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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000300008 

    ARTIGOS
    INOVAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

     

    Projeto Sirius

     

     

    Antônio José Roque da Silva; Harry Westfahl Junior

    IFísico, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)
    IIDiretor científico do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron

     

     

    Sirius, a nova fonte de luz síncrotron brasileira - a maior e mais complexa infraestrutura científica já construída no país - abrirá enormes oportunidades para a investigação dos materiais e de suas aplicações, com grau de detalhe sem precedentes. Fontes de luz síncrotron são equipamentos de grande porte, geralmente instalados em laboratórios nacionais abertos à comunidade de pesquisadores. Esses equipamentos produzem radiação eletromagnética de amplo espectro (infravermelho, ultravioleta e raios X) e alto brilho, permitindo o estudo da matéria em suas mais variadas formas. Concebido como um síncrotron de última geração, de engenharia 100% nacional e financiado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, o Sirius foi projetado para ter o maior brilho entre as fontes com sua faixa de energia de 3 GeV, e é reconhecido como um dos mais avançados do mundo. Ele inaugura, juntamente com o síncrotron sueco MAX-IV, a chamada quarta geração de fontes de luz síncrotron. Sua emitância, de 0,25 nm.rad, é quase dez vezes menor que a dos melhores síncrotrons de terceira geração em operação no mundo. Essa nova fonte de luz proporcionará à comunidade científica brasileira ferramentas experimentais de características sem precedentes, colocando-as na vanguarda da ciência da radiação síncrotron.

    Os desafios estratégicos que o Brasil e o mundo enfrentam em temas como energia, saúde, alimentação e meio ambiente, dentre outros, exigem desenvolvimentos científicos e tecnológicos cada vez mais sofisticados. O avanço do conhecimento trouxe a escala dos átomos e das moléculas para a solução desses problemas. Para projetar materiais mais leves e resistentes, melhores fármacos, equipamentos de iluminação mais eficientes e econômicos, fontes de energia renováveis, equipamentos menos poluentes, é preciso entender o funcionamento de sistemas e processos complexos desde a escala mais fundamental, que é a escala atômica. Trata-se da ferramenta experimental com o maior número de aplicações e de maior impacto sobre o conhecimento e desenvolvimento de materiais, incluindo os biológicos.

    A partir do final dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990, o Brasil desenvolveu sua própria tecnologia para a produção de luz síncrotron, projetando e construindo UVX, a primeira fonte síncrotron no hemisfério sul (ainda hoje a única na América Latina). UVX, que iniciou sua operação para usuários em 1997, é baseado em um anel de armazenamento de elétrons de 1,37 GeV com uma circunferência de 93 m, uma emitância natural de 100 nm.rad e um total de seis seções retas, das quais quatro são para dispositivos de inserção. Esse complexo foi construído e é operado pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, LNLS, que é um dos quatro laboratórios nacionais do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Ao longo de seus 20 anos de operação rotineira para usuários, que hoje são mais de 1.000 por ano, não só foram obtidos resultados científicos relevantes com o uso da fonte UVX, como também as instalações do LNLS passaram por melhorias e atualizações contínuas, atingindo níveis de desempenho significativamente mais altos do que inicialmente previsto em seu projeto. No entanto, nos últimos anos, as capacidades de expansão da fonte de luz UVX atingiram seus limites físicos em termos de novas linhas de luz ou melhorias em seus aceleradores. Assim, para satisfazer as demandas atuais e futuras de ferramentas de ponta para a caracterização de materiais no Brasil, o Sirius está sendo construído para substituir a fonte de luz UVX existente e suas linhas de luz.

     

    O ANEL DE ARMAZENAMENTO SIRIUS

    Nas técnicas de caracterização de materiais mais modernas que utilizam a radiação síncrotron, é fundamental a presença de uma fonte intensa, pequena e colimada. Juntas, as duas últimas características, i.e., tamanho (σe) e dispersão angular (σ'e) da fonte, compreendem a assim chamada emitância natural = σe× σ'e. A razão da intensidade da fonte pela emitância determina o brilho. Ou seja, quanto menor a emitância, maior o brilho da fonte. A emitância de uma fonte de radiação influencia diretamente as características do feixe focado na amostra que está sendo analisada - para tal propósito, quanto menor a emitância, melhor a fonte. Para comparação, a emitância do anel UVX (atualmente em torno de 100 nm.rad) corresponde aproximadamente a uma fonte de tamanho rms (raiz quadrado médio) horizontal de 1 mm vezes uma divergência rms de 100 mrad (1 mm 100 mrad = 100 nm.rad ). A emitância de 0,2 nm.rad ( ou 200 pm.rad) do anel de armazenamento Sirius, corresponde a um feixe de elétrons de tamanho rms de 20mm vezes uma divergência rms de 10 mrad (20 mm 10 rad = 200 pm.rad), ou seja, mais do que uma ordem de magnitude de redução simultaneamente no tamanho e na divergência das fontes disponíveis hoje em dia para os cientistas brasileiros e latino-americanos. Na verdade, seguido de perto por MAX IV na Suécia, Sirius é o anel de armazenamento de menor emitância em construção no mundo.

    Para se ter uma ideia do que esses valores de emitância natural do feixe de elétrons representam, é instrutivo compará-los com o limite fundamental de emitância da radiação eletromagnética imposto pelo princípio da incerteza de Heisenberg. Em um feixe gaussiano, este último é dado (em unidades práticas) por ε [pm.rad] = λ / 4π ≈100 / ω [keV]. Essa fronteira qualitativa também é comumente referida como o limite de difração. Consequentemente, uma vez que os elétrons em anéis de armazenamento de terceira geração têm emissões naturais da ordem de nm rad, este feixe atinge o limite de difração na faixa de energias de raios X moles (energias de fótons da ordem de ω ~ 0,1 keV). Em anéis de armazenamento de quarta geração, como Sirius e MAX IV, por outro lado, as emissões horizontais são da ordem de 100 pm. rad e, portanto, o limite de difração é atingido na faixa de energia de raios X tender de ω ~ 1 keV). Então, em termos práticos, nos síncrotrons de terceira geração as linhas de raios X moles extraem radiação com brilho limitado pelas leis físicas (limite de difração), sendo limitados pela emitância do anel em energias mais altas. Nos síncrotrons de quarta geração até as linhas de raios X tender extraem radiação com brilho limitado apenas pelas leis físicas, sendo limitados pelo anel somente em raios X duros. Por estenderem o limite de difração para raios X de mais alta energia, os síncrotrons de quarta geração também são chamados de "diffraction limited storage rings" (DLSR)

    Embora muito usado, esse critério de limite de difração, baseado apenas na emitância, é, no entanto, incompleto pois não analisa as propriedades do feixe efetivamente entregue aos experimentos das linhas de luz. A emitância efetiva observada no feixe de fótons da linha de luz é uma convolução da distribuição do espaço de fase dos fótons e dos elétrons. Essa convolução não depende unicamente do volume do espaço de fase (que é a emitância natural,0 = σe. σ'e, mas também de sua razão de aspecto, a chamada função beta (βe = σe / σ'e). Pode-se provar que, para uma emitância fixa, essa convolução é minimizada (e o brilho maximizado) quando a função beta do feixe de elétrons é aproximadamente igual à função beta da emissão de radiação, βr, que é da ordem de um metro para condições típicas de produção de radiação em síncrotrons de terceira e quarta gerações, i.e., βr ≈ 0.6-1.3 m. Assim, somente quando esta última condição for satisfeita, pode-se (ainda que qualitativamente) afirmar que para energias da ordem de ω [keV] <100 /ε [pm.rad] a emitância do feixe de elétrons está próxima ao limite de difração. Por exemplo, comparando os dois últimos síncrotrons de quarta geração, Sirius e Max IV, ambos têm emitâncias da ordem de 200 pm.rad. Porém, no Sirius, βe ≈ 1,5 m (direção horizontal) e portanto ele está próximo da condição ótima (βe ~ βr). Já no MAX IV, βe ≈ 9 m, e consequentemente βe » βr, que resulta num brilho efetivo inferior. Portanto, teoricamente, espera-se que o brilho do Sirius seja quase duas vezes maior do que o do MAX IV.

    Em um anel de armazenamento síncrotron, campos magnéticos uniformes, gerados por dipolos magnéticos, são usados para guiar elétrons em uma trajetória fechada. A aceleração centrípeta dos elétrons nos dipolos causa a emissão de radiação síncrotron com um amplo espectro, determinada pela energia dos elétrons e pela intensidade do campo magnético dos dipolos. Quanto maior a energia dos elétrons, mais o espectro de emissão dos fótons se estende para raios X de alta energia. No entanto, essa trajetória tem uma dispersão natural de caminhos. O equilíbrio entre o amortecimento da radiação e os "empurrões" estocásticos nos elétrons, causados pelas emissões de fótons, determina a emitância natural do anel de armazenamento. Ao otimizar os parâmetros da ótica dos elétrons que viajam através dos Nd dipolos do anel de armazenamento, a emitância mínima teórica que pode ser conseguida em diferentes tipos de redes magnéticas, pode ser expressa como . Portanto, para uma dada energia dos elétrons Ee, a única maneira de reduzir a emitância de uma fonte síncrotron é aumentar o número de dipolos e, portanto, sua circunferência. Todos os síncrotrons de terceira geração no mundo têm centenas de metros (a quilômetros) de circunferência.

    Como a força que um elétron sofre em um dipolo é proporcional à sua velocidade, e nem todos os elétrons em um feixe se movem com exatamente a mesma velocidade, os dipolos não apenas guiam os elétrons em uma trajetória fechada, mas também causam dispersão em suas trajetórias. Portanto, os dipolos têm de ser acompanhados por quadrupolos e sextupolos magnéticos para refocalizar as trajetórias dos elétrons. Esses multipolos (dipolos, quadrupolos e sextupolos) são combinados apropriadamente em células magnéticas para que a trajetória do feixe de elétrons não tenha dispersão. Essas células são denominadas "bend achromats" e são nomeadas de acordo com o número "bends" por célula. A maioria das fontes de luz de terceira geração usa "double-bend achromats" (DBA) ou "triple-bend achromats" (TBA). Para alcançar emitâncias de alguns nm.rad eles combinam um número muito grande desses "bend achromats" em um anel de grande circunferência. A mais recente máquina de DBA inaugurada nos EUA, o NSLS II no Laboratório Nacional de Brookhaven, por exemplo, tem uma circunferência de quase 800 m para chegar a uma emitância em torno de 1 nm.rad.

    A estratégia inovadora, adotada mais recentemente por novas máquinas como Sirius e MAX IV na Suécia, foi aumentar o número de dipolos ("bends") em cada "achromat" da rede em vez de simplesmente aumentar a circunferência do anel. Com essa abordagem de "multiple-bend achromats" (MBA) é possível alcançar emitâncias significativamente mais baixas para uma mesma circunferência de um anel de armazenamento do tipo DBA. Por exemplo, para se alcançar a emitância de 0,25 nm .rad, no projeto do Sirius, a rede magnética foi projetada com 20 células magnéticas de cinco deflexões dipolares cada, conhecidas como rede 5BA ("five-bend-achromat") e terá cerca de 500 m de circunferência, quase 60% da circunferência do NSLSII, com uma emitância 4 vezes menor. Isso traz um significativo ganho de benefício para um dado custo, pois o prédio, em geral a parte mais cara na construção de um novo síncrotron, não precisa crescer para diminuir a emitância. As redes magnéticas MBA foram imaginadas teoricamente há décadas, mas significativos desafios técnicos associados com os projetos dos ímãs, câmaras de vácuo, dinâmica de feixe e problemas de vibração mecânica impediram suas implementações. Apenas recentemente, o avanço tecnológico amadureceu o suficiente a ponto de permitir a construção dos dois primeiros síncrotrons de quarta geração no mundo, Max IV e Sirius, seguido recentemente pela atualização do grande síncrotron europeu, o ESRF. É importante ressaltar que, no Brasil, esses avanços tecnológicos têm envolvido pequenas, médias e grandes empresas nacionais que têm trabalhado no desenvolvimento de componentes para o Sirius em parceria com o LNLS, resultando num índice de nacionalização em torno de 85%. O Sirius além de trazer avanços científicos, impulsiona o setor de alta tecnologia do país.

    Além do número de dipolos por célula, vários outros parâmetros foram otimizados para reduzir a emitância do Sirius. Uma inovação na sua rede é a introdução de dipolos centrais nas células 5BA, baseados em ímãs permanentes com gradientes de campo transversais e longitudinais, para reduzir a emitância e proporcionar uma fonte de radiação de raios X duros, via uma seção fina de alto campo em seu centro de aproximadamente 3,2 T, a qual pode fornecer raios X de até 120 keV. No UVX, hoje, tipicamente raios X de até 12 keV apenas podem ser extraídos nos seus dipolos. Os outros dipolos de campo baixo (0,58 T), responsáveis pela deflexão do feixe principal, serão eletromagnéticos. Combinando o tamanho reduzido do feixe de elétrons e a sua alta energia crítica, os dipolos se tornam fontes de alto brilho para raios X de alta energia.

    O anel de armazenamento da fonte de luz síncrotron Sirius foi projetado para operar na energia de 3 GeV, ou seja, mais do que o dobro da energia do atual síncrotron brasileiro, que é de 1.37 GeV. O sistema injetor inclui dois outros aceleradores: um acelerador linear (Linac) de 150 MeV, e um síncrotron injetor (Booster) com energia final de 3 GeV. O anel de armazenamento e o booster são concêntricos e localizados no mesmo túnel circular. O Linac ficará em um túnel próprio conectado à parte interna do túnel circular. Uma descrição detalhada do acelerador e de todos os seus subsistemas está incluída no wiki Sirius (http://wiki-sirius.lnls.br).

    O Sirius está sendo construído em um novo terreno de 150.000 m2, adjacente ao atual campus do CNPEM, que foi comprado do banco Santander pelo governo do estado de São Paulo por meio de um processo de desapropriação. O projeto executivo detalhado do edifício foi concluído em 2014, e a construção teve início em janeiro de 2015. O edifício final terá aproximadamente 68.000 m2, e será composto por quatro andares. Em março de 2017 já era possível ver a estrutura das seis linhas longas, que variam de 100 m a 150 m. O cronograma do Sirius prevê a instalação do Linac em setembro de 2017 e o início de montagem do booster e do anel de armazenamento em dezembro de 2017. O primeiro feixe está programado para junho de 2018.

     

    LINHAS DE LUZ

    Em um síncrotron, as linhas de luz são os instrumentos científicos onde os experimentos são feitos. Uma vasta gama de experimentos pode ser realizada nas suas estações experimentais, permitindo uma descrição quantitativa de que tipo de átomos e moléculas constituem um material, seus estados químicos e sua arquitetura de organização espacial, bem como suas deformações dinâmicas coletivas. Ainda mais, numa linha de luz é possível ver como essas características microscópicas são alteradas quando o material é submetido a determinadas condições extremas como temperaturas elevadas, tensão, pressão, campos elétricos ou magnéticos, ambientes corrosivos etc., numa classe de experimentos denominados in-situ. Essa capacidade é uma das principais vantagens dos síncrotrons quando comparados com outras técnicas de resolução mais alta, como a microscopia eletrônica, por exemplo.

    As linhas de luz são basicamente divididas em 3 partes principais: a fonte, a ótica e os sistemas experimentais compreendidos por ambiente de amostra e detectores. As fontes de radiação são geradas essencialmente pelos campos magnéticos intensos que aceleram elétrons. Dois tipos de fontes serão usados no Sirius: os dipolos de 3,2 T da rede magnética MBA, e os onduladores, que são as fontes mais brilhantes em um anel de armazenamento. Os onduladores são feitos de séries de dipolos magnéticos que criam campos sinusoidais de período espacial λu, comprimento Lu e amplitude B. A aceleração dos elétrons nesse campo magnético periódico produz linhas espectrais de radiação em (harmônicos) múltiplos da energia 0[keV] . Por exemplo, para Ee = 3 GeV, λu = 2 cm e B ~ 0,5 - 1 T, tem-se 0~ 1,5 - 3 keV. Isso permite se chegar a raios X de cerca de 9 keV no terceiro harmônico. A intensidade da radiação dessas linhas, quando comparada a de um dipolo, tem um aumento quadrático com o número de períodos do ondulador, Np = Lu/λu. Essa amplificação significativa (de cerca de 10.000x) faz com que onduladores sejam os dispositivos preferenciais para uso em síncrotrons de terceira e quarta geração. No UVX a energia dos elétrons de Ee = 1.37 GeV é relativamente baixa e, portanto, onduladores só podem ser usados para produzir radiação na faixa de raios X moles, até cerca de 2 keV. Já no Sirius, com elétrons de 3 GeV, os onduladores poderão ser usados na faixa de raios X até cerca de 30 keV.

    A separação entre os polos magnéticos que geram as oscilações espaciais do campo do ondulador é conhecido como gap do ondulador. Este gap é limitado por um parâmetro do anel de armazenamento, chamado de beam stay clear (BSC), que representa a menor distância que um anteparo (como um polo magnético) pode se aproximar do feixe de elétrons sem interferir com sua dinâmica. Junto com o período do ondulador, o gap determina a amplitude máxima de oscilação do campo magnético que pode ser imposta aos elétrons e, portanto, as características das fontes das linhas de luz. Uma inovação singular do projeto Sirius é que o beam stay clear é de poucos milímetros em todas as direções, ao contrário dos síncrotrons de terceira geração, e mesmo do MAX IV. Isso permite que no Sirius os onduladores tenham polos magnéticos circundado os elétrons em todas as direções, de forma muito mais eficiente que onduladores planares ou mesmo onduladores de polarização elíptica usados em síncrotrons de terceira geração. Além de aumentar a amplitude de oscilação do campo e seu controle mais preciso, esse tipo de ondulador conhecido como Delta, permite controlar a polarização do feixe de raios X moles ou mesmo de raios X duros, em qualquer modo e direção, se tornando um ondulador universal. Este tipo de ondulador nunca foi usado em um anel de armazenamento e o Sirius será o primeiro e, por muito tempo, um dos únicos síncrotrons a permitir tal controle das características da radiação. Esta inovação do Sirius permitirá explorar novos modos de medidas de espectroscopia e espalhamento, sem precedentes na área de radiação síncrotron.

    Para as linhas de luz de raios X, previstas nas fases iniciais do projeto, os onduladores Delta serão empregados em quatro linhas de luz, duas para raios X duros e duas para raios X moles. Outras duas linhas utilizarão onduladores planares, com conceitos semelhantes aos onduladores Delta, pois nelas não há necessidade do controle de polarização. Já para energias de raios X maiores que 45 keV, o brilho dos dipolos de 3.2 T é superior ao dos onduladores. Isto se deve em parte ao alto campo desses dipolos e aos tamanhos de cerca de poucos micrometros do feixe de elétrons nessa região. Por isso, para linhas de luz de alta energia, os dipolos se tornam as opções mais otimizadas. O brilho teórico dessas três fontes de radiação é mostrado na Figura 1 de forma comparativa com o MAX IV e com outros dois síncrotrons de quarta geração em planejamento e construção, um otimizado para baixas energias, o ALS-U, e outro para altas energias, o ESRF-U. É possível notar que o Sirius inicia com o maior brilho na sua faixa de energia, mas mesmo no futuro, quando essas máquinas de quarta geração estiverem em operação, o Sirius terá uma posição de liderança mundial em uma faixa de energia de raios X tender, que é estratégica para áreas de agricultura, petroquímica, saúde e meio ambiente.

     

     

    Os componentes óticos das linhas de luz projetam a fonte de radiação em um plano de interesse (na amostra) atuando também para filtrar a radiação emitida, tanto espacial quanto espectralmente, buscando manter o máximo possível do brilho da fonte original. Os ambientes de amostra permitem o posicionamento e o condicionamento da amostra com ambientes simulados in-situ ou operando. Finalmente, os detectores são dispositivos onde o resultado da interação entre o feixe síncrotron e a amostra é registrado e quantificado. O projeto Sirius apresenta inovações em todos esses componentes. Em particular, nos componentes óticos foram estabelecidos padrões muito mais exigentes dos que atualmente aplicados em síncrotrons de terceira geração. Um laboratório de metrologia ótica e mecânica de última geração foi construído para montar e calibrar todos os componentes óticos das linhas de luz, como o novo monocromador de duplo cristal que está sendo criado para o Sirius. Também estão sendo construídos detectores de raios X de grande área, com base nos chips utilizados em experimentos do CERN. Além de colocar o Brasil no grupo dos poucos países do mundo com capacidade de construção de equipamentos de imagem de raios X, isso permitirá que o Sirius esteja também na fronteira dessa área, que é essencial nos experimentos das linhas de luz.

    Em geral, uma linha de luz pode explorar muitos tipos diferentes de experimentos em várias áreas científicas. No entanto, tipicamente seus componentes óticos, ambientes de amostra e detectores devem ser otimizados para uma gama menor de experimentos, definidos por um programa científico de maior foco, onde a linha será mais competitiva. A seleção e projeto das primeiras 13 linhas de luz do Sirius foram definidos de acordo com as seguintes diretrizes gerais:

    Vanguarda da ciência: tirar o máximo proveito do alto brilho do anel de armazenamento de quarta geração, explorando técnicas como espalhamento coerente, sondas de varredura de escala nanométrica, espectroscopia de espalhamento inelástico e condições extremas.

    Melhoria na atual ciência dos usuários: linhas de luz que se beneficiam com o alto brilho em um amplo espectro (até 120 keV) fornecido pelos dipolos de 3.2 T, provendo acesso para a comunidade de usuários a versões muito melhoradas das técnicas experimentais já estabelecidas hoje no LNLS.

    Áreas estratégicas: linhas de luz que forneçam instrumentação científica de ponta para solucionar problemas em áreas estratégicas importantes para o desenvolvimento do Brasil, tais como saúde, agricultura, energia, água e meio ambiente. Essas áreas estratégicas são elos importantes do Sirius com os outros laboratórios nacionais do CNPEM, que, além de ser uma importante força motriz científica do Sirius, contribuirão ativamente para o desenho de experimentos, ambientes de amostra e estratégias de preparação de amostras.

    Seguindo estas diretrizes, um conjunto inicial de 13 linhas de luz foi proposto para cobrir uma grande variedade de programas científicos. Algumas dessas linhas de luz, como as com nanofoco, serão muito longas para permitir uma grande demagnificação da fonte. O conjunto inicial de linhas de luz baseadas nos dipolos de 3.2T é apresentado na Tabela 1.

    Historicamente, mais de 2/3 das propostas de pesquisa dos usuários do LNLS de cada ano são para espectroscopia de absorção de raios X, técnicas de difração de baixos ângulos e difração de pó. Essas técnicas serão abordadas nas linhas de luz Quati, Paineira e Sapucaia, que são baseadas nos dipolos do Sirius. O brilho dessa fonte é mostrado na Figura 1.

    O principal programa científico da linha de luz Quati é a espectroscopia de absorção de raios X com alta resolução temporal, enquanto Paineira e Sapucaia cobrirão os programas de difração de pó e de espalhamento de raios X a baixos ângulos. Além do brilho ser ordens de grandeza maior, o fluxo de fótons dessas linhas de luz será pelo menos 100 vezes maior do que seus equivalentes no UVX. Além disso, eles serão capazes de alcançar energias de raios X impossível hoje nas linhas de luz do UVX.

    A linha de luz Jatobá abrange o programa de difração de raios X in situ em materiais estruturais (como o aço) em simulações termomecânicas. Esse é um programa que se beneficiará fortemente do alto brilho dos dipolos em altas energias de raios X até 120 keV.

    A linha de luz Mogno tem um programa científico principal para a tomografia de raios X (μCT), que permite a imagem em 3D de materiais através de microtomografia computadorizada de raios X em escalas de comprimento múltiplas, resoluções até 0,1 μm, para objetos de até alguns cm, mesmo para materiais mais densos. Há dois anos, o LNLS abriu uma linha de luz de μCT para usuários (IMX) com o principal objetivo de criar uma comunidade de imagem de raios X. No entanto, a aplicação dessa linha de luz é limitada pela baixa energia do anel de armazenamento UVX. A linha de luz Mogno superará essa dificuldade explorando raios X alto brilho dos dipolos de uma forma inovadora, com tomografia de cone-beam.

    A linha Imbuia é uma linha de luz de infravermelho, baseada no princípio da microscopia de campo próximo, que permite atingir até 20 nm de resolução espacial. Existem apenas 3 linhas de luz no mundo como esta. A estação experimental dessa linha de luz está atualmente operando no UVX e foi adquirida dentro do financiamento do projeto Sirius. Quando transferido para Sirius, o ganho de brilho da fonte será de 2 ordens de magnitude e as flutuações do feixe de elétrons serão muito suprimidas, levando a várias ordens de magnitude de ganho para a relação sinal a ruído em comparação ao UVX.

    Os principais parâmetros das linhas de luz baseadas em onduladores estão resumidos na Tabela 2. Estas serão as linhas de luz mais competitivas na primeira fase de operação do Sirius, explorando aspectos únicos da nova fonte. A única das 13 linhas de luz não presentes nessas tabelas é a linha de luz Ingá. Seu programa científico está sendo redefinido, uma vez que grande parte do programa inicialmente proposto foi absorvido pela linha de luz da Ema.

    A linha Carnaúba é a mais longa de todas, com um total de 150m de comprimento, e fornecerá um feixe nanométrico com dimensões de até 30 nm no foco. Esta será a primeira linha de luz no mundo capaz de fazer nano-espectroscopia de absorção na faixa de raios X tender, com foco dessa dimensão. Ao mesmo tempo, a resolução espacial das imagens de nano-espectroscopia de raios X tender por varredura poderá ser ampliada a menos de 10 nanômetros, através da combinação com a técnica de pticografia, que utilizará o espalhamento coerente da radiação fornecida pelo Sirius. Experimentos nas áreas de ciências ambientais moleculares, por exemplo, permitirão obter informações sobre a composição e estrutura de solos, materiais biológicos, fertilizantes e outros, completamente além do alcance de instrumentos científicos atuais.

    Uma das principais características da linha Cateretê é o seu feixe completamente coerente, focalizado em uma região de cerca de 40 mícrons e uma câmera de detecção de espalhamento coerente de quase 30 m de comprimento. Essa configuração permitirá fazer imagens difrativas de objetos isolados, como células de mamíferos de dezenas de mícrons, em 3 dimensões, de forma não destrutiva e em ambiente líquido. Esse tipo de imagem não destrutiva 3D de células de mamíferos, por exemplo, ainda não foi obtido por nenhum outro método no mundo e será feito pela primeira vez na linha Cateretê, graças ao feixe coerente de alto fluxo (> 1012) e dimensões micrométricas.

    A linha Ema permitirá fazer diversas análises estruturais e espectroscópicas, com resolução submicrométrica, em amostras submetidas a condições extremas de temperatura, pressão e campos magnéticos. As temperaturas e pressões que serão simuladas nessa linha de luz, através de aquecimento por lasers intensos e células de pressão com diamante, poderão chegar a 8000K e 800 GPa, respectivamente. Os campos externos que serão aplicados por imãs supercondutores, poderão chegar a quase 14 T. Tais condições só são realizáveis em ambientes com dimensões muito reduzidas e acessíveis somente pelo feixe de alto brilho do Sirius. Neles, será possível estudar novos materiais que não existem naturalmente em condições normais, mas que podem apresentar propriedades macroscópicas inusitadas, como supercondutividade e magnetismo em altas pressões. Também será possível simular ambientes internos a planetas e entender as propriedades da matéria que compõe seu interior, algo que ainda é um desafio científico para as geociências.

    A linha Ipê terá dois tipos de estações experimentais para estudar a distribuição de níveis de energia eletrônicos em átomos e moléculas presentes em interfaces líquidas, sólidas e gasosas. Através do espalhamento inelástico de raios X e a espectroscopia de fotoelétrons, ambos em condições próximas às condições ambientes (near ambient pressure - NAP), esses experimentos poderão sondar a forma como as ligações químicas ocorrem nas interfaces de materiais como catalisadores, células eletroquímicas, materiais sujeitos à corrosão, entre outros. Isso poderá ser feito tanto do ponto de vista de ligações moleculares nas interfaces, quanto sob as condições transientes de formação ou quebra dessas ligações, utilizando o relógio interno formado pela excitação seletiva de elétrons de caroço dos átomos presentes na ligação química. Até mesmo a espectroscopia vibracional dessas ligações poderá ser estudada na linha Ipê, com uma seletividade química sem precedentes em técnicas mais convencionais como espectroscopia de infravermelho ou espectroscopia Raman convencional.

    A linha de luz Manacá será dedicada ao novo método de cristalografia de proteínas em série, que permite a elucidação de proteínas mais complexas, que tipicamente só podem formar cristais de mícron a submícron, não adequadas para cristalografia convencional de proteínas. Esse novo método foi inicialmente apenas explorado em lasers de elétrons livres, mas agora também está sendo aplicado a síncrotrons deterceira geração. Tem um grande potencial de uma segunda revolução na biologia estrutural, em grande parte com foco em proteínas de membrana. O alto brilho dos síncrotrons de quarta geração como Sirius e MAX IV irá impulsionar esse método, através de feixes de raios X intensos, com foco micrométrico ou até submicrométrico com divergências inferiores ao miliradiano, ambos necessários para resolver a estrutura de grandes complexos de proteínas.

    A linha de luz Sabiá será dedicada à espectroscopia de emissão de fotoelétrons resolvida por ângulo (Arpes), e ao dicroísmo circular magnético por raios X. A linha de luz PGM do UVX possui atualmente um sistema de última geração para Arpes, com um manipulador de amostras com 6 graus de liberdade e condicionamento de temperatura entre 14 K a 400 K, e um microscópio de emissão de fotoelétrons (PEEM) com campo de visão de 0,7 a 100 mícron, ambos financiados pelo projeto Sirius. Vários sistemas experimentais auxiliares para preparação e deposição de amostras, como a câmara de epitaxia de feixe molecular (MBE), câmara de deposição por pulso de laser (PLD), microscópio de varredura por sonda (SPM) que hoje estão disponíveis e integrados com a linha de luz PGM, estarão disponíveis, no futuro, na linha Sabiá.

    Em suma, o Brasil foi pioneiro na América Latina ao projetar e construir o atual síncrotron brasileiro, o UVX. Entretanto, as características do atual acelerador simplesmente impedem que um enorme conjunto de pesquisas seja realizado no Brasil, o que só irá se agravar com o avanço dos novos síncrotrons no mundo. O Sirius permitirá, como poucos projetos no país, que o Brasil seja liderança mundial na pesquisa, pois ele está sendo construído para ter o maior brilho dentre todos os síncrotrons do mundo na sua faixa de energia. Alguns experimentos só poderão ser executados pela primeira vez no Sirius, o que abre oportunidades excepcionais para a pesquisa do país. Podemos dizer que o Sirius é um projeto estruturante para o Brasil, pois além desse aspecto de fronteira do conhecimento, ele impacta a indústria nacional através da construção dos seus sofisticados componentes - o que já está ocorrendo - ele traz oportunidades para a inovação, ele impacta na formação de recursos humanos - cientistas, engenheiros e técnicos - altamente qualificados, e impacta enormemente na internacionalização e visibilidade do país. Ou seja, é exatamente em um momento como o atual que um projeto como o Sirius traz oportunidades que ajudam o Brasil a sair da atual crise.

     

     

    Agradecimento: Este texto resume os principais aspectos do trabalho de muitos anos de toda a equipe do LNLS e CNPEM. Os autores representam e agradecem este time e a comunidade de usuários do LNLS por todas as informações e discussões que levaram a confecção deste artigo.