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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.3 São Paulo jul./set. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000300002 

    TENDÊNCIAS

     

    Sobre a integridade ética da pesquisa*

     

     

    Luiz Henrique Lopes dos Santos

    Professor livre docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e membro da coordenação adjunta da diretoria científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

     

     

    Há duas espécies de deveres éticos aos quais o cientista está submetido ao realizar suas atividades profissionais: os derivados de valores éticos universais, como os que balizam a chamada bioética, e os derivados de valores éticos especificamente científicos, aqueles que se impõem ao cientista em virtude de seu compromisso com a finalidade própria de sua profissão - a construção da ciência como um patrimônio coletivo. É a essa parte da ética profissional do cientista que remete a expressão "integridade da pesquisa".

    Esse compromisso do cientista submete-o, em primeiro lugar, a deveres concernentes à qualidade científica dos resultados de seu trabalho de pesquisa. Dado que o trabalho individual de um pesquisador apenas se efetiva como parte da construção coletiva da ciência, entendida como um patrimônio coletivo, na medida em que é coletivizado, isto é, comunicado, todo pesquisador tem o dever de respeitar alguns pressupostos implicados por toda comunicação científica.

    Quando se ouve ou se lê uma comunicação científica, pressupõe-se que os autores utilizaram, em sua pesquisa, os procedimentos que julgaram serem os cientificamente mais adequados. Pressupõe-se também que relataram fielmente os procedimentos utilizados e seus resultados. As ações de um pesquisador que contrariam esses pressupostos são más condutas científicas. Entre elas, as mais graves são a fabricação (ou invenção) e a falsificação de dados, informações, procedimentos e resultados.

    Esse compromisso submete-o, em segundo lugar, a deveres perante a comunidade científica, que é onde seu trabalho se efetiva como trabalho coletivo. Essa comunidade deve organizar-se segundo regras que governam a formação das reputações científicas (e, portanto, das relações de confiança profissional) e a distribuição das oportunidades, recompensas e sanções profissionais, bem como os modos de sua própria reprodução. As regras hoje vigentes, nesse sentido, articulam-se em torno do conceito de autoria. Dado um relato científico, pressupõe-se que os pesquisadores identificados como seus autores apresentem resultados de seu próprio trabalho que julgam ser originais. São más condutas científicas ações que contrariam esse pressuposto, como o plágio de textos ou ideias e a falsa indicação de autoria - por omissão ou inclusão indevida.

    As regras relativas à reprodução, na comunidade científica, articulam-se em torno do conceito de tutoria. Pesquisadores em formação aprendem a fazer pesquisa científica sob a orientação ou supervisão de pesquisadores já qualificados e experientes. Pressupõe-se que a tutoria seja sempre exercida em benefício da formação do tutelado como pesquisador independente. Ações que contrariem esse pressuposto (como, por exemplo, a utilização do tutelado apenas como mão de obra barata) são más condutas científicas, pois minam as condições de continuidade da construção coletiva da ciência.

    Até o final do século passado, predominava a crença difusa de que más condutas científicas seriam acontecimentos raros e excepcionais, de modo que o debate científico rotineiro e os mecanismos rotineiros de peer review seriam suficientes para coibi-las ou, ao menos, impedir que acarretassem prejuízos graves para a ciência. Desde então, impôs-se paulatinamente a percepção de que más condutas científicas não sejam tão raras e excepcionais como se pensava. É, hoje, um consenso que a questão da integridade da pesquisa merece tratamento sistemático e institucional.

    É também um consenso que, diferentemente dos aspectos éticos da pesquisa que dependem essencialmente de valores universais, os aspectos concernentes à sua integridade devem ser objeto de autorregulação e autocontrole pela comunidade científica. Cabe aos cientistas formular os princípios e valores especificamente científicos que definem o conceito de integridade da pesquisa, definir critérios que permitam distinguir as boas e más condutas nas diferentes áreas da ciência, assim como aplicar esses critérios para a identificação, investigação e punição de más condutas.

    Vale notar que a caracterização de uma ação particular como boa ou má conduta, muitas vezes, depende de juízos de natureza propriamente científica. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia, determinar se as ideias expostas por um autor como suas são suficientemente semelhantes a ideias de outro autor para que essa exposição seja considerada como um plágio, ou distinguir o erro involuntário da má conduta, ou distinguir desvios cientificamente injustificados de práticas científicas geralmente aceitas e desvios inovadores cientificamente valiosos.

    É também um consenso que cabe às instituições de pesquisa a responsabilidade principal de garantir que as pesquisas que nelas se realizam se conformem a padrões rigorosos de integridade. Por ser o ambiente em que os pesquisadores desenvolvem sua atividade científica, ela dispõe dos meios mais ágeis e eficazes para promover os valores da integridade da pesquisa, e também para implementar mecanismos de prevenção, identificação, investigação e punição de eventuais más condutas.

    Se a responsabilidade principal pela manutenção da integridade da pesquisa cabe às instituições de pesquisa, outras instâncias institucionais devem compartilhar com elas, em maior ou menor grau, essa responsabilidade. Particularmente, as agências de fomento vêm desempenhando, em muitos países, um papel central no que concerne à formulação e aplicação de políticas de integridade.

    É o que acontece no Brasil e, particularmente, no estado de São Paulo. Em 2011, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) divulgou um conjunto de diretrizes relativas à ética na pesquisa. No mesmo ano, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) lançou seu Código de Boas Práticas Científicas, um conjunto sistemático de normas concernentes aos diferentes aspectos da integridade da pesquisa. Esse código foi complementado, em 2013, por portarias que regulamentam a divulgação das más condutas científicas investigadas sob a supervisão da Fapesp e incluem, nos termos de outorga de auxílios e bolsas, cláusula de compromisso dos pesquisadores e instituições com o respeito ao código

    As ações necessárias para a garantia da integridade da pesquisa implicam a articulação de esforços das muitas pessoas e instituições envolvidas no fomento e realização das pesquisas, bem como na publicação de seus resultados. O objetivo principal dessas ações deve ser a formação de uma cultura de integridade, no sentido da palavra "cultura" em que ela remete ao arraigamento de certos valores na prática cotidiana, a tal ponto que o respeito a eles aconteça espontaneamente, e o desrespeito gere sanções morais imediatas.

    Para a formação dessa cultura, certamente, é um elemento fundamental a percepção da punibilidade, a existência de procedimentos explícitos para a identificação, investigação e eventual punição de supostas más condutas. No entanto, tão ou mais importantes são ações que visem a dar visibilidade contínua à questão da integridade, como, por exemplo, a instituição de programas de educação e treinamento voltados a pesquisadores em formação, a divulgação de materiais educativos, a inclusão de compromissos formais com códigos de boa conduta em contratos de trabalho ou termos de concessão de bolsas e auxílios.

    A ciência vive de sua credibilidade, da qual depende sua principal razão de ser: seu potencial para fazer diferença na vida das pessoas, por meio da ampliação do estoque de seus conhecimentos e dos meios de orientação racional de suas ações. Assim, no que concerne à integridade da pesquisa, a missão que se impõe hoje a todos os pesquisadores e instituições comprometidos com o avanço da ciência é educar e prevenir, para que seja cada vez menos necessário investigar e punir.

     

     

    * Texto adaptado de artigo publicado originalmente no site da Fapesp, em abril de 2011 .