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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200019 

    CULTURA
    LITERATURA

     

    Quatro décadas sem Clarice

     

     

    Patricia Piacentini

     

     

    Em 1977, o Brasil perdia um dos ícones da sua literatura: Clarice Lispector, que marcou a terceira fase do modernismo, ou geração de 1945, com a proposta de um estilo livre para falar sobre a vida, com obras que tratam do indivíduo, seus dilemas e sentimentos. "A escrita clariceana traz uma dimensão introspectiva do ser humano que eu, particularmente, nunca vi em nenhum outro escritor brasileiro. A profundidade com que tratou de dilemas e sentimentos humanos é ousada e demanda muita entrega do leitor que deseja dialogar com ela. Por causa dessa profundidade, suas personagens são muito instigantes e as obras se desenvolvem a partir disso, privilegiando mais sensações do que ações", descreve Vivian Resende, autora de Clarice Lispector e a descoberta do mundo (Editora UnB, 1984).

    Clarice trouxe inovação à linguagem literária brasileira, assim como Guimarães Rosa. "Ela apresenta um modo econômico na linguagem, além de um traço feminino recorrente ao longo de toda a narrativa. Apesar de Clarice escrever no mesmo período de Guimarães Rosa, o modo como cada um trata a linguagem é completamente diferente. Um nunca repetiu o outro e isso trouxe uma contribuição para a narrativa literária brasileira bastante inusitada. Entendo que a escritora é um ícone pelo modo ímpar como trata da relação entre vida e obra. Nenhum outro escritor de nossa literatura trouxe tudo para dentro da literatura como ela fez, tirando proveito do bios na construção da ficção. Tanto é verdade que o resto é exíguo em se tratando da escritora", comenta Edgar Cézar Nolasco, especialista em literatura comparada e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

     

     

    MISTÉRIO

    Clarice Lispector foi escritora, tradutora e jornalista: assinou colunas em jornais e revistas, algumas com pseudônimos, o que corrobora a aura de mistério em torno dela. Entretanto, acredita-se que, apesar de todos esses disfarces, ela dava pistas de quem realmente era em seus textos. "Muitas vezes a ficção serve como um disfarce para Clarice, tanto que vários biógrafos destacam episódios de sua vida que são coincidentes com situações relatadas em seus contos. A escritora procurava evitar a exposição, temia 'vender a intimidade', como ela mesma disse em uma crônica e por isso criava personagens cujos dramas disfarçassem situações e/ou sentimentos que vinham da experiência dela mesma", destaca Rezende. "Exemplos disso estão em contos como 'Felicidade clandestina' e 'Restos de carnaval'. Esse disfarce, claro, é muito bem feito e por isso parece às vezes improvável localizar a autora nele, mas, ainda assim, uma análise cuidadosa permite encontrar essas pistas", completa.

    Para Nolasco, a autora deixava rastros de sua vida e personalidade em seus trabalhos. "Acho que, no fundo, ela não era misteriosa coisa nenhuma. O que fez foi criar essa aura de mistério para, assim, se proteger e ao mesmo tempo seduzir o leitor".

     

    PAPEL DA MULHER

    Clarice deu importante contribuição nas reflexões sobre a mulher e seu espaço na sociedade. "Se, por um lado, há ainda uma subalternização do ser feminino no projeto literário, por outro há uma saída estrategicamente política acerca da mulher, e que só poderia ser pensada por uma escritora mulher. A hora da estrela (1977) é o melhor exemplo disso: o escritor Rodrigo S. M. não está ali por acaso. Nesse sentido, falta estudar mais a relação de sua literatura com a política não mais pensada sobre a mulher, mas a política pensada por mulheres intelectuais subalternas latinas", discute Nolasco.

    "Clarice foi filha, mãe, dona de casa, esposa (até se separar do marido diplomata) e, ao mesmo tempo, se dedicou à sua profissão e escreveu também por necessidade financeira. Acho que isso tudo contribui para que ela tenha visto a mulher como protagonista na sociedade, como alguém cujos sentimentos são intensos e dignos de uma atenção cuidadosa. A mulher, na obra de Clarice, não é alguém menor ou sem voz, mas sim alguém que toma decisões, trabalha, faz contas, reflete, age, questiona, sente. Este protagonismo nos ajuda a valorizar a figura feminina em vez de menosprezá-la", explica Resende.

    No livro Aprendendo a viver, Clarice Lispector (Ed. Rocco, 2004), há relatos da escritora em que ela diz não se considerar uma intelectual: "Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora, já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade".

    Para Nolasco, ela não queria se ver uma intelectual da época, basicamente moderna, canônica, presa a uma tradição eurocêntrica. "A hora da estrela, para mim, de longe o melhor livro dela, traz a inscrição de uma intelectual basicamente brasileira, latina, subalterna, com uma proposta descolonizadora com relação ao modo de se fazer literatura nos trópicos, inclusive desfazendo a própria tradição sustentada anteriormente por ela mesma".

    Resende vê a escrita de Clarice Lispector como um exercício intelectual, visto que poucos se dedicaram a compreender a natureza humana como ela. "Ela não queria se levar tão a sério e por isso não se via como intelectual, mas eu não dissocio sua função intelectual da função de escritora. Vejo-a exercendo as duas coisas simultaneamente", justifica.

     

    CITAÇÕES

    Clarice Lispector aparece como autora de muitas citações compartilhadas nas redes sociais. Como tudo na internet, muita gente compartilha sem saber se as citações são realmente dela, até mesmo sem saber quem foi a escritora. "Isso ilustra a prática de escrita de Clarice: ela foi uma contrabandista de ideias, fragmentos alheios. Enfim, uma copista desbragada de pensamentos de outros intelectuais, esquecia propositalmente as fontes", relata Nolasco. Segundo ele, ela tirou muito proveito dessa prática. "A tradução de quase 50 livros confirma o que quero dizer. Algumas foram feitas por ela mesma; outras apenas levaram seu nome. Mas o que importa é se seu nome vem estampado na capa do livro. Ou, agora, na tela do computador. Há uma Clarice que foi se inscrevendo nas redes virtuais e que agora já pode ser estudada pela academia", completa. Resende acredita que algumas pessoas agem de má fé e se apropriam do nome de Clarice Lispector porque sabem que se trata de uma referência forte e muito respeitada na literatura, por isso atribuem a ela a autoria de qualquer coisa que se deseje espalhar. "Acho que a pessoa que se interessa por Clarice pode usar a internet como ponto de partida, mas não como única referência, pois é realmente alto o risco de se deparar com algo que não tenha sido escrito por ela", salienta Resende.

     

    40 ANOS DE A HORA DA ESTRELA

    Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 10 de dezembro, mas antes de completar dois anos sua família veio para o Brasil, instalando-se inicialmente em Maceió e depois em Recife, tanto é que a escritora, que se naturalizou brasileira, declarava-se pernambucana. Ela perdeu a mãe aos oito anos e, na adolescência, mudou-se com o pai e as irmãs para o Rio de Janeiro. A escritora, tradutora e jornalista formou-se na verdade em direito. Por conta de seu casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente viveu na Itália, Suíça e Estados Unidos. A escritora faleceu em 9 de dezembro de 1977 e deixou dois filhos. Em comemoração aos 40 anos de morte e do lançamento de um de seus livros mais importantes e também seu último romance, A hora da estrela, publicado pela primeira vez em 1977, a editora Rocco, que detém os direitos sobre sua obra, publica uma nova edição desse livro. Além de capa dura, o livro chega às prateleiras com textos críticos assinados por nomes como Eduardo Portella e Nadia Gotlib, entre outros, e um caderno extra com reproduções em fac-símile do manuscrito original da obra. Além disso, o infantil A mulher que matou os peixes também chega às livrarias em nova edição, com ilustrações da neta de Clarice, Mariana Valente.