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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.4 São Paulo oct./dic. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000400010 

    ARTIGOS
    CIÊNCIA E AGRICULTURA
    APRESENTAÇÃO

     

    Ciência e agricultura

     

     

    Zander Navarro

    Pesquisador na Embrapa Sede (Brasília, DF). É PhD em sociologia pela Universidade de Sussex (Inglaterra). E-mail: Zander.Navarro@embrapa.br

     

     

    Os artigos que compõem este Núcleo Temático e seguem esta breve introdução destinam-se a apresentar os aspectos que configuram o importante papel da ciência para a agricultura. Se do ponto de vista histórico a agricultura é fortemente pautada, desde a sua origem, pelo conhecimento baseado em evidências, a incorporação dos métodos da ciência moderna foram cruciais para a sua caracterização atual. No contexto mais recente de grande expansão da população do planeta e redução das áreas cultiváveis, o conhecimento científico, a tecnologia e a inovação no setor agrário são essenciais para uma produção agropecuária suficiente e sustentável.

    Uma breve analogia pode ser reveladora, no entanto, como preâmbulo a este Núcleo Temático. Comentando sobre uma poderosa tradição do pensamento político e social, iniciada por Marx no século XIX, o lendário filósofo francês Jean-Paul Sartre alertou, em 1957, que "o marxismo é ainda muito jovem, quase em sua infância" - mais de setenta anos depois da morte de Marx. Ressaltou, igualmente, que adotar esse modelo de interpretação sobre o desenvolvimento das sociedades exigiria, como pressuposto, conhecer a realidade, confrontar o mundo como ele realmente existe, sem se apegar à ilusão de julgar que as respostas aos problemas e desafios podem ser localizadas em citações de textos sagrados, frases retóricas ou a reiteração do autoengano. "Precisamos achar o método e constituir a ciência", concluiu Sartre, igualmente ressaltando que esse seria um esforço, particularmente, para entender a história e suas "verdades mais profundas". Conhecer o passado e interpretá-lo, para explicar o presente e, somente assim, ser capaz de projetar com robustez o futuro, esse seria um dos predicamentos metodológicos do materialismo proposto por Marx. De fato, um preceito derivado da sensatez lógica.

    Esse fato histórico pode ser analiticamente útil, sob uma proveitosa analogia, para a caracterização do chamado "campo agroecológico". Uma avaliação inicial, suave e simpática ao esforço empreendido pela agroecologia, acompanharia a historieta acima citada, pois, embora ainda muito jovem, "quase em sua infância", a agroecologia estaria sugerindo prima facie uma série de iniciativas sociais, produtivas, tecnológicas (quem sabe, até científicas) que poderiam estar anunciando em algum futuro longínquo uma "nova agricultura", em substituição ao atual padrão de produção agropecuária dominante em todo o mundo. Seria, assim, um ousado esforço coletivo, embora (ainda) sem rigor conceitual ou teórico, e nem mesmo algum modelo tecnológico, para indicar diversos caminhos, abrigados sob o guarda-chuva de uma "agricultura ecológica", qualquer que fosse a sua vertente.

    A simpatia imediata a esta versão edulcorada, pueril e mais emocional do que racional, ocorre porque sempre será melhor pensar, em acordo com o senso comum, no acesso a alimentos que sejam naturais, sem aditivos agroindustriais de nenhum tipo, pois esta seria "a ordem natural das coisas", desde tempos imemoriais. Apenas se estaria enfatizando uma via de interpretar o passado e o presente da agricultura principalmente em função de seus impactos, especialmente os ambientais e, desta forma, construir um futuro no qual a produção de alimentos obedeceria a outros ditames mais sustentáveis. No entanto, para oferecer a explicação, ainda faltaria um esforço redobrado para "achar o método e construir a ciência", pois permaneceria a pergunta sem resposta - existe um método agroecológico associado a uma problemática científica correspondente?

    Contudo, existe outra leitura acerca da emergência da agroecologia no Brasil, crítica, realista e mais assentada nos fatos e nas "verdades profundas" da história, abandonando a interpretação rósea acima referida. Essa segunda interpretação sugere que, na realidade, os proponentes desse campo não pretendem (senão discursivamente) garantir a produção de alimentos baratos e produzidos sob formas sustentáveis para a população como um todo e, menos ainda, garantir prosperidade econômica aos produtores que forem atraídos para a proposta. Seus discursos públicos podem até ser assim, enfatizando esses generosos objetivos, mas suas intenções reais, nunca afirmadas publicamente, são outras. Em uma curta síntese, a agroecologia, no Brasil, é apenas, e exclusivamente, uma ação política que, sob o pretexto de atacar o padrão de produção agropecuária dominante no país, desenvolve, de fato, uma narrativa anticapitalista oculta sob a retórica da sustentabilidade. E é assim porque a maioria de seus proponentes principais e notórios ostentam conhecidas trajetórias no campo da chamada "esquerda agrária" e seus objetivos são primordialmente políticos, não tecnológicos, científicos e nem mesmo sociais ou ambientais.

    Afirmado mais sucintamente, a marcha da "agroecologia" em nosso país seria, na realidade, a expressão de uma (pobre) ideologia. O termo, entendido no seu sentido mais clássico que foi popularizado na sociologia, indica uma ilusão, uma falsa consciência, um conjunto de ideias manipuladas por uma classe ou grupo, para idealizar o mundo e aparentar que os interesses desse grupo seriam também "o interesse coletivo", de toda a sociedade. Nas manifestações ideológicas, que Marx analisou em um de seus mais famosos livros, A ideologia alemã (1846), "os homens e as suas relações nos surgem invertidos", o que parece ser admiravelmente o caso dos comportamentos e argumentos associados à "agroecologia" e suas manifestações no Brasil. Sem nenhuma surpresa, a maior parte do que vem a público sob esse rótulo se assemelha às evidências concretas de dogmas religiosos, seitas ou de cultos assentados em ideias rígidas, pois não requerem fatos, provas ou outras evidências. Novamente se recorre aqui à advertência de Sartre, pois não existe método e, muito menos, algum laivo, ainda que superficial, de ciência propriamente dita.

    Como seria esperado, nem todos os proponentes da agroecologia seguem tais roteiros de ambição política ou, talvez, sequer imaginam estar desenvolvendo uma ideologia, nesse sentido negativo de desenvolver uma manipulação coletiva. Uma proporção significativa dos defensores desse campo parece realmente acreditar que estaria sendo construído um "novo formato tecnológico ecológico e sustentável" aplicável à produção agropecuária, o qual sustentaria economicamente as famílias rurais, especialmente aquelas de menor porte econômico (a chamada "agricultura familiar"). A explicação para esta aceitação acrítica seria simples, pois o termo "agroecologia" sugere imediatamente uma vaga associação com "agricultura ecológica", uma ambição que é socialmente desejável. Como desconhecem a história passada das peripécias desta palavra (ou conhecem-na apenas superficialmente), os atores envolvidos, as motivações políticas, as relações entre as ONGs dedicadas ao assunto, os vínculos partidários e as disfarçadas ambições de "transformação social", são colegas que, na prática, acabam sendo joguetes em uma estratégia política. Aceitam passivamente e sem postura crítica o jargão proposto, sem se perguntarem se a "agroecologia", concretamente, poderia representar, de fato, um caminho promissor para as famílias empobrecidas do Brasil rural [1].

    Uma brevíssima síntese do termo "agroecologia" registra que a sua introdução no Brasil se deu pelas mãos de um entomologista chileno, Miguel Altieri, o qual, ainda morador naquele país, militava politicamente à esquerda e conhecia em alguma medida os encantadores sistemas de produção indígenas das terras altas dos Andes [2]. Com o golpe militar, em 1973 (que depôs o presidente Allende), Altieri rumou ao exílio nos Estados Unidos, onde concluiu seu doutoramento e vinculou-se à Universidade da Califórnia. Na década de 1980, iniciou suas incursões pelo Brasil e, primeiramente, ainda naqueles anos, aliou-se a militantes brasileiros com os mesmos propósitos. Ou seja, ativistas anticapitalistas contestadores da chamada "agricultura moderna", o padrão de organização produtiva da agropecuária que havia sido incentivado durante os anos do regime militar e se expandido fortemente, enraizando-se em diversas regiões rurais. Entre os brasileiros, a proeminência ficou à cargo de uma ONG carioca, depois renomeada como sendo a atual AS-PTA. O nome "agroecologia", contudo, não se disseminou imediatamente, pois os demais grupos de ativistas com o mesmo objetivo geral preferiam então a designação de "agricultura alternativa" e os esforços eram na direção de aprofundar suas vertentes principais, da agricultura orgânica à biodinâmica e, em menor envergadura, da agricultura ecológica à natural (ver o riquíssimo depoimento de um produtor, em [3]).

    Na virada do século, a palavra "agroecologia" emergiu com mais força, graças especialmente à decisão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de abraçar o termo para animar a sua ação política mais geral. Desenhou-se então a estratégia a ser seguida que, alguns anos depois, vem observando fatos inacreditáveis, como cursos de graduação e pós-graduação em "agroecologia" e até surrealistas editais do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) destinados a estimular pesquisas nesse "novo campo", os quais sequer apresentam aos interessados o que se entenderia por "agroecologia". A culminação desta sequência espantosa foi a aprovação de uma lei nacional, em 2012, na qual se vincula uma vertente tecnológica reconhecida e aceita (a agricultura orgânica) com o novo termo, que foi contrabandeado na lei, para garantir a sua institucionalização. Esse é o sucinto roteiro dos últimos anos, o qual explica o súbito e gradual surgimento da palavra e a sua crescente repetição, em diferentes âmbitos, assim garantindo a sua "naturalização", embora sem oferecer sequer alguma definição a respeito.

    Este Núcleo Temático é constituído de seis artigos, além desta introdução, sob a lavra de cientistas de reconhecida reputação em suas respectivas áreas de atuação, o primeiro deles professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e os demais pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Deve ser enfatizado que nenhum dos autores esboça a menor oposição, remota que possa ser, à proposição geral da "ecologização do sistema agroalimentar", pois esta é meta social (e científica) que hoje motiva corações e mentes, em todo o mundo. Seria quixotesco opor-se a essa ambição coletiva. Mas os autores são comprometidos com a segurança alimentar, com a eficiência do sistema produtivo, com o progresso tecnológico e a ciência em geral.

    O primeiro artigo, de Amílcar Baiardi, discorre sobre a evolução do pensamento científico, para introduzir a agronomia, um campo de inquirição humana que, desde o seu nascedouro, esteve sempre "baseado em evidências e não em crenças", visando "o aprimoramento do conhecimento aplicado". Ainda mais relevante, Baiardi destaca que os esforços realizados pela "arte agronômica" estabeleceram, já em seus primórdios, uma trajetória "em harmonia com a natureza (...) um compromisso de gênese com a preservação da natureza, que nunca foi negligenciado". Conclui, em face da história da ciência e seu legado, que a chamada agroecologia não poderia se apresentar propriamente como ciência, ainda que "em formação".

    O segundo artigo, de autoria de Décio Luiz Gazzoni, argumenta que o padrão tecnológico que organiza todas as agriculturas do mundo é uma construção histórica que moldou não apenas a produção de alimentos e matérias-primas de origem agropecuária, mas até mesmo a configuração das sociedades. No texto, o pesquisador discute diversas restrições à produção que vão se tornando mais agudas, no tocante à necessidade de alimentar o mundo, especialmente a limitação relativa ao aumento da área plantada. Restaria, sobretudo, a imposição de ganhos de produtividade como o caminho principal para aumentar a oferta de alimentos. Portanto, é tendência que afirma, ainda mais vigorosamente, a chamada agricultura moderna, e não algum modelo alternativo a esse padrão tecnológico hoje dominante em todo o mundo.

    Evaristo de Miranda relaciona, no terceiro artigo, as técnicas e tecnologias empregadas na agricultura moderna que a permitem reduzir os impactos ambientais da atividade. Dados estatísticos recentes, extraídos de mais de quatro milhões de declarações georreferenciadas decorrentes da aplicação do Cadastro Ambiental Rural em quase todo o país, demonstram que o nascimento e o desenvolvimento da agricultura moderna no Brasil foram alicerçados, de fato, em um padrão sustentável baseado na proteção de áreas nativas não cultivadas.

    No artigo seguinte, Carlos Bloch Jr. assenta-se na filosofia aristotélica para enfatizar sobre os comportamentos sociais que não distinguem a diferença entre essência e aparência e, por isso, se distanciam da "estrutura do real. Real este que é a matéria-prima sem a qual nenhuma suposta atividade científica pode ser levada a sério". Embora sem citar a agroecologia, o autor demonstra a necessidade de pensar e orientar as atividades relacionadas à agropecuária, necessariamente, a partir da concretude da produção (ou "a realidade"). Por esta razão, é texto crucial para apontar, sob uma lógica conceitual, a impossibilidade das iniciativas autointituladas de agroecologia, pois estas são, sobretudo, retóricas e sem relação com situações práticas.

    O quinto artigo, de autoria de Maria Thereza Macedo Pedroso, oferece uma resposta empírica à pergunta: "qual é a verdadeira questão social no campo brasileiro, em nossos dias?". No texto, a autora argumenta que o maior desafio, atualmente posto à vasta maioria dos produtores de porte médio e pequeno, é o acesso à melhor tecnologia possível para sobreviverem ao acirramento concorrencial, em face da espantosa concentração da riqueza que vem caracterizando o curso da agropecuária brasileira. Na segunda parte de seu artigo, a pesquisadora ilustra a impossibilidade de outro caminho tecnológico, uma vez que, segundo ela, a própria definição de agroecologia é contraditória.

    O artigo que conclui o conjunto de curtos ensaios é de autoria de Carlos Alberto Lopes, que discute se seria possível "produzir alimentos sem agroquímicos". Lopes apresenta e pondera em seu texto as diversas nuances do tema. São facetas que apontam que, em nossos dias, retirar esses insumos da produção representaria, tão somente, a propagação da fome e da elevação absurda dos preços dos produtos. Os agricultores utilizam os agroquímicos, enfatiza o autor, "não porque gostam, mas porque é preciso", também alertando que a preocupação maior com esses produtos "não deveria ser os agrotóxicos em si, cujo uso é legal, porém o seu mau uso, quando são utilizados produtos não registrados e quando não se respeitam dosagens e nem os períodos de carência".

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Navarro, Z. "Agroecologia: as coisas em seu lugar (A agronomia brasileira visita a terra dos duendes)". In: Colóquio, 2013, vol. 10, n.1, pp. 11-45. Disponível em: https://seer.faccat.br/index.php/coloquio/article/view/23/pdf_11

    2. Altieri, M. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989.

    3. Mesquita, F. F. "Agricultura orgânica: relato de uma experiência". In: Colóquio [online], 2013, vol. 10, n.2, pp. 149-156. Disponível em: https://seer.faccat.br/index.php/coloquio/article/view/86/pdf_26