam pelo menos um, o equivalente a 11,5 milhões de unidades domiciliares. [...] A população de gatos em domicílios brasileiros foi estimada em 22,1 milhões, o que representa aproximadamente 1,9 gato por domicílio com este animal. (2).

    A imprensa deu grande destaque à pesquisa, pois ela evidenciava um detalhe curioso: existiam mais cachorros do que crianças nos domicílios brasileiros, já que o número de crianças somava 44,9 milhões (3). O certo é que, em nossa sociedade, o ativismo em defesa dos animais cresceu juntamente com o número dos chamados pets, promovendo a adesão de crianças e adultos à luta em favor dos direitos dos bichos, contra a crueldade e os maus-tratos a eles infligidos. Entretanto, a despeito da ampliação desse engajamento nos dias de hoje, a luta em prol dos animais não é recente no Brasil.

     

    SOCIEDADES PIONEIRAS

    As primeiras leis de proteção aos animais surgiram na Inglaterra, ao longo do século XIX. Antes disso existiram restrições à caça, mas o intuito não era a proteção dos bichos e sim garantir o privilégio de caça aos nobres (4). Na esteira da luta em defesa dos animais, foi criada, no ano de 1824, em Londres, a Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals. A partir de então, postos da entidade inglesa e sociedades congêneres foram criados por toda a Europa e nos Estados Unidos (5).

    No Brasil, a pioneira foi a União Internacional Protetora dos Animais (Uipa), criada na cidade de São Paulo, em 1895, e que existe até os dias de hoje. Composta por membros da elite paulista (políticos, juristas, professores etc.), a sociedade teve como um dos seus fundadores Ignácio Wallace da Gama Cochrane (1836-1912), que também participou da criação, em 1903, do Instituto Pasteur, de São Paulo, referência no combate à raiva (6). A despeito de terem sido criadas outras organizações no país, como por exemplo, a Sociedade Brasileira Protetora dos Animais (1907), no Rio de Janeiro, desde as primeiras décadas do século XX o estado de São Paulo se destacou na defesa dos animais, demonstrando um forte ativismo.

     


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    Um exemplo, é a Sociedade União Infantil Protetora dos Animais (Suipa), que se estabeleceu em 1930 e que tinha como diferencial promover a causa animal por meio da educação infantil, o que se explica pela presença marcante de professoras como sócias e colaboradoras da organização. Dentre as iniciativas da entidade figuravam diligências em socorro aos animais abandonados, denúncia às autoridades em caso de maus-tratos, recolhimento de instrumentos que pudessem ferir os animais etc. Assim como a Uipa, a sociedade contou com a participação e o apoio de integrantes da elite paulista, garantindo, assim, espaço na mídia impressa, fundamental para a divulgação de suas iniciativas. (7).

    Interessante notar que essas sociedades possuíam um alto grau de organização e boa estrutura, mesmo se compararmos com as ONGs da atualidade. A Uipa dispunha de "hospital, cemitério e asilo zoophilos" (8), além de linhas telefônicas para receber denúncias e pedidos de ajuda, com um número exclusivo para o plantão noturno. Nos casos mais graves, enviava socorristas em automóvel para auxiliar animais de grande porte vítimas de acidentes, "Às 7:30 da manhã de 13 do corrente, foi a U.I. Protetora dos Animais avisada que na Estrada de Santo Amaro n. 44, um burro tinha caído num poço. Dirigindo-se para lá o pessoal no carro de socorro [...] foi o burro retirado do poço, que era muito fundo e estreito, em boas condições "(9). Voluntários e empregados, dentre os quais veterinários, prestavam atendimento aos bichos cujos donos não podiam arcar com o tratamento, além de abrigar animais abandonados.

    Contudo, em que pese a causa comum partilhada entre os sócios dessas entidades e a imagem de união que gostavam de propagandear, existiram conflitos que chegaram a suscitar dissidências e até acusações públicas em jornais da época. Assim é que, em razão de desentendimentos internos sobre a gestão da Uipa, alguns dos seus membros abandonaram a associação e fundaram outra, chamada Sociedade Paulista Protetora dos Animais, em 1932, sob a alegação de que aquela entidade "jamais cuidou dos verdadeiros fins zoophilos visados em seus estatutos, o que, por isso mesmo, nos obrigou a constituir uma nova sociedade" (10). Tais informações indicam a pujança e o poder de mobilização da causa animal no Brasil da década de 1930, especialmente no estado de São Paulo, que assistiu à fundação de um número significativo dessas entidades, todas formalmente constituídas, com estatutos publicados no Diário Oficial do Estado, possuindo patrimônio e hierarquia funcional definidos. A capacidade de divulgação e disseminação da luta em favor dos animais no Brasil se deveu muito às estratégias de comunicação dessas organizações, sendo que algumas delas editavam seus próprios jornais.

     

    AS REVISTAS AMIGO DOS ANIMAIS E ZOOPHILO PAULISTA

    A revista Amigo dos Animais era publicada mensalmente, em São Paulo, pela Sociedade União Infantil Protetora dos Animais, voltada para crianças e adolescentes. O periódico foi lançado no início de 1931 e contava com propagandas dirigidas a pais de crianças e donos de animais, estampando fotografias de crianças acompanhadas dos seus bichos de estimação. Todas as edições anunciavam um concurso cultural orientado para meninos e meninas em idade escolar, propondo que elaborassem redação ou desenho sobre um tema. A publicação se dizia adepta de uma educação prática, mantendo seções como "A escola da roça" e "Conhecimentos úteis", buscando despertar não apenas o sentimento de amor aos animais, mas munir as crianças de informações que as capacitassem a compreender a utilidade das espécies existentes. Tratava-se, portanto, de formar cidadãos brasileiros esclarecidos e trabalhadores, de modo que a causa animal defendida pela revista integrava uma proposta de formação moral e prática do homem brasileiro, com foco nas crianças, tidas como mais receptivas aos ensinamentos propostos.

    Porém, para além do conteúdo, a revista estava empenhada na mobilização de educadores e da rede de ensino na campanha em prol dos animais. A publicação tratou de firmar parcerias com escolas públicas, promovendo concursos para os alunos, distribuindo edições das revistas nos educandários, ministrando palestras, convocando os professores a direcionar as matérias de modo a informar as crianças sobre a necessidade de zelar pelos animais. Portanto, a revista possuía uma estratégia editorial bem delimitada. Ao invés de investir na busca errática por um público infantil pulverizado, os responsáveis pelo periódico procuraram as escolas públicas estaduais, que possuíam espaço estruturado, grande concentração de crianças e especialistas no trato infantil.

    Já o periódico Zoophilo Paulista era editado mensalmente pela União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo. A revista, criada no ano de 1919, comentava as experiências de proteção aos animais em outros países, publicando artigos de divulgação científica, sobre as qualidades enobrecedoras dos animais etc. Voltado para o público adulto, o Zoophilo Paulista trazia maior diversidade de temas, como as condições do comércio dos animais, os procedimentos adotados nos abatedouros, debates sobre os direitos dos animais etc.

    No início do século XX as principais cidades do país, particularmente Rio de Janeiro e São Paulo, passaram por profundas transformações urbanísticas. Entre 1872 e 1920 a capital paulista saltou de 31 mil moradores para 580 mil (11), e com os recursos econômicos provenientes da atividade cafeeira expandiram-se serviços como iluminação pública, bondes elétricos, abertura de vias, além do aumento do número de automóveis. Nessa transição, de um ambiente onde os animais eram fundamentais para o funcionamento da cidade para uma experiência temporal mais acelerada, ocorriam descompassos. Assim é que a revista Zoophilo Paulista enfatizava continuamente as mortes de animais por atropelamento, tanto por carros particulares como por bondes, denunciando a imprudência dos condutores e, após o sinistro, o abandono dos bichos na via pública. Tais notícias eram frequentemente acompanhadas por fotografias das cenas dos acidentes, expondo cavalos, burros e cães mortos e feridos, focalizando sangue e até vísceras expostas. A crueza das imagens certamente tinha uma intencionalidade, sensibilizar o leitor para a brutalidade dos acidentes, evidenciar o sofrimento dos animais e a necessidade de evitar tais ocorrências. Na maioria dos relatos destacava-se a pronta atuação da Uipa mas, dada a gravidade dos ferimentos, o resultado era quase sempre o sacrifício do animal, "vemos o animal da boleia sacrificado pelo veterinário da União Internacional Protetora dos Animais, por estar o muar com a barriga toda rasgada, pondo à vista o estômago muito perfurado, como mostra a fotografia. Ocasionou este desastre um auto-ônibus" (12).

    Nota-se, portanto, que os impressos Amigo dos Animais e Zoophilo Paulista, mesmo que especializados no mesmo tema e publicados por sociedades protetoras, possuíam viés editorial diferenciado, cada qual priorizando um tipo de público leitor e enfatizando aspectos distintos para alcançar a meta de defesa dos animais.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    A necessidade de desenvolver estudos voltados para a investigação das relações entre os homens e os animais, ao longo do tempo, está afinada com a preocupação da sociedade atual com a natureza. A história, sempre atenta ao presente, tem devotado esforços importantes para a compreensão das diversas representações da natureza construídas pelo homem no tempo, ciente de que não existe apenas uma noção de natureza e sim várias, produzidas no próprio devir histórico, pelas diferentes sociedades humanas (13). O Brasil, constantemente associado à uma natureza exuberante, ocupa o centro das discussões globais sobre o tema. Mas apesar da grande visibilidade do assunto nos dias de hoje, as reflexões sobre o ambiente natural integram o campo intelectual e governamental brasileiro há muito tempo, tendo mobilizado diversos sujeitos históricos segundo os aportes sociais de cada conjuntura.

    Nas décadas de 1920, 1930 e 1940 as discussões sobre a necessidade de se estabelecer formas "racionais" e menos destrutivas de lidar com a natureza adquiriram grande força e impulso no Brasil (14). Portanto, não é de se estranhar que tal período tenha testemunhado a criação de um número significativo de sociedades protetoras dos animais. Essas entidades preocuparam-se predominantemente com os bichos domesticados, presentes na lida diária (cavalos, bois, burros) e com aqueles que, para além da utilidade, eram tidos como de estimação, como cães e gatos. Os animais ditos selvagens também mereceram consideração, mas eram genericamente citados ao se admoestar a sociedade a respeitar as leis de caça e pesca, no sentido de combater práticas cruéis (como o uso de armadilhas), que pudessem causar sofrimento desnecessário. A proximidade com a realidade humana, principalmente na cidade, foi o parâmetro para a maior ou menor atenção que as sociedades, e as suas revistas, concederam aos diversos tipos de animais.

    O certo é que foi graças à ação e à pressão de tais organizações que foi promulgada, no ano de 1934, a primeira lei brasileira estabelecendo especificamente "medidas de proteção aos animais" (15). A partir desse dispositivo legal todos os animais existentes no país passaram a ser tutelados pelo Estado e os maus-tratos a eles dispensados tornaram-se passíveis de gerar multas e até prisão. Assim, apesar da história dos movimentos de proteção aos animais no Brasil ser um tema pouco estudado, ele pode ser de grande interesse para a sociedade contemporânea, cada vez mais preocupada em problematizar as relações entre o homem e a natureza e as balizas éticas dessa interação. A perspectiva histórica amplia os horizontes do debate e evidencia que os fundamentos que guiam a defesa dos animais ao longo do tempo variam conforme a realidade política, cultural e econômica de cada sociedade.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Pesquisa em andamento, sob a supervisão da prof.ª dr.ª Regina Horta Duarte, do Departamento de História da UFMG, a quem agradecemos pelas sugestões e pelo acesso ao seu acervo documental. Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (processo: 165936/2015-0).

    2. Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/pt/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2902&busca=1&t=pns-2013-tres-cada-quatro-brasileiros-costumam-buscar-atendimento-medico-rede-publica>. Acesso em 04 julho 2015.

    3. Disponível em: <http://f5.folha.uol.com.br/bichos/2015/06/1636937-brasileiros-tem-mais-cachorros-que-criancas-segundo-pesquisa-do-ibge.shtml>. Acesso em 04 julho 2015.

    4 Thomas, K. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais. São Paulo: Companhia das Letras. 1988.

    5. Para um mapeamento das leis e sociedades criadas ao longo do tempo, ver: Mól, S.; Venancio, R. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2014.

    6. Teixeira, L. A.; Sandoval, M. R. C.; Takaoka, N. Y. "Instituto Pasteur de São Paulo: cem anos de combate à raiva". Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos [online]. 11, 3. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702004000300011>. Acesso em 27 julho 2016.

    7. "Exposição de comedouros para aves". Correio Paulistano, São Paulo, nº. 23.895, 21 junho 1930, p. 6.

    8. Diário Nacional, São Paulo, ano III, nº. 822, 04 março 1930, p 4.

    9. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, nº. 128, março 1931, s./p.

    10. Diário Nacional, São Paulo, nº. 1483, 09 junho 1932, p 5.

    11. Neto, J. M. A. "Primeira República: economia cafeeira, urbanização e industrialização". In: Ferreira, J.; Delgado, L. A. N. (orgs.). O Brasil republicano: O tempo do liberalismo excludente - da proclamação da República à revolução de 1930. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p 226-227. 2006.

    12. "Horrível desastre". Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, nº. 121, junho 1930, s./p.

    13. Cronon, W. (org.). Uncommon ground - rethinking the human place in nature. New York: W. W. Norton & Company, p 50-51. 1996; Drummond, J. A. "A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa". Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 4, 8, pp 177-197. 1991; Few, M.; Tortorici, Z. (eds.). Centering Animals in Latin American History. Durham: Duke University Press. 2013.

    14. Duarte, R. H. A biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil - 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2010; Ostos, N. S. C. "O Brasil e suas naturezas possíveis (1930-1945) ". Revista de Indias, Madri, 72, 255, pp 581-614. 2012.

    15. Decreto nº. 24.645, de 10 julho 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D24645.htm>. Acesso em: 13 maio 2015. Antes desse decreto existiram normas estaduais esparsas sobre o assunto; e uma lei nacional de 1920 que ao regular as "casas de diversões e espetáculos públicos", estabelecia: "Art. 5º Não será concedida licença para corridas de touros, garraios e novilhos, nem briga de galos e canários ou quaisquer outras diversões desse gênero que causem sofrimentos aos animais". Decreto nº. 14.529, 09 dezembro 1920. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-14529-9-dezembro-1920-503076-republicacao-93791-pe.html>. Acesso em 25 abril 2016.