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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.3 São Paulo jul./set 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000300020 

    CULTURA
    PROSA

     

    Abel Barros Baptista

     

     

    OBNÓXIO DA CORROBORAÇÃO

    - Que significado atribuis a corroboração?

    - Nenhum, não atribuo nenhum. Não tem já significado atribuído? Não precisa que eu lhe atribua nada.

    - Esse o problema, sabes? Armas-te em esperto, mas até acertas: o problema com essa palavra é já ter significado atribuído e as pessoas acharem que podem dar-lhe outro.

    - Não se passa o mesmo com todas as palavras? Acredita que sou totalmente a favor de dar novos significados a todas as palavras, principalmente corrompendo os que já existem, ou estão atribuídos, como tu dizes. Mas já que tenho de te ouvir, diz lá então, qual é o significado que a palavra tem atribuído?

    - É sinónimo de roborar, palavra que decerto desconheces.

    - Decerto! Sabes bem que não sou de Letras.

    - Roborar significa fortalecer, aumentar as forças, fortificar, revigorar. Confirmei agora mesmo no dicionário.

    - Todas essas palavras eu conheço, acho. Mas agradeço que venhas roborar o meu vocabulário, é sempre bom regivorá-lo e só tu o fazes com tanta graça. Pena que não apareças por aqui mais vezes. Ainda ontem comentei isso com várias pessoas.

    - Que certamente corroboraram o teu comentário, não?

    - Sim, corroboraram, dizes bem, todos concordaram.

    - Pois digo mal, porque corroborar não significa isso, não significa concordar.

    - Pois não, significa fortalecer, fortificar, revigorar. Neste caso, significa fortalecer o meu comentário com a concordância deles, como se o facto de concordarem confirmasse que é justo, verdadeiro, pertinente, o que queiras, a mim tanto faz que não sou de Letras.

    - Então? afinal sabes?

    - Nunca disse que não sabia. Tu é que deduziste que não, mas sei. Sei muito bem que querias que eu dissesse que significa concordar, como meio mundo por aí diz, quando afinal é outra coisa, subtilmente diferente. Mas eu quis corroborar a tua presunção, embora me custe roborar asneiras e pretensiosismos.

    - Que bem que te exprimes quando te irritas...

    - E não sou de Letras!

     

    OBNÓXIO DAS RUÍNAS

    - Talvez tenha sido insensato dizeres isso assim a seco. É natural que o homem tenha pensado que estavas a meter-te com ele.

    - Só se for estúpido ou paranóico. O contexto era perfeitamente claro. Estávamos a discutir propostas de projectos, programas de trabalho, coisas assim.

    - Coisas assim... É tão estranho isso que vocês fazem nessas reuniões. Programas de trabalho? Contemplar ruínas?

    - Sim, contemplar ruínas em paz. Não achas bem?

    - Nem bem nem mal, só não percebo, não imagino o que seja um trabalho desses, se é que consideras isso trabalho.

    - Considerar propriamente não considero. Mas olha que também não considero trabalho o que eles propõem em alternativa. Levantamentos, inquéritos, bases de dados, estudos disto e daquilo... Contemplar é muito melhor, tem outra elegância. E muita tradição, muita... antiguidade.

    - Pois, mas deve ser por isso que também tem um ar de... como direi... coisa de sornas, preguiçosos, ficam a olhar... para ruínas?!

    - Contemplar, o termo é contemplar, e o modo é muito importate: em paz. Contemplar em paz.

    - Patetice! Contemplar é claro que é em paz, envolve tranquilidade, não se anda a contemplar a correr ou enquanto se discute com o vizinho. Fica-se sentado a olhar...

    - E tu a dares-lhe! não é olhar, é contemplar. E não é coisa de sornas, é para ociosos, muito diferente. É uma actividade eminentemente teórica, consiste em considerar, examinar, escrutinar as ruínas, e em paz quer dizer sem as envolver numa guerra de contemplações, ou se quiseres, uma guerra de teorias. É aceitar certo apelo das ruínas: nem promovemos o arruinamento, nem o lamentamos, nem responsabilizamos outros, nem imaginamos meios de o compensar, nada, nada que envolva luta, guerra, modificação do estado das ruínas ou abandono delas para ir edificar outra coisa em nome de qualquer outra coisa, porque edifícios e edificações são próprios de gente activa. É isso o programa de contemplar as ruínas em paz.

    - Nem discuto... Diz-me só uma coisa: como é que o homem se convenceu de que estavas a chamar-lhe ruína?

    - Não sei, devo ter-me explicado mal.

     

    OBNÓXIO DO PROCRASTINADOR

    - Bolas, não paras de te rir. Pareces um tolinho, aí a rir sozinho...

    - Sozinho, não é bem. Estou a rir-me com uma anedota que me contaram ontem, desculpa, não consigo parar, é irresistível...

    - Então é melhor contares, pode ser que melhore o ambiente, sempre nos rimos os dois.

    - Um homem matou a mulher com quem estava casado há 65 anos. Foi condenado, claro, nem havia dúvida da culpa dele. O juiz é que não se conformava: - Homem, perguntava-lhe, como é possível alguém matar a mulher ao fim de 65 anos de casamento? Para mim, isso é totalmente incompreensível. E foi repetindo a pergunta ao longo do julgamento, até que o homicida, que permanecera silencioso, encolheu os ombros e respondeu, bisonho: - Sabe como é Sr. Dr. Juiz, um homem vai adiando, adiando...

    - Eheh... muito boa!

    - Espera que ainda não acabou, quero dizer, não era bem disso que me estava a rir. A pessoa que ma contou tinha acabado de a contar a outra que lhe disse isto: «Que graça é que isso tem? Só uma pessoa que vive infeliz no seu casamento pode achar piada a isso.»

    - E disse mesmo assim, «infeliz no seu casamento»...?

    - Sim, disse mesmo assim, à francesa, no seu casamento, não fossemos nós pensar que estava infeliz no casamento do vizinho...

    - Não seria invulgar, o adultério existe no mundo social contemporâneo, não sei se sabes.

    - Sei, mas o que acho irresistível é que alguém conceba que uma anedota universalmente engraçada só tem piada para quem é infeliz no seu casamento.

    - Sim, isso é disparate. E daí, por outro lado, ponderando... Ora conta lá outra vez.

    - Um homem matou a mulher com quem estava casado há 65 anos. Foi condenado, claro, nem havia dúvida da culpa dele. O juiz é que não se conformava: - Homem, perguntava-lhe, como é possível alguém matar a mulher ao fim de 65 anos de casamento? Para mim, isso é totalmente incompreensível. E foi repetindo a pergunta ao longo do julgamento, até que o homicida, que permanecera silencioso, encolheu os ombros e respondeu, bisonho: - Sabe como é Sr. Dr. Juiz, um homem vai adiando, adiando...

    - Eheh... muito boa!

    - Espera que ainda não acabou, quero dizer, não era bem disso que me estava a rir. A pessoa que ma contou tinha acabado de a contar a outra que lhe disse isto: «Que graça é que isso tem? Só uma pessoa que vive infeliz no seu casamento pode achar piada a isso.»

    - E disse mesmo assim, «infeliz no seu casamento»...?

    - Sim, disse mesmo assim, à francesa, no seu casamento, não fossemos nós pensar que estava infeliz no casamento do vizinho...

    - Não seria invulgar, o adultério existe no mundo social contemporâneo, não sei se sabes.

    - Sei, mas o que acho irresistível é que alguém conceba que uma anedota universalmente engraçada só tem piada para quem é infeliz no seu casamento.

    - Sim, isso é disparate. E daí, por outro lado, ponderando... Ora conta lá outra vez.

    - Um homem matou a mulher com quem estava casado há 65 anos. Foi condenado, claro, nem havia dúvida da culpa dele. O juiz é que não se conformava: - Homem, perguntava-lhe, como é possível alguém matar a mulher ao fim de 65 anos de casamento? Para mim, isso é totalmente incompreensível. E foi repetindo a pergunta ao longo do julgamento, até que o homicida, que permanecera silencioso, encolheu os ombros e respondeu, bisonho: - Sabe como é Sr. Dr. Juiz, um homem vai adiando, adiando...

    - Pois... hmm... não, é mesmo disparate, mais inesperado que a anedota. Tens razão, essa piada é universalmente engraçada.

     

     

    Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa, onde ensina principalmente literatura brasileira. Estuda há muito a obra de Machado de Assis, tendo três livros publicados no Brasil, todos na Editora da Unicamp: A formação do nome (2003), Autobibliografias (2003) e Três emendas (2014). O seu último livro, E assim sucessivamente (Lisboa, 2015), é um conjunto de ensaios em jeito de crônica a que chama "ensaios facetos", gênero que prolonga agora em diálogos curtíssimos a que chama "obnóxios", que constituirão novo livro se tudo correr de acordo com os planos.