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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200023 

    CULTURA
    POESIA

     

    Alexandre Humberto Andrei

     

     

    ARGILA

    não me move mais a arte a o desastre, ao destroçar da fala, à evasão da sala
    não me penetra aos ouvidos, nem faz com que tudo que cerca perca o sentido
    nada mais de olvidos ou de segredos amplos ou de degredos impios
    ou de folguedos. agora ela me cala, nunca me toma nunca me empala
    embora eu empurre o corpo para precipicios, conquanto eu quisesse ainda o oficio de ouvidor
    já não sou senhor dos meus desejos. assim foi feito o despejo por um malfeitor
    que tem, talvez, o nome de idade, quem sabe responsabilidade, quem dera exaustão
    a boca louca de um fogão a gas perdeu o encanto de seus beijos
    defeito domesticado o interior sempre vazio porque por mais que trabalhem os dentes
    nada jamais alcança a sepultura de garganta. é uma gelatina de cultura sempre esteril
    um esmeril sem fio de gume. nada que aprume uma lança dentro do arcabouço incomodado ereto
    me falta um teto. vaguei por muitas casas de tantas cidades, lá foi a mocidade e o brilho
    perdi alguma capacidade interna enquanto vomitava o tombadilho
    não tinha pilulas: eu a julgava eterna
    agora desconstruo a cena em planos, a obra em partes, a vida em anos
    o tempo em fases, o tempo em ocos, a merda em tocos, a guerra em pazes, a terra em lotes,
    e o papel higienico em doze meças de picotes depois dobrados
    o que lembro do fado são lembranças. e das lembranças só trago a ponta dos sapatos
    parece que sempre andava cabisbaixo
    a luz se foi, a sensação é de uma pilha insuficiente para acender ao facho
    de uma podridão se entremeando ao mundo. de uma mansidão indesejada
    enorme me surpreende o nada. sebento me saboreia o cinza. preferia as bruxas ao cinzento
    um fantasma senta ao meu lado no cinema. um ectoplasma é meu companheiro de teatro
    por menos que eu minta é impossivel que não sinta suas presenças e tudo que falo exala
    ar estagnado. a duração do purgatorio no entreato, uma overdose de menta
    tomando todo o espaço. um sono de dono de gado. um morto no foyer que mal se aguenta
    a minha analise tão lucida nem ao menos trucida a paciencia, ela aborrece
    e em contrapartida a presença dos demais me embrutece - e não mais me arde a arte
    não mais me empolga a peça, viciado que fiquei em ser quem meça

    a pecha de inimigo da musica cabe como uma luva sobre meus timpanos velhos retesados
    se alguem canta uma uva eu quero ver a seda da pele, não mais a reconheço na angustia
    dos caroços. me encontro como um cão que perdeu o gosto pelo tutano dos ossos
    o verso passou a ser um vinculo bastante duro. melhor dizendo um muro
    aquilo que cantam os cantores eu chamo aquilo. um quilo da minha audição vale uma grama
    eu me orgulho de ser um esquilo a diuturnamente catar nozes
    nada alem de barulho me dizem as vozes. fecho a porta do quarto de silencio solitario
    dependuro minha paciencia no armario; saio em golfadas seguidas de desmaios
    gritam muito alto para meu gosto atual, tocam a respeito do que eu suspeito muito mal
    não me tocam, não me atingem, não me deslocam do meu pesado centro de gravidade virtual
    eu me recordo do tempo em que distinguia as notas do baixo e da guitarra para saborear
    eu me recordo mas é muito vago, uma vertigem de impaciencia me arrasta para a ignorancia
    uma ganancia pobre pelo entender mais rapido, uma perda de olfato para fragancias
    a tatuagem de acido era de lapis, o recortado de punhal cicatrizou uma epiderme grossa
    a velha sombra ainda escuta as mesmas canções por onde passa, o mesmo passaro em outras
    aves. contudo não detem o dono do anteparo. mesmo um disparo ao coração não o comove
    a promessa de escalar foi esquecida, se acostuma à previsão do tempo na descida
    o elixir da juventude foi perdido, como os outros come os outros e é comido
    não encontro mais em mim o baluarte, aquele que sacia sua fome pela arte
    não é mais meu o acervo da biblioteca e o tesouro do museu. não é mais ouro
    é um passeio de sorvetes e bermudas. não fica mais muda a alma e nem brada
    passou a ser de lata, o ganha-pão de um curador que eu critico por regras de estetica
    e era o meu chão meu pão, era a projeção do meu braço era o que eu dizia que eu faço
    era minha cidadela feita de ambar transparente de neon que anuncia e de refugio aço
    os quadros que cobriam as paredes eram de meus irmãos, eram que como feitos pela minha mão
    e hoje nada, nem uma penada no livro de visitantes porque só ficarei por um instante
    e vou guardar o libreto propaganda em branco e preto, melhor dizendo vou colecionar
    com outros mapas e trapos
    um satrapa do enfado um califa acumulando fronhas, meu travesseiro é uma bigorna
    durmo um sono pesado, meu sonho é uma extensão dos dias, prolongamento dos disfarces
    eu levo o enfarte a passeio na noite que outrora era tão minha, tão bela e daninha
    nada me orna. não mais me move a arte e destarte anseio

     

    AFASIA - ANALUIZA

    ana toca piano suavemente
    para o esposo escravizado
    rabisca terna notas meigas sobre sua cabeça
    a paixão de ana estende os dedos
    e roça breve a face de esposo ensimesmado
    ela o arranha levemente e se pergunta pelo sangue
    derramado

    ana desenha em traços retos
    o rosto duro do amante desmaiado
    risca a pele seca sobre o papel de seda
    e se demora, rebuscada, nos olhos do amante silencioso
    ana se inclina sobre o peito magro
    e se assusta pelo colo
    estrangulado

    ana borra lenta e descuidada
    palavras incertas num verso para o namorado
    ela procura sentidos perigosos nas letras assimetricas
    e bebe pequenos goles frios de café
    enquanto pensa no namorado adormecido
    na borda da cozinha ela refaz com frases curtas o corpo
    não poupado

    ana interrompe a filigrana
    da joia inacabada
    e anda leve até o quarto ao lado, até a cama estreita
    onde ele jaz humido de frio, todo dopado
    ana o protege delicada
    e beija docemente o marido quase agonizado
    então ela o abraça

     

     

    Alexandre Humberto Andrei. 1955. Tem filhos e netos. Viúvo, o que é coisa muito esquisita - pense em chuva ácida. Foi goleiro da seleção carioca de futsal e do América. Ainda é astrônomo, aposentado (ON/MCTIC, OV/UFRJ). Ainda orienta e atua em siglas internacionais (IAU, ESA, IERS, SYRTE/ OP, SHAO/CAS). Escreve, (poesias?) em busca de edição. Estas são da coletânea inédita Anagrama.