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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200021 

    CULTURA
    FILOSOFIA

     

    Realidade ou simulação?

     

     

    Victória Flório

     

     

    Em suas clássicas reflexões filosóficas, René Descartes fala sobre um gênio maligno que, para nos ludibriar, se dedica a simular a realidade em que vivemos em seus mínimos detalhes. O filósofo explora, através da metáfora, que aparece em suas Meditações sobre a filosofia primeira, em 1641, a ideia de que não existem garantias de que aquilo que pensamos sobre a realidade seja, de fato, real. A reinterpretação contemporânea desse gênio maligno se expressa na ficção científica do fim da década de 1990, em filmes como 13º andar (1999), na trilogia Matrix, e, já na primeira década do século XXI, em episódios da série britânica Black mirror. A possibilidade de que a realidade seja simulada por um programa de computador, como no cinema, começou a receber maior atenção quando o filósofo sueco Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, publicou a série de três hipóteses conhecidas como argumento da simulação, em 2003. No ano passado o assunto foi tema do Isaac Asimov Memorial Debate, do qual participaram os físicos teóricos James Gates, Universidade de Maryland, Lisa Randall, Harvard, o cosmólogo Max Tegmark, a física Zohreh Davoudi, ambos do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e o filósofo David Chalmers, da Universidade de Nova York. Anualmente organizado pelo Museu de História Natural, em Nova Iorque, o debate foi mediado por Neil de-Grasse Tyson, um dos mais famosos astrofísicos da atualidade.

    Interessado nas implicações do desenvolvimento da tecnologia, especialmente na capacidade de simular consciência, Nick Bostrom propôs, em 2001, a primeira versão do argumento da simulação. O "Você está vivendo em uma simulação computacional?", publicado em 2003 na revista Philosophical Quarterly, traz as três hipóteses que compõe o argumento: 1. As civilizações humanas têm grandes chances de se extinguir antes de atingir a maturidade tecnológica; 2. As civilizações que atingiram a maturidade tecnológica perderam o interesse em criar realidades simuladas; 3. Estamos em uma simulação computacional (esta última é a hipótese da simulação).

     

     

    REALIDADES EM CAMADAS

    No universo descrito no filme 13º andar, cientistas começam a simular mentes conscientes. A trama se desenvolve de maneira tal que eles percebem que também estão dentro de uma simulação. Ou seja, há uma rede de simulações sucessivas em que as mentes estão aprisionadas dentro do computador. Para Bostrom, esse é exatamente o ponto da terceira hipótese, ou seja, um futuro onde começamos a rodar milhares de simulações de seres conscientes, que, um dia, também começam a rodar suas próprias simulações. Se um daqueles seres da simulação rodada por nós se fizer essa mesma pergunta: "Ei, estou dentro de uma simulação?", então, estatisticamente, faz mais sentido ele se ver como uma das milhares de mentes simuladas do que parte da civilização que originalmente começou a rodar simulações, a biológica (no caso nós). O cosmólogo e astrofísico britânico, Martin Rees, já fez previsões apocalípticas sobre um futuro cheio de desastres em "Our final century: will civilization survive the 21th century?". Para ele, vamos nos extinguir antes de atingir a maturidade tecnológica, o que corrobora a primeira hipótese do argumento de Bostrom, ou seja, nunca chegaríamos a simular consciências. Já a física teórica Lisa Randall não acredita que a terceira hipótese seja verdadeira porque, para ela, não haverá, no futuro, interesse em simular consciências, e, portanto, o argumento estatístico não faz muito sentido.

    No MIT, a física Zohreh Davoudi tenta obter evidências empíricas de que existe alguém rodando uma simulação da nossa realidade. Para isso ela busca pistas do fim do mundo.

     

     

    Davoudi desenvolve simulações que identificaram assimetrias no movimento e colisões de partículas elementares - partículas fundamentais da matéria. O alto custo computacional dessas simulações exige que, dentro delas, as leis da física sejam colocadas em um volume finito, um mundo com um fim bem definido. Para a física do MIT, caso existisse alguém rodando uma simulação do nosso universo, iria fatalmente se deparar com o problema de custo computacional. Por isso, se ela encontrar na assinatura dos raios cósmicos - partículas de alta energia que chegam à Terra vindas de fora do sistema solar - o mesmo tipo de assimetrias presentes em suas simulações, no laboratório, estaria mostrando que o espaço-tempo não é contínuo, mas discreto, finito, um indício de que tem alguém rodando uma simulação deste universo. Quer dizer, se há um fim do mundo, ele nos mostra que o mundo não é tão real como pensamos.

     

    ALÉM DA REALIDADE?

    Como nos video-games, o grau de compatibilidade entre nosso mundo e o virtual é cada vez maior. Bostrom argumenta que historiadores do futuro, por exemplo, poderiam tentar usar simulações para estudar o passado. Da mesma forma que Bostron, Elon Musk, criador das empresas Space-X e Tesla Motors, não descarta a possibilidade de vivermos em uma simulação. Em entrevista para o jornal The Guardian, em 2016, ele afirmou: "Há 40 anos tínhamos o jogo de videogame Pong, algo muito simples, com dois retângulos e um ponto, mas que foi o primeiro jogo lucrativo. Isso é onde estávamos. Agora temos simulações super realistas, que melhoram a cada ano, com milhões de pessoas jogando simultaneamente. Logo teremos realidade virtual, realidade aumentada. Seja qual for a taxa de melhorias que você assumir, os video-games vão se tornar indistinguíveis da realidade", declarou. Para Musk e Bostrom, portanto, a probabilidade de que, um dia, simularemos mentes conscientes não é desprezível.

    Reinterpretada pelas ciências cognitivas, a questão sobre a existência da realidade passa a ser uma discussão sobre a percepção do que é real. Recentemente, o professor de ciências cognitivas da Universidade da Califórnia, David Hoffman, declarou à revista The Atlantic que o mundo que se apresenta para nós, através da percepção de sons, cheiros, texturas, sabores etc., não se parece em nada com a realidade: "O mundo que conhecemos é a melhor aposta do cérebro para o que o mundo realmente é, um tipo de simulação interna de uma realidade externa". Para o pesquisador, essa é uma característica que devemos à evolução porque é ela quem maximiza a adequação de qualquer característica animal, condenando à extinção os seres que enxergam a realidade de forma mais verossímil. Extremamente complexo, a hipótese da simulação envolve diversas áreas de conhecimento, desde filosofia, teoria da mente, até física e mecânica quântica. Respostas ainda não são parte da nossa realidade, seja ela simulada ou não. Pragmático, o cosmólogo do MIT, Max Tegmark, fez a seguinte afirmação: por ora, o importante "é ir lá fora e fazer coisas realmente interessantes, de forma que os simuladores não te desliguem".