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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000400012 

    ARTIGOS
    CIÊNCIA E AGRICULTURA

     

    Como alimentar 10 bilhões de cidadãos na década de 2050?

     

     

    Decio Luiz Gazzoni

    Engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja. E-mail: decio.gazzoni@embrapa.br

     

     

    O impacto da agricultura sobre o ambiente é um tema recorrente ao longo da história da humanidade. Poderíamos situar sua gênese quando os primeiros agrupamentos humanos decidiram substituir o nomadismo, a caça, a pesca e o extrativismo pela fixação da comunidade em locais onde plantas e animais domesticados passaram a ser cultivados ou criados. O simples fato de cultivar uma área homogênea, dominada por uma determinada espécie, altera o equilíbrio da cadeia alimentar, exigindo sofisticação crescente na produção de alimentos.

    O advento da agricultura permitiu a formação de núcleos, aglomerados, vilas, cidades e regiões, organizando as sociedades e especializando o trabalho. No curso do tempo, a demanda de alimentos guarda uma relação linear com o crescimento da população, sempre acompanhada do desafio de produzir com sustentabilidade.

    A Organização das Nações Unidas (ONU) projeta três diferentes cenários para o futuro da população mundial, baseados na variação da taxa de natalidade no tempo [1]. No século XXI, a população equilibrar-se-ia com a taxa de 2,05 filhos por mulher, e o estudo usa taxas de 1,55 para o cenário de baixo crescimento, de 2,55 para alto crescimento, e o cenário de médio crescimento situar-se-ia entre os dois extremos. Considerando que o maior crescimento da população ocorrerá em países com baixo índice de desenvolvimento, mormente regiões da África, Sudeste Asiático e América Latina, a curva populacional mais provável deverá situar-se entre os cenários médio e alto. Ao final da década de 2050, a população mundial variará entre 9,3 e 10,6 bilhões de pessoas, sendo 10 bilhões uma estimativa razoável (Figura 1).

     

     

    O fator que mais impulsionará a demanda de alimentos será o crescimento da renda per capita [2], ou seja, o dinheiro disponível para as famílias atenderem as suas necessidades. Percebe-se na Figura 1 que o crescimento da renda per capita entre 2020 e 2060 assume forma exponencial, impondo dois impactos principais: (a) a diminuição da população com carências nutricionais, atualmente estimada pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) entre 800 milhões e 1 bilhão de pessoas, que deverá atingir valores marginais no final do período; e (b) as mudanças de hábitos de consumo, em especial com o aumento da demanda de proteínas de origem animal. O aumento da produção pecuária, particularmente suínos, aves e bovinos confinados, exigirá volumes exponencialmente maiores de rações. O consumo estimado de 250kg de grãos por cidadão, para atender suas necessidades alimentares, terá um incremento ponderável, pois, em média, para cada quilo de carne produzida, estima-se que sejam necessários 6kg de grãos [5].

    Considere-se que produtos agrícolas não se restringem a alimentos. A sociedade demanda fibras, madeira, matéria-prima para biocombustíveis e para a indústria química, plantas medicinais e ornamentais, além da competição crescente do espaço rural com outras atividades, como turismo rural, fazendas eólicas e fotovoltaicas, infraestrutura de transportes e industrial, avanço dos limites das cidades, espaços de lazer, entre outros. De acordo com a FAO [6], no ano de 2014 foram produzidos 2,5 Gt de grãos e 316 Mt de carnes, ocupando 1,4 GHa para produção de grãos, hortaliças e frutas; 3,4 GHa em pastagens; e cerca de 270 MHa destinados para florestas plantadas. A FAO estima a necessidade de produzir 70% mais alimentos entre 2010 e 2050 e, conforme Bruinsma [7], será necessário produzir, anualmente, mais 1 Gt de grãos e 200 Mt de carnes para atender a demanda em 2050.

     

    RESTRIÇÕES À PRODUÇÃO

    A primeira grande restrição que se antepõe ao atendimento da demanda prevista para a década de 2050 é a disponibilidade de terras minimamente adequadas para o cultivo. As áreas com melhor vocação agrícola e mais próximas dos centros de consumo já foram ocupadas, logo a expansão ocorreria em áreas marginais, com sérias restrições climáticas e/ou edáficas e topográficas, portanto com necessidade de irrigação e/ou intenso aporte de corretivos e fertilizantes, e dificuldades de mecanização. Alternativamente, a área agrícola teria que avançar sobre formações de matas remanescentes, criando um enorme passivo ambiental. Um índice que bem expressa essa limitação é a relação entre terra arável disponível no mundo e a população mundial, que já foi de 38 ha/pessoa em 1960 e hoje situa-se em 19,6 ha/pessoa, uma redução próxima a 50% [8].

    A segunda restrição à produção de alimentos, vinculada à anterior, é o avanço de outras atividades no espaço rural, decorrente da expansão populacional e da renda per capita, algumas ligadas à agricultura, como produção de biocombustíveis, insumos para a indústria química ou farmacêutica, plantas ornamentais e de florestas cultivadas. Outras demandas, como áreas de lazer, infraestrutura, avanço das áreas urbanas, demarcação de áreas indígenas e reservas florestais limitam a área para produção de alimentos. Em consequência das duas restrições até aqui citadas, o preço da terra tende a aumentar desproporcionalmente, majorando custos fixos, requerendo maior aporte de capital, em teoria encarecendo o produto agrícola para o consumidor e restringindo o número de pequenas propriedades.

    A terceira restrição decorre das mudanças climáticas globais atualmente em curso, sendo as previsões do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) [9] muito sombrias quanto à redução das áreas de alta adequação para determinados cultivos, bem como maior risco de perda de produção por extremos climáticos, como secas ou inundações.

    A quarta restrição deriva da intensificação do comércio internacional de produtos agrícolas, o que aumenta o risco de introdução de pragas agrícolas exóticas. Esse aspecto é agravado pelo mencionado anteriormente, seja a respeito de mudanças climáticas, que tornarão determinados ambientes mais propícios à adaptação das pragas agrícolas; ou da intensificação da agricultura (duas a três colheitas dentro do mesmo ano agrícola), que é uma forma de contornar as limitações à expansão da área cultivável, mas que cria "pontes verdes" e permite a adaptação de pragas a hospedeiros não tradicionais.

    A quinta restrição decorre do intenso fenômeno de urbanização, que se acentua em escala mundial. De acordo com a FAO, desde 2010 existem mais pessoas vivendo nas cidades que nos campos. Como tal, é cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a trabalhar no campo, seja como empresários ou trabalhadores rurais - mesmo com salários ou rendas maiores. A progressiva falta de mão de obra força a necessidade de automação e mecanização em larga escala, bem como o cultivo de propriedades cada vez maiores, para que possam ser conduzidas por menor número de pessoas envolvidas na produção. Prevê-se uma reforma agrária às avessas, com a coalescência de pequenas e médias propriedades. O desaparecimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, é um exemplo concreto de como as pessoas não mais almejam viver no campo.

     

    QUESTÕES DIRETRIZES

    Pelo exposto, impõem-se algumas perguntas, cujas respostas indicarão o modelo de agricultura que permitirá atender a demanda global por alimentos em 2060:

    Como produzir alimentos suficientes, a preços acessíveis, para abastecer a população do planeta?

    Qual é o limite para expansão de área cultivada e de pastagens?

    Quais são as novas tecnologias que podem nos ajudar a usar os escassos recursos de forma mais eficiente e aumentar os rendimentos, para garantir colheitas e a produção pecuária?

    Estamos investindo o suficiente em pesquisa e desenvolvimento na área agronômica, de forma a dispor de inovações para superar os desafios que se anteveem?

    A sociedade mundial, em particular os governos, estão dispostos a enfrentar o problema das mudanças climáticas globais, reduzindo o impacto negativo sobre a produção agrícola?

    Será possível expandir a produção agrícola de forma sustentável, respeitando o ambiente e preservando os serviços ecossistêmicos?

    O acesso à alimentação é, primariamente, função da renda disponível para aquisição de alimentos e, subsidiariamente, da oferta de produtos agrícolas. A afirmativa decorre do fato de que, em havendo demanda, esta induz uma oferta correspondente, desde que existam os meios para sua produção. Os preços são um mediador entre a oferta e a demanda, sendo modulados pelos estoques disponíveis, pelos custos de produção e pelas expectativas quanto à oferta e demanda futura. Em havendo uma demanda não sazonal, ou seja, uma tendência clara de aumento contínuo ou de salto de patamar, os preços tendem a subir e enviam sinais claros aos produtores para que aumentem a produção. Atendida a demanda, pelo novo patamar de oferta, os preços encontram um novo ponto de equilíbrio.

    Isso posto, pode-se considerar o índice de preços da FAO (Figura 2), atualizado mensalmente, como um proxy adequado que permite aferir se a oferta de alimentos está condizente com a sua demanda. Verifica-se que o índice oscila, com picos e vales, que podem ser explicados por (a) incremento de custos (crise do petróleo, década de 1970); (b) redução da demanda e ganhos de produtividade agrícola (década de 1990); (c) aumento da demanda (intenso crescimento da renda per capita entre 2003 e 2009); (d) elevados estoques (redução da renda per capita global conjuminada com aumento da produção agrícola, no período 2011-2015).

     

     

    Abstraindo-se as variações intra período, observa-se pela linha de tendência uma contínua redução de preços entre 1960 e 1990, seguida por uma ascensão posterior. Muito provavelmente essa recente tendência altista perdurará nos próximos 40 anos, pelos fatores expostos anteriormente, tanto aqueles ligados ao aumento da demanda quanto os vinculados aos desafios para a expansão da produção agrícola.

    Entrementes, a questão não é tão simples, outros elementos precisam ser colocados na equação. Por exemplo, o simples fato de haver aumento de renda per capita (mais dinheiro disponível para comprar alimentos) pode ser um fator que leve o mercado a testar os limites de alta, para verificar quanto os consumidores estão dispostos a pagar pelo produto, independente de alterações de custo, qualidade, oferta ou demanda. O mesmo fenômeno de aumento de renda leva a novas exigências e mudanças de hábito. O consumidor exige mais qualidade, o que leva as cadeias de abastecimento a criarem processos de certificação e de rastreabilidade, o que agrega valor, aumenta custos e eleva preços.

    O consumidor também passa a selecionar marcas, que se impõem no mercado por elementos acessórios, como apresentação, forma e marketing, o que eleva seu valor no mercado e o preço ao consumidor. A mudança de hábitos de maior impacto vai ocorrer no aumento do consumo de proteínas animais, o que exige maior produção de grãos (em especial soja e milho) para o seu arraçoamento, forçando a curva de demanda per capita acima dos níveis históricos. Finalmente, a sociedade anseia por alimentos seguros e inócuos, exigindo dos governos legislações cada vez mais rígidas e severas, em especial no que tange ao uso de insumos (fertilizantes, agrotóxicos, antibióticos, OGMs, contaminantes), o que impõe custos de pesquisa e desenvolvimento e de atendimento aos regulamentos, consequentemente elevando preços.

     

    COMO ATENDER À DEMANDA

    Partindo do estudo da FAO que estima a necessidade de aumento da produção agrícola em cerca de 70%, entre 2010 e 2050, obtém-se a média geométrica de 1,34% ao ano, para atender a demanda de alimentos. Assumindo as restrições de disponibilidade de terra agricultável e o consequente aumento do preço da terra, é lícito concluir que a expansão horizontal da produção será muito pequena, provavelmente respondendo por não mais que 10% do aumento da produção agrícola. Parcela dos restantes 60% deverá ser atendida por intensificação da agricultura, com segunda e terceira safras na mesma área, e no mesmo ano agrícola. Entretanto, essa alternativa apenas está disponível para países situados na faixa tropical ou subtropical do planeta, com ofertas de chuva e temperatura adequadas, não sendo aplicável a regiões temperadas e frias. Por fim, o restante da demanda deverá ser provido por ganhos de produtividade, decorrentes de otimização da gestão dos fatores de produção e de inovações tecnológicas. Considerando que uma parcela entre 20 e 25% da produção será obtida por expansão de área ou intensificação da agricultura, é razoável admitir que um ganho de produtividade geométrico de 1,1% no período permitirá atingir a meta de produção.

    Neste particular, é interessante verificar na Tabela 1 que, entre 1961 e 2014, a média geométrica de incremento de produtividade global, para os quatro principais grãos, foi de 1,83%, variando entre 1,56% para a soja e 2,08% para o trigo. Analisando-se o caso isolado do Brasil - seguramente o protagonista do atendimento da demanda adicional requerida pelo mundo nos próximos 45 anos -, o incremento da produtividade de grãos no mesmo período foi de 2,24%, variando entre 1,21% para o arroz irrigado a 2,67% para o trigo. Portanto, o desafio de obter um incremento médio anual de 1,1% na produtividade agrícola mostra-se factível, do ponto de vista prático, pelo histórico já obtido e pela geração e difusão de novas tecnologias, que permitirão novos saltos de produtividade.

     

     

    Para tanto, alguns quesitos que fundamentam a produtividade necessitam ser observados, todos eles com fundamento tecnológico, iniciando-se pelo correto manejo do solo, permitindo que o perfil do solo seja adequado do ponto de vista físico e químico, com acidez dentro de parâmetros aceitáveis, teor adequado de matéria orgânica, disponibilidade de macro e micronutrientes e porosidade e aeração adequada. O manejo deve ser efetuado de forma a melhorar continuamente a qualidade do solo, reduzindo a erosão, mantendo o nível de fertilidade do solo compatível com a obtenção de alta produtividade, com adequada capacidade de drenagem, absorção e retenção de água, criando condições para manutenção da microflora do solo que presta serviços ecossistêmicos indispensáveis à agricultura.

    Os materiais genéticos a serem cultivados devem atender diversos quesitos, como adaptação às condições edafoclimáticas locais, dispor de elevada tolerância ou resistência às pragas chaves do cultivo, sendo semeado na época mais adequada, observando a população ótima por unidade de área. A proteção fitossanitária deve obedecer a rígidos critérios técnicos, permitindo evitar perda de produção ao tempo em que minimiza impactos negativos sobre o ambiente, particularmente sobre serviços ecossistêmicos essenciais, como o controle biológico, a fixação biológica de nitrogênio ou a polinização. Para tanto, será fundamental observar criteriosamente as recomendações dos programas de manejo de pragas de cada cultivo, bem como utilizar as melhores técnicas para aplicação das medidas fitossanitárias.

    O processo de colheita, armazenagem e transporte deve obedecer a protocolos técnicos que preservem a qualidade e minimizem as perdas de produto agrícola.

     

    DISCURSAR OU PRODUZIR?

    O descrito anteriormente representa a continuidade do paradigma dominante na oferta de produtos agrícolas e pecuários no mundo. Entretanto, existem nichos de mercado que são atendidos por outros modelos de produção - por exemplo, com produtos da agricultura orgânica, a qual não permite o uso de fertilizantes solúveis ou de produtos fitossanitários sintéticos. Também existem correntes de pensamento que se opõem a inúmeras tecnologias agrícolas, mormente aquelas contrárias ao uso de agrotóxicos sintéticos e de sementes geneticamente modificadas. Assim como existe o sistema denominado agroecologia, cuja proposta inicial foi elaborada na Rússia, por Basil Bensin [10].

    Atente-se ao conceito de Enio Guterres [11] para agroecologia:

    "A abordagem agroecológica propõe mudanças profundas nos sistemas e nas formas de produção. Na base dessa mudança está a filosofia de se produzir de acordo com as leis e as dinâmicas que regem os ecossistemas - uma produção com e não contra a natureza. Propõe, portanto, novas formas de apropriação dos recursos naturais que devem se materializar em estratégias e tecnologias condizentes com a filosofia-base."

    Enquanto texto discursivo, os defensores da agroecologia são pródigos em elaborar narrativas que representam o ideal utópico que qualquer ser humano defenderia com entusiasmo. No entanto, a maioria dos teóricos da agroecologia envereda por trilhas que objetivam, claramente, embates ideológicos, olvidando que o problema é demonstrar, com fatos e números incontestáveis, que a agroecologia pode solver o desafio central de abastecer o mundo de produtos agrícolas, a preços compatíveis com a renda da população, em bases sustentáveis.

    Causa-me espécie o fato de que as tentativas de buscar um modelo alternativo à agricultura moderna, responsável por 99% da produção mundial de alimentos e outros produtos agrícolas, pecuários e madeireiros, tenha sua gênese sempre em países ricos, mormente na Europa Ocidental, com renda per capita elevada, em geral acima dos US$ 50 mil anuais [2]. Com renda desse quilate é fácil contestar e afrontar a corrente dominante, posto que não mais que 10% da renda do cidadão é destinado à alimentação, em contraste com valores entre 50-80% em países pobres ou remediados. Portanto, se o alimento produzido nas condições exigidas pelos que contestam o modelo dominante custar, por hipótese, o dobro do preço, esta elite privilegiada pode arcar com o seu custo, sem que isto afete seu nível de consumo de outros bens. Se houver redução de oferta, e o preço subir, essa elite também não terá problemas de nutrição. Viajo frequentemente por países pobres da África, Sudeste Asiático e América Latina, onde a renda mal passa dos US$1.000 anuais, por vezes muito abaixo disto. O que sempre percebi entre os cidadãos desses países é a ânsia por alimentos, que atendam condições de segurança alimentar, e que caibam no seu orçamento.

    Em segundo lugar, noto que a preocupação com tecnologias modernas não é um princípio pétreo, uma constante do comportamento da vida do mesmo cidadão, já que a aversão à inovação tecnológica tem o foco assestado na produção de alimentos, não sendo aplicada a outros setores como farmácia, medicina, comunicação ou transporte. Por exemplo, já fui testemunha de um fato intrigante, visitando um colega em outro país. Referido cidadão pontuou com veemência que apenas utilizava produtos da agricultura orgânica em sua alimentação, razão pela qual o acompanhei na compra de dois pés de alface orgânica para preparar o almoço. Para tanto usamos uma SUV para viajar quase 40 km (ida e volta) a fim de comprar a referida alface. Haja poluição para tão pouco alimento! Durante a conversa percebi a alegria desfrutada pelo mesmo cidadão - que abominava variedades transgênicas - pela manutenção da qualidade de vida de seus progenitores diabéticos, graças ao uso de insulina produzida por microrganismos transgênicos. Haja contradição!

    Em dois artigos publicados na revista Cultivar, chamei a atenção para falácias que são aceitas sem contestação, distorcendo a visão da sociedade a respeito dos fatos. O primeiro deles [12], chama a atenção para a declaração do Ministério do Desenvolvimento Agrário de que a reforma agrária no Brasil já distribuíra 63 milhões de hectares para produtores rurais. No artigo em tela, alertei que as estatísticas mostravam que, nos 30 anos mencionados no informe, a área cultivada no Brasil havia aumentado apenas 9 Mha. Mesmo que essa área proviesse tão somente de assentamentos - e não o era! - ainda faltariam 54 Mha, nos quais, pela produtividade da época, seria possível produzir 193 Mt. Fiz a pergunta óbvia: Cadê a produção? Não é um volume que pudesse ser escondido ou sonegado, pois significaria aumentar em 147% a produção brasileira. Admito que seja verdade que uma área agrícola superior ao tamanho da França houvesse sido distribuída. Mas, o objetivo da reforma agrária era apenas distribuir terra? Ou deveria fornecer meios de produção, conferir renda aos produtores e abastecer os consumidores de produtos agrícolas?

    No segundo artigo [13], comentei um estudo de Seufert e colaboradores [14], que, utilizando técnicas de meta-análise de resultados publicados na literatura científica, concluíram que a produção orgânica apresenta produtividade entre 5% e 34% inferior à produção convencional. A partir destes números é possível inferir o impacto de uma mudança do padrão mundial - superior a 99% de agricultura convencional - para orgânico. De imediato, enfrentar-se-ia uma escolha de Sofia: aumentar a fome no mundo ou desmatar as florestas que sobraram. Em artigo publicado em 2014, Hoffmann [16], cuja trajetória acadêmica e orientação ideológica o tornam insuspeito, reagiu firmemente quando autoridades do governo federal afirmaram que a agricultura familiar produziria 70% dos alimentos consumidos no Brasil [15]: "A afirmativa é falsa. O valor monetário de toda a produção da agricultura familiar corresponde a menos de 25% do total das despesas das famílias brasileiras com alimentos" [16]. Entrementes, decorridos três anos, é recorrente o uso da afirmativa de que 70% dos alimentos provém da agricultura familiar, sem contestar os números elucidativos apresentados por ele.

    A prestigiosa revista New Scientist publicou, em sua edição de 30/11/2016, uma matéria intitulada "Stop buying organic food if you really want to save the planet" [17]. O título é tão contundente quanto polêmico, tendo atraído violentas reações dos defensores da agricultura orgânica. O artigo aponta diretamente para a diferença de produtividade entre a agricultura orgânica e a convencional, bem como mostra que aquela emite mais gases de efeito estufa.

    O texto da New Scientist está em linha com diversos autores, como Tuomisto e colaboradores [18], que analisaram quase uma centena de artigos científicos sobre impacto ambiental de agricultura orgânica e convencional na Europa. Os autores verificaram que a agricultura orgânica causa menor impacto ambiental por unidade de área, porém seu impacto é maior por unidade de produto, tendo em vista a menor produtividade. As emissões de gases de efeito estufa (GEE), como amônia e óxido nitroso, e a lixiviação de nitrogênio também foram maiores por unidade produzida, tendo sido verificado também haver maior potencial de eutrofização e acidificação do solo por unidade produzida. Similarmente, McGee [19] afirma que, nos Estados Unidos, a produção orgânica está positivamente associada com a emissão de GEE. De sua parte, Smith-Spangler e colaboradores [20] chamam a atenção para a falácia de afirmar que produtos orgânicos são mais nutritivos ou saudáveis, um mito desmentido pelos artigos científicos por eles revisados. Esses autores também afirmaram que foram encontrados mais resíduos de agrotóxicos em produtos orgânicos que em convencionais, embora em teores que atendiam a legislação.

    Em 24/01/2017, o Conselho de Direitos Humanos da ONU divulgou um relatório produzido pela Dra. Hilal Elver, intitulado "Right to Food" [21]. O documento afirma: "É hora de derrubar o mito de que os pesticidas são necessários para alimentar o mundo e criar um processo global de transição para uma produção mais segura e saudável de alimentos". Discursos não bastam, eles não resolvem problemas. Elver tem uma hipótese: pesticidas matam pessoas e são dispensáveis para produzir alimentos, portanto devemos alimentar o mundo com lavouras agroecológicas. Destarte, sugeri a ela, como doutora em leis, que proponha ao seu país, a Turquia, uma lei que proíba terminantemente a produção, a comercialização e o uso de qualquer pesticida destinado a combater pragas agrícolas, urbanas ou vetores de doenças. Se, ao final de cinco anos utilizando exclusivamente a agroecologia, a Turquia produzir mais alimentos e mais baratos, então devemos eliminar pesticidas de cinco países que sejam chave para o abastecimento de alimentos. Se, novamente, for possível produzir mais, melhor e mais barato sem pesticidas e sem fertilizantes, então todos os países do mundo devem aboli-los e utilizar exclusivamente a agroecologia.

    Em conclusão, há uma base comum que precisa ser preservada: todos pugnamos por uma agricultura que seja sustentável, que cause o menor impacto possível sobre o ambiente. Falece consenso no que tange a um acordo acerca do modelo de produção agrícola que, ao tempo em que se preserva o ambiente, permita alimentar não apenas as gerações presentes, mas todas as futuras gerações que habitarão o planeta Terra. Para tanto precisamos de menos discurso, menos ideologia, mais pragmatismo e decisões e ações baseadas em fatos e números lastreados em ciência, além de qualquer dúvida razoável.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. FAO. How to feed the world in 2050? Disponível em http://www.fao.org/fileadmin/templates/wsfs/docs/expert_paper/How_to_Feed_the_World_in_2050.pdf. Acessado em 24/6/2017.

    2. World Bank, World Development Indicators. Disponível em http://data.worldbank.org/products/wdi. Acessado em 24/6/2017.

    3. PWC. The world in 2050. Disponível em https://www.pwc.com/gx/en/issues/the-economy/assets/world-in-2050-february-2015.pdf. Acessado em 25/6/17.

    4. OECD. GDP long term forecast. Disponível em https://data.oecd.org/gdp/gdp-long-term-forecast.htm. Acessado em 25/6/17.

    5. Shike, D. W. "Beef cattle feed efficiency". Driftless Region Beef Conference 2013. Disponível em: http://lib.dr.iastate.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1027&context=driftlessconference. Acessado em 24/6/2017.

    6. FAOSTAT/FAO. Disponível em http://www.fao.org/faostat/en/#home. Acessado em 25/6/2017.

    7. Bruinsma, J. The resource outlook to 2050: by how much do land, water use and crop yields need to increase by 2050? Expert Meeting on How to Feed the World in 2050. Rome, FAO and ESDD. Disponível em ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/012/ak542e/ak542e06.pdf. Acessado em 25/6/2017.

    8. The World Bank. Arable Land (Hectares per person). Disponível em http://data.worldbank.org/indicator/AG.LND.ARBL.HA.PC. Acessado em 25/6/2017.

    9. IPCC. Quinto Informe de Evaluación del IPCC: Cambio Climático. Disponível em https://www.ipcc.ch/report/ar5/index_es.shtml. Acessado em 24/6/2017

    10. Wezel, A.; Soldat, V. "A quantitative and qualitative historical analysis of the scientific discipline agroecology".International Journal of Agricultural Sustainability, p. 3-18, 7, 1, 2009.

    11. Guterres, I. Agroecologia militante. Editora Expressão Popular, 2006. Disponível em http://xa.yimg.com/kq/groups/22192126/1226852867/name/Agroecologia+Militante.PDF. Acessado em 25/6/2017.

    12. Gazzoni, D. L. "Questionando dogmas I". Cultivar Grandes Culturas, 18, 213, 2017.

    13. Gazzoni, D. L. "Questionando dogmas II". Cultivar Grandes Culturas, 18, 214, 2017.

    14. Seufert, V.; Ramankutty, N.; Foley, J. A. "Comparing the yields of organic and conventional agriculture". Nature, p. 229-232, 485, 2012.

    15. Portal Brasil. "Agricultura familiar produz 70% de alimentos do país, mas ainda sofre na comercialização". Disponível em http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2011/07/agricultura-familiar-precisa-aumentar-vendas-e-se-organizar-melhor-diz-secretario. Acessado em 25/6/2017.

    16. Hoffmann, R. "A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil?". Disponível em http://coral.ufsm.br/ppgagr/images/Documentos/AF70.pdf. 2014. Acessado em 24/06/2017.

    17. le Page, M. "Stop buying organic food if you really want to save the planet". New Scientist. Disponível em https://www.newscientist.com/article/mg23231022-900-stop-buying-organic-food-if-you-really-want-to-save-the-planet/. Acessado em 25/6/2017.

    18. Tuomisto, H. L.; Hodge, I. D.; Riordan, P.; Mcdonald, D. W. "Does organic farming reduce environmental impacts? A meta-analysis of European research". J. Environ. Manag., p. 309-320, 112, 2012.

    19. McGee, J. A. "Does certified organic farming reduce greenhouse gas emissions from agricultural production?" Agriculture and Human Values, p. 255-263, 32, 2, 2015.

    20. Smith-Spangler, C. et al. "Are organic foods safer or healthier than conventional alternatives? A systematic review". Annals of Internal Medicine, p. 348-366, 157, 5. 2012.

    21 United Nations. Right to Food. Disponível em https://www.unscn.org/uploads/web/news/A-71-282-Nutrition-EN.pdf. Acessado em 25/6/17