SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 issue3 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000300017 

    CULTURA
    LITERATURA

     

    Antonio Candido na Unicamp*

     

     

    Carlos Vogt

    Poeta e linguista. É professor emérito da Unicamp e coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), na mesma universidade

     

     

    Acho que, de um ponto de vista mais subjetivo, as coisas aconteceram - quero dizer, as coisas relacionadas com o tema em questão -, quando eu vim de Sales Oliveira para Ribeirão Preto, depois para São Paulo para fazer o curso de letras, na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, à rua Maria Antonia.

    Foi lá, em 1962, que conheci o professor Antonio Candido, no curso de teoria literária e literatura comparada que ele oferecia para os alunos do primeiro ano do curso de letras. Segui seu aluno, regular, ouvinte, irregular, em toda a graduação e, nos anos 1968 e 1969, fui também seu estudante no programa do curso de pós-graduação em que, além dele, brilhavam os astros e as estrelas de Gilda de Mello e Souza, Paulo Emílio Sales Gomes, Rui Coelho e Oswaldo Elias Xidieh.

    Isso tudo acontecendo no cenário político da ditadura militar que recrudescia no país e que, na cena da FFCL, se manifestava na ação violenta da polícia, abrigada pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no vizinho Mackenzie, e que resultou na destruição das condições de funcionamento e no consequente fechamento dos prédios, além da morte do estudante secundarista José Carlos Guimarães, do ferimento, também por bala, de estudantes universitários e de uma grande quantidade de feridos entre os participantes do que ficou conhecido como "A batalha da Maria Antonia".

     

     

    PROGRAMA DE LINGUÍSTICA

    Em agosto de 1969, o professor Albert Audubert, da antiga cadeira de francês, deu-me a notícia de que a Universidade Estadual de Campinas - a Unicamp -, criada três anos antes, em 1966, estava desenvolvendo um programa para a implantação, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), de um Departamento de Linguística. Queria indicar o meu nome para integrar um grupo de quatro pessoas que seriam contratadas pela Unicamp e seguiriam para Besançon, com uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), para fazerem uma licenciatura e um mestrado em linguística.

    Convite aceito, fui a Campinas, com uma carta de apresentação do professor Audubert, procurar o professor Fausto Castilho, coordenador e um dos fundadores do IFCH, além de responsável pela criação do programa de linguística na universidade, tendo estado ele próprio em Besançon onde fortaleceu o seu entusiasmo intelectual e acadêmico com as possibilidades epistemológicas da boa convivência da linguística com a lógica e com a matemática. Essa convivência, que certamente ajudou a embasar o apodo de ciência-piloto com que a linguística foi apresentada durante um bom tempo, principalmente na efervescência do estruturalismo europeu nas décadas de 1960 e de 1970, aliada às circunstâncias de ter o professor Castilho convivido com a experiência viva dos estudos que então se produziam na França, tudo isso contribuiu para que o modelo teórico e metodológico a ser implantado na Unicamp buscasse reproduzir, em Campinas, o que vinha acontecendo no cenário internacional no campo da linguística e das ciências humanas, em geral.

    Ao conversar com o professor Castilho, informei-lhe também ser aluno do professor Candido, o que o deixou bastante satisfeito, já que, como eu viria a saber na sequência de nosso diálogo, era ele um dos responsáveis pela orientação do processo de formação do que viria, mais tarde, a ser chamado "grupo de Campinas".

    Quando falei com o professor Candido que tinha estado em Campinas com o professor Fausto Castilho por recomendação do professor Audubert, recebi dele a aprovação imediata e firme, logo concretizada numa carta de referência que passou a ser para mim como que um documento de minha identidade acadêmica, institucional e intelectual que por ele se constituía e se fundava, restando para a frente a responsabilidade de lhe fazer jus e a satisfação de tê-lo obtido para o desafio de poder merecê-lo.

     

    AVAL DO MESTRE

    O professor Antonio Candido indicou ou avalizou todos os nomes dos que constituíram o grupo de Campinas.

    O fato é que o professor Zeferino Vaz tinha pelo professor Candido um enorme apreço intelectual, pessoal e existencial e já havia feito, desde sua vinda para Campinas, algumas tentativas de sedução institucional para trazê-lo para a Unicamp.

    O professor Antonio Candido não vinha, mas se mantinha reciprocamente atencioso para com o professor Zeferino Vaz, para com a Unicamp e, especialmente, para com o projeto do grupo de Campinas.

    A Unicamp crescia e já passara por sua primeira crise de adolescência institucional. O número de alunos aumentava, com o número de cursos de graduação e de pós-graduação oferecidos, e os departamentos discutiam suas necessidades de aumento das cargas horárias para as disciplinas específicas de cada curso de bacharelado e de licenciatura. Aos poucos, a concepção de curso que suponha o conjunto de disciplinas básicas comuns para as grandes áreas acadêmicas ia perdendo força e fortalecendo a tendência para o nascimento de institutos e faculdades do que até então se organizava como departamento.

    No estatuto da Unicamp e em seu plano diretor estava prevista a criação de uma Faculdade de Letras, cujo desenho geral era coincidente com o que tradicionalmente caracteriza as instituições da área: vários departamentos, tantos quantos forem as pressões internas e externas para a sua criação e proliferação. Uma estrutura institucional feita, portanto, de justaposição de peças.

    Para tentar evitar que o mesmo ocorresse na Unicamp e fugir, assim, do que o seu plano diretor previa e na época ameaçava desencadear, o Departamento de Linguística, do qual me tornei chefe logo em seguida à obtenção do doutorado, em 1974, propôs-se, ainda no IFCH, a começar a oferecer cursos de bacharelado e de licenciatura em letras (língua portuguesa e literaturas brasileira e portuguesa).

    Para isso era preciso, além do que o Departamento de Linguística já oferecia, oferecer latim e as literaturas da grade curricular. O professor de latim foi contratado e deu-se início, com o apoio e a orientação do professor Candido, ao processo de contratação dos professores que viriam atender às necessidades relativas às aulas de literatura brasileira e literatura portuguesa, constituindo-se, assim, um grupo que marcou época na história da Unicamp e que seria o núcleo inicial do futuro Departamento de Teoria Literária.

    Conversávamos muito com o professor Zeferino Vaz a respeito da conveniência da criação da unidade de letras, tal como prevista no plano diretor e da oportunidade de se criar na Unicamp algo novo, a partir do que já se desenvolvia no Departamento de Linguística que, agora, agregava também o grupo de teoria literária, oferecendo, além do bacharelado em linguística, a licenciatura em letras -português, língua e literatura.

     

    OPORTUNIDADE ÚNICA

    O professor Zeferino Vaz mostrava-se sensível aos argumentos que lhe eram apresentados e penso que aquele que de fato o convenceu, e mesmo persuadiu, foi o da possibilidade de termos o professor Antonio Candido como coordenador dos trabalhos para a criação e implantação da nova unidade, concebida fora do modelo tradicional e sobre a experiência que então se desenvolvia no próprio Departamento de Linguística, cujas feições institucionais e acadêmicas já se modificavam pela presença do grupo de teoria literária.

    Pude, nessa ocasião, dizer ao professor Zeferino Vaz que estávamos diante da oportunidade única de trazer o professor Candido para dirigir o novo instituto, desde que este evitasse a tradicional segmentação das faculdades de letras e refletisse as experiências que já se realizavam na Unicamp, tanto do ponto de vista das práticas de ensino, que associavam linguística e literatura, como do ponto de vista teórico, que fundamentava as referidas práticas dando-lhes organicidade estrutural e funcional.

    Em outubro de 1975, encaminhávamos ao professor Zeferino Vaz um anteprojeto para a implantação do Instituto de Letras que, além dos cursos de graduação e pós-graduação já oferecidos pelo Departamento de Linguística, ainda no IFCH, propunha a criação de uma graduação, licenciatura em português e literatura de língua portuguesa, e de uma pós-graduação em teoria literária, com ligações em áreas conexas da linguística e das ciências humanas.

     

    NOVOS MODELOS

    Caminhava-se, desse modo, para a formalização do Instituto de Letras sob uma nova configuração acadêmica que, então, já superava a possibilidade de se ver na Unicamp a adoção do modelo tradicional das faculdades de letras que todos queríamos evitar.

    O fato decisivo para essa mudança de rota deu-se com a aceitação, pelo professor Candido, do convite que mais uma vez lhe fazia o professor Zeferino Vaz para dirigir a nova unidade de ensino e pesquisa da Unicamp.

    Tive a honra, a distinção e, sobretudo, o prazer e a alegria de ter recebido do professor Zeferino Vaz a tarefa de tentar convencer o professor Candido a aceitar o convite, o desafio e a aventura acadêmica da criação e implantação não apenas de uma nova unidade na Unicamp, mas de uma totalmente nova concepção da unidade que se iria implantar. Num fim de tarde, já anoitecendo, fui, como havia combinado com ele, à casa do professor Candido, à rua Bryaxis, antiga rua Alice, no Itaim Bibi, para voltarmos, na conversa, ao assunto unicampense.

    Ali, na sala de estar, contígua à sala de jantar, onde a mesa, também de trabalho, emoldurada pelas estantes que traziam parte da biblioteca de dona Gilda e do professor Candido, onde estivera várias outras vezes para os encontros amigos e de orientação, enfatizei, na conversa, o argumento de que a única possibilidade de alteração do modelo de letras, a ser implantado em Campinas, era a de que o professor Candido aceitasse dirigir o novo projeto e coordenasse a equipe a que seria dado concebê-lo e desenhá-lo para substituir o que estava previsto no estatuto da universidade.

    Não era só um argumento; era também um fato, pois o reitor da Unicamp dizia, com convicção e firmeza, que a condição para aceitar e encaminhar a mudança era ter o professor Candido a conduzi-la. Do contrário, dizia ele, nada feito!

    Com o seu jeito cortês, afável, bem-humorado, seguro na dúvida e na certeza, o professor Antonio Candido, chamando-me Carlinhos, como sempre fez, no carinho protetor e habitual do tratamento com os seus alunos, estudantes e amigos, disse-me, então, que aceitava. E a conversa seguiu, já ali mesmo, antecipando, no que ele dizia, as linhas mestras que dariam sustentação ao que depois viria ser, logo no futuro imediato, o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), com uma proposta que consolidava a que estava contida no anteprojeto do Instituto de Letras, acima mencionado, avançando-a no sentido de uma superação, e da realização de uma grande novidade acadêmica no cenário institucional da educação superior no estado de São Paulo e no país.

     

    PROFESSOR DA UNICAMP

    Em dezembro de 1976, criava-se o Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp. O professor Candido foi designado seu primeiro diretor tendo como seu associado o professor Carlos Franchi, que o sucedeu, quando o professor Zeferino Vaz, depois de 12 anos na condução da universidade, deixou a reitoria e foi substituído pelo professor Plínio Alves de Moraes.

    O compromisso do professor Candido com o professor Zeferino estava cumprido: o novo Instituto de Estudos da Linguagem estava fundado e implantado. Ficávamos nós com o compromisso de dar seguimento acadêmico e institucional ao que o professor Candido havia criado. Ficávamos também com saudades bem fundadas de sua sábia e generosa presença no cotidiano da juventude do IEL, que cresceu, amadureceu, vingou, guardando o desafio constante de fazer jus à inventividade intelectual, acadêmica e institucional da origem de sua criação.

     

     

    * Este texto é uma versão reduzida do artigo de mesmo título publicado originalmente na revista Literatura e Sociedade, nº 11, 2009, p.264-273, vinculada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP).