SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200022 

    CULTURA
    PSICOLOGIA

     

    Medicalização, tolerância e o silenciamento da dor

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

    Em seu relatório de 2016, a Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), traz dados alarmantes sobre o consumo de analgésicos, especialmente aqueles fabricados a partir de opioides. Em 2014, nos Estados Unidos, por exemplo, houve mais de 18 mil mortes devido à overdose com esse tipo de medicamentos, os quais precisam de receita médica para serem comprados. No mesmo período, houve 10 mil mortes por overdose com heroína.

    Diante do crescimento do consumo desenfreado, é necessária uma reflexão sobre as circunstâncias em que essas drogas devem ser administradas. Estamos menos tolerantes à dor? Diante de um cenário já diagnosticado como epidemia de overdose, vários estados norte-americanos vêm estabelecendo programas de vigilância dos remédios vendidos com receita, incluindo a capacitação dos médicos sobre a prescrição correta de opioides. Outra medida foi incluir na bula dessa classe de analgésicos informações sobre a gravidade dos riscos advindos do uso indevido, entre eles, o vício e a overdose.

     

     

    De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (Iasp), dor é uma experiência sensorial e emocional associada a uma lesão real ou potencial dos tecidos ou descrita em termos de tal lesão. Desencadeada quimicamente e transmitida para o cérebro sob a forma de impulsos elétricos, a dor envolve mais do que aspectos físicos, como fatores ambientais, culturais, históricos e pessoais que se entrelaçam e determinam a sensação de dor. "Desde tempos imemoriais a dor é um sentimento desagradável do qual os seres humanos tentam escapar", conta Andrea Golfarb Portnoi, psicoterapeuta, coordenadora do Departamento Científico de Saúde Mental e Dor na Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (Sbed).

    "O homem primitivo acreditava que a dor era causada por maus espíritos, os egípcios pensavam que o homem sentia dor quando espíritos dos mortos entravam no corpo dos vivos. Daí a prática de sangrias para expulsar o espírito. A dor continua sendo percebida como algo ruim, mas hoje temos meios diversificados e acessíveis para escapar dela e, nesse sentido, os analgésicos são fundamentais", acredita.

     

    PERIGO AO ALCANCE DA PRATELEIRA

    Existem dois tipos de analgésicos, os simples, que podem ser comprados sem receita médica, e os opioides, mais usados em casos de dor aguda e em alguns tipos de dor crônica. Nenhum é 100% seguro. Mesmo os analgésicos simples, quando consumidos por mais de sete dias podem provocar úlceras gástricas, nefropatia e insuficiência renal. Em um estudo mais recente, publicado em março deste ano no European Heart Journal, pesquisadores da Universidade Hospital Gentofte, na Dinamarca, afirmam que o uso de diclofenaco e ibuprofeno, dois dos mais populares analgésicos e anti-inflamatórios, aumenta em mais de 30% o risco de infarto. Utilizados para combater um espectro amplo de dores, desde enxaqueca até inflamações, esses medicamentos podem ser comprados sem receita médica e estão entre os mais consumidos em todo o mundo.

    Para o professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Rogério Paes Henriques, a ampla oferta de medicamentos analgésicos é parte de um cenário de medicalização intensa. Em texto publicado na Revista Mal-Estar e Subjetividade (v.XII, no. 3-4, 2012), ele explicou que isso significa uma extensão crescente da jurisdição médica - sua autoridade e suas práticas - na vida das pessoas. Disso resulta, entre outros, na conversão direta de problemas sociais e morais em doenças. Além disso, de acordo com Henriques, o capitalismo entrou no setor de saúde, transformando doentes leigos e passivos em indivíduos consumidores ativos de bens e serviços biomédicos, responsáveis por seu próprio bem-estar.

    Segundo Portnoi, que já investigou a percepção de dor em doentes com fibromialgia, nosso corpo possui um sistema opioide endógeno, responsável pela produção de endorfinas cuja ação se parece com a da morfina.

    "A ativação desse sistema é influenciada por fatores socioculturais, cognitivos e emocionais, que podem atenuar ou ampliar a dor percebida", diz. Entre os fatores socioculturais pode-se citar a grande oferta de analgésicos e a intensa propaganda da indústria farmacêutica endereçada aos consumidores e não aos médicos. "A facilidade de acesso a esses medicamentos certamente estimula seu consumo", afirma Portnoi. "No entanto, em uma cultura altamente medicalizada como a nossa, as pessoas têm mais conhecimento sobre o mecanismo dos remédios, mas não sobre possíveis interações com outros medicamentos ou sobre reações específicas em seu organismo", pontua.

    A forma como damos sentido ao sofrimento é histórica. Esse é outro aspecto importante mencionado pela psicoterapeuta: "Antes as pessoas queriam saber de onde vinha a dor, encontrar um significado para ela. Se o sujeito tinha uma dor de cabeça ele se perguntava se era porque tinha comido algo diferente, se era porque tinha dormido mal etc. Hoje não há mais essa preocupação", explica. Mas a dor é, na verdade, parte de um sistema de proteção, um alarme. Esse aspecto, entretanto, tem sido deixado de lado, em favor de um tipo de silenciamento rápido da sensação de dor, como se ela fosse um mal em si mesma que deve eliminado rapidamente, um sofrimento inútil.

     

    MAL (DES) NECESSÁRIO

    Um dos exemplos mais significativos de como o fator cultural determina a tolerância à dor é o caso da dor do parto. Um estudo de um grupo de enfermeiros obstetras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), apresentado em 2013 no Seminário Nacional de Pesquisas em Enfermagem, mostrou que aspectos psicossociais e culturais exercem demasiada influência na maneira como as mulheres experimentam a dor no parto. Segundo afirmaram Octavio Muniz da Costa Vargens e colaboradores, no Brasil, o modelo biomédico aborda o ciclo gravídico como uma condição externa à fisiologia da mulher, um processo que precisa de intervenção.

     

     

    "Segundo a perspectiva do modelo tecnocrático medicalizado, a mulher não é detentora do poder ou da capacidade de parir. Ela é entendida como portadora de um corpo imperfeito e incapaz de dar à luz, necessitando, portanto, de um profissional que intervenha nesse processo", afirmaram. Por essa razão, a medicalização exerce influência na ressignificação da dor no parto, que passa a ser um problema a ser abolido, um tipo de sofrimento inútil. No entanto, para esses pesquisadores, quando são adotadas posturas não invasivas, em um modelo desmedicalizado no cuidado feminino, abrem-se possibilidades para ressignificações da dor como um sofrimento real e necessário, que faz parte de uma enorme transição do corpo e da vida da mulher, a chegada de seus filhos.

    A mesma ideia do sofrimento inútil pode ser aplicada ao sofrimento psíquico. Conforme explica o professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Jonatas Ferreira, em artigo publicado em 2014 (Forum Sociológico, 24), por essa abordagem o sintoma é a própria doença e a intervenção química - com medicamentos - toma a frente do tratamento psicanalítico, que se traduz em uma terapêutica pela palavra que busca dar sentido ao sofrimento existencial. "A consequência mais radical desse silenciamento é o emudecimento da dor que se transforma apenas em um conjunto de sintomas, objeto de tratamento bioquímico", afirmou. Para ele, essa postura a favor de uma analgesia é compatível com a cultura do consumo, do gozo superficial. "A inconveniência da depressão, da melancolia no mundo contemporâneo lança uma luz sobre as estatísticas de consumo de medicamentos psicoativos", escreveu.

     

    PSICOFARMACOLOGIA COSMÉTICA

    Segundo Henriques, enquanto aumenta a medicalização para tratar desconfortos psíquicos, diminui o limiar de tolerância aos sofrimentos habituais, ao mal-estar existencial, inaugurando o que ele chama de "psicofarmacologia cosmética", que silencia a escuta da existência e da história do sujeito. Se em seus primórdios, a psicofarmacologia devolveu ao homem seu quinhão de liberdade, quando medicamentos neurolépticos (ou antipsicóticos) possibilitaram a ressocialização dos classificados como loucos ou quando antidepressivos ajudaram neuróticos a superar momentos de crise, mais recentemente, no entanto, ela "encerrou o sujeito em uma nova alienação ao pretender curá-lo da própria essência da condição humana, ao prometer o fim da vulnerabilidade e da imperfeição", afirmou.