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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.4 São Paulo oct./dic. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000400014 

    ARTIGOS
    CIÊNCIA E AGRICULTURA

     

    Água que passarinho não bebe

     

     

    Carlos Bloch Jr

    Pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, PhD em bioquímica pela Universidade de Durham (Reino Unido). E-mail: carlos.bloch@embrapa.br

     

     

    "Água de beber,
    água de benzer,
    água de banhar.

    Alcahol

    só para desinfetar."
    Jorge Ben Jor.

    Segundo a definição aristotélica, natureza é o princípio intrínseco de movimento e repouso do ente [1]. Grosso modo, ente é tudo aquilo que deriva do ser, que existe, que pode ser percebido pelos sentidos, aquilo que tem forma. O tomismo, no século XIII, dirá que o ente "tem" ser por participação no ser absoluto que o contém. O ser é aquilo que engloba a realidade manifesta, é o princípio de tudo, é o motor imóvel, é infinito e por isso mesmo não tem forma. O ser não pode ser percebido na sua totalidade porque nada o contém plenamente. É do ser que todos os entes procedem e cada qual, conforme a sua individualidade única, "dá-nos notícia" de alguns dos infinitos predicados do ser. Quanto aos entes, esses sim, podem ser objetos de estudo e compreensão mais imediata, como será visto abaixo, valendo-nos das definições de Aristóteles.

    Por exemplo, sabemos o que é a água. Sabemos que nas condições normais de temperatura e pressão (CNTP) o ente, água pura, pode ser percebido como um líquido transparente, sem cor, sem cheiro ou gosto, mas não de uma só vez pelos sentidos de um indivíduo. Além do que, mudando-se a temperatura e/ou a pressão, o ente água pura poderá assumir aparências bem distintas daquelas comumente observadas nas CNTP. Isto é, segundo o modelo atualmente aceito, a substância química composta de um átomo de oxigênio covalentemente ligado a dois átomos de hidrogênio, originando uma estrutura angular de 104,45º, pode-se "movimentar" para além de sua forma natural de repouso (líquida, nas CNTP) até atingir os seus extremos, ou seja, para as formas sólida ou gasosa, induzíveis por princípios extrínsecos, no caso, variações de ambiente físico.

    Contudo, mesmo diante de mudanças tão evidentes (sólido - líquido - gasoso) não nos deixamos confundir pelas aparências, pois não nos resta qualquer dúvida quanto ao ente específico que está sob análise. Apesar das transformações perceptíveis e inequívocas, sabemos que ainda continuamos diante do mesmo ente, água pura, uma vez que as diferenças detectáveis correspondem às suas possibilidades intrínsecas de "movimento" e de "repouso" e, portanto, à sua natureza, ou mais especificamente, ao natural da água pura. É por isso que devemos considerar que as características percebíveis de um dado ente, em um determinado estado, nos mostram apenas como aquele ente "está" naquele estado, mas não o que aquele ente de fato "é" na sua totalidade.

    Para as ciências e, em particular, para as ciências biológicas, as definições de ser, ente e natureza concebidas por Aristóteles a partir do trabalho de vários pensadores da antiguidade são tão fundamentais quanto o ar para as nossas vidas. Todavia, suas definições não são apenas importantes pela abrangência e brilhantismo lógicos, mas porque refletem uma ordem que nos orienta e conduz para a compreensão da estrutura do real. Real este que é a matéria-prima sem a qual nenhuma suposta atividade científica pode ser levada a sério. Pois é precisamente no real que nos deparamos com os entes que poderão ser escolhidos como objetos de nossas investigações científicas, de nossos estudos. É no real que tudo acontece, é onde as naturezas dos entes se manifestam e nos apresentam os seus limites intrínsecos e, portanto, de possibilidades naturais de "movimento" (mudanças). Em suma, é onde todos nascemos, vivemos e morremos. Por esta razão, modelos mentais ou iniciativas de qualquer sorte que tentem, de forma propositada ou acidental, burlar total ou parcialmente tal ordem, estão fadados ao fracasso, pois violando ou desprezando os limites intrínsecos dos entes, ignoram a realidade, ou seja, na prática não respeitam a verdadeira natureza daquilo que seria o objeto primordial do próprio pensamento ou empreendimento.

    A título de ilustração desse argumento, façamos agora um breve passeio por fragmentos de cenários do real utilizando os conceitos de natureza e de ente propostos por Aristóteles tendo, novamente, a água como o nosso ente de interesse. Conforme acabamos de ver, devido à sua natureza, a água pura pode assumir aparências distintas, sofrer transformações e apresentar-se em diferentes estados físicos aos nossos sentidos, dependendo de sua maior ou menor exposição a fatores externos, princípios extrínsecos.

    Ao nível do mar, quando aquecida a 100 ºC, a água vaporiza-se. A 0 ºC, ou temperaturas inferiores, a água se solidifica. O mesmo pode ocorrer se alterarmos a pressão, mantendo ou variando adequadamente a temperatura, ou todos os fatores externos ou princípios extrínsecos. Ou seja, controlando-se as condições externas sob as quais o ente água pura possa ser submetido, poderemos avaliar seus possíveis "movimentos" (mudanças) obedecendo à sua natureza, isto é, dentro dos seus limites internos, fora dos quais não estaremos mais examinando a água pura.

    É por isso que, ao aquecermos a água pura a 100 ºC sob a pressão atmosférica média de 1 atm, não devemos esperar obter outra coisa que não seja apenas vapor d'água. Se, por acaso, encontrássemos metano, saberíamos que o que fora aquecido e produziu aquele gás, seguramente, não poderia ser água pura. Teria que ser um outro ente, necessariamente. Caso contrário, se insistíssemos em dizer que o metano fora obtido somente a partir do aquecimento da água pura, estaríamos diante de um cenário fictício ou falsificado, incapaz de resistir ao menor confronto com o mundo real, tal como um experimento controle, que é um procedimento clássico de metodologia científica. Em um evento específico, no qual o produto do aquecimento do ente água pura (H2O) fosse o metano (CH4), ficaria claro que a natureza da água e, portanto, seus limites internos teriam sido violados por algum princípio extrínseco desconhecido, de tal forma que estaríamos, forçosamente, presenciando um evento sobrenatural. Seria algo semelhante ao episódio bíblico relatado pelo evangelista João, conhecido como as bodas de Caná, quando Jesus Cristo teria transformado água em vinho (João 2:1-11). Eventos sobrenaturais não fazem parte do campo de interesse ou da competência das ciências naturais.

    Contudo, eventos sobrenaturais e milagres à parte, sabemos que a mente humana é pródiga em imaginação e susceptível às influências imediatas dos sentidos, sobretudo ao da visão. E para nos ajudar a diferenciar o real do ilusório é que existe a ciência e o método científico.

    Foi um duro golpe para a humanidade admitir que o seu patrimônio histórico de observações "factuais" mais remotas sobre as posições solares no firmamento teria que ser revisto e, pior, de maneira oposta à habitual. Desde a mais tenra ancestralidade, acostumamo-nos aos fiéis "deslocamentos" do astro-rei ao longo da abóbada celeste. Tudo parecia tão evidente e regular desde quando o primeiro homem se deu ao trabalho de olhar para o céu e registrar as sequências dos dias e das estações. No entanto, para que fosse possível uma compreensão mais apropriada desse fenômeno, faltavam ferramentas adequadas, as leis da física propostas por Isaac Newton (1642-1727) e por Albert Einstein (1879-1955), particularmente as da gravitação. Também não possuíamos os meios para realizar os experimentos que as têm corroborado e, assim, concebermos outra hipótese que não fosse aquela em que o Sol e os demais corpos do espaço sideral girassem ao redor do nosso planeta. Foram necessários séculos de estudos e de observações, com a mais ampla contribuição de diversas áreas do conhecimento, para que se chegasse ao entendimento atual.

    Esse e outros fatos semelhantes nos ajudam a compreender que o grau de legitimidade de uma hipótese não reside no maior ou no menor tempo que se leva para impugná-la. Tampouco pela conversão de aparências, supostamente imutáveis, em conceitos irretocáveis, mesmo que esses sejam compartilhados por comunidades e civilizações inteiras. Verifica-se a validade de uma hipótese a partir de sua maior ou menor proximidade e coerência com o mundo real. A verdade de um sistema físico preexiste a opiniões, a interpretações e até a nós mesmos.

    Durante milênios, só foi possível contar com a observação visual para fazermos registros e estudos da Terra, do Sol e dos demais corpos celestiais. O principal instrumento disponível, a visão, provou-se insuficiente para desvendar princípios intrínsecos e extrínsecos que escapam, em muito, à escala, às propriedades e aos limites do olho humano. Em outras palavras: por sua natureza, a nossa visão não está habilitada para detectar qualquer ente fora da região do espectro eletromagnético conhecida como a região visível aos humanos (400 - 750 nm).

    Foi somente a partir da Lei da Gravitação Universal de Newton, que conseguimos estimar que a Terra possui uma massa quase 333 mil vezes menor que a do Sol, o que a obriga a permanecer nos limites orbitais rígidos impostos por todo o sistema solar. Não conhecíamos os efeitos de grandes densidades de matéria sobre o plano tempo-espaço, suas influências gravitacionais sobre outras massas e menos ainda sobre a luz. Todo o nosso conhecimento até então se fundamentava em observações parciais da realidade e de opiniões decorrentes de avaliações decisivamente incompletas. Por isso, é oportuno lembrarmos daquilo que Parmênides de Eleia (530-460 A.C.), em seu poema "Sobre a natureza" [2], já advertia sobre a importância de sabermos nos distanciar das opiniões ou de meras impressões e buscarmos a verdade, pois a verdade está no ser que, de acordo com aquele filósofo, é infinito, eterno e incorruptível, o que significa dizer que a verdade não pode ser falsa.

    No poema, Parmênides expõe a questão do ser e do não-ser, onde o primeiro é a via para a verdade e o segundo, o caminho para o engano, uma vez que não se chega à verdade permanecendo-se apenas no nível das opiniões ou somente na perspectiva de boas intenções. Para atingir a verdade fazem-se necessárias ferramentas adequadas, utilizadas com fundamento e critério capazes de distinguir a diferença do que pode ser apenas produto da imaginação, utopias, impressões generalizadas ou circunstanciais daquilo que, de fato, pertence ao mundo real e que, portanto, pode resistir ao confronto duradouro e sistemático com a realidade.

    Se, por um lado, é consolador podermos contar com séculos de conhecimento acumulado sobre esse tema e desfrutar de todo o monumental progresso científico dele decorrente, por outro, é espantoso verificar o quanto ainda somos frequentemente tomados de assalto por falácias, pseudociências e ideologias supostamente fundamentadas em bases científicas sólidas que, depois de um certo tempo, revelam-se ilusórias, enganosas e por tantas vezes nefastas.

    O homem foi o único animal, de que se tem registro, capaz de abandonar as savanas africanas e as cavernas para explorar os planetas, as estrelas e os confins do universo físico. No entanto, também esse mesmo homem, rico em ambiguidades, demonstrou que em vários períodos da história pode desaprender, ou simplesmente ignorar conhecimentos basilares que gerações anteriores levaram décadas para desvendar. A sua natureza de animal racional e político [3] parece ser, em certas circunstâncias, mais frágil quanto à racionalidade do que a de outros animais tidos por nós, humanos, como irracionais e inferiores.

    Diante de argumentos sedutores e lisonjeiros, de promessas fascinantes de conforto material e psicológico a um indivíduo ou a um dado grupo, ou de miragens futurísticas de bem-estar e pertencimento social até mesmo a nações inteiras, esquecemos rapidamente do que somos feitos. Ou seja, para além de qualquer aparência, ainda somos os mesmos entes de sempre, com os mesmos limites intrínsecos que delimitam a nossa natureza e, assim sendo, devemos levar sempre em conta as nossas reais possibilidades de "movimento" dentro da realidade manifesta. De fato, é curioso constatar que, na prática, mesmo tendo à nossa disposição tantos exemplos, ensinamentos, leis e literaturas sapienciais, o quanto ainda podemos ser presas fáceis em situações marcadamente ilusórias ditadas, seja pela ambição pessoal desmedida dos que tentam "morder mais do que são capazes de mastigar", seja pela sistemática imposição de um comportamento de bando, desindividualizante e, por isso mesmo, falacioso. Por oportuno, deve-se reiterar que, em ambos os casos, trata-se de uma situação de violação dos nossos limites internos, isto é, de nossa natureza.

    O adágio popular "Maria vai com as outras" fornece, entre outras possíveis interpretações, uma alegoria que demonstra a tentadora propensão de certos indivíduos para abdicar da aptidão humana mais nobre, a racionalidade. Em troca dessa aptidão, não são poucos aqueles que optam pelas aparências de conforto imediato que supostamente deveriam satisfazer, em profusas medidas, as necessidades daqueles que as buscam frente aos mais variados desafios que a vida lhes oferece. Diz-se que "o animal saciado, dorme" e, ao dormir, dispensa-o de pensar.

    A vida é uma constante competição. Todos os viventes dependem de fontes de energia para viver, ao mesmo tempo em que eles próprios são partes constitutivas de uma mesma teia alimentar global. Eis o fato estruturante da vida na Terra. Dessa forma, o conflito entre indivíduos é inevitável. Ao nível de sociedades, esse conflito se verifica desde as necessidades mais elementares de sobrevivência do indivíduo, até o da conquista de melhores posições hierárquicas de reconhecimento social e de sucesso de transmissão do seu material genético para as próximas gerações.

    Esta parece ser a realidade que irmana todos os viventes e, forçosamente, os coloca no mesmo patamar enquanto entes porque oriundos do mesmo e absoluto ser. Contudo, frente aos mais variados cenários de sobrevivência que qualquer indivíduo de qualquer espécie pode encontrar durante a sua existência, a racionalidade proporciona maiores possibilidades de escolha e de ação dos humanos, quando comparados aos demais seres vivos, significativamente mais subordinados aos seus limites intrínsecos de condicionamento. Contudo, essa maior subordinação aos próprios condicionamentos nem sempre os impede de demonstrar níveis superiores de sensatez diante da realidade quando confrontados aos humanos. Mesmo em conferível desvantagem, não abdicam voluntariamente da inferior capacidade racional que possuem. Pelo contrário, parecem usá-la ao máximo para melhor se movimentar e sobreviver dentro da realidade. Ao passo que naquilo que nos concerne, não são poucos os exemplos de perda auto-infligida da racionalidade, induzida por todo tipo de estado análogo ao da embriaguez. Seja na escala pessoal, familiar ou social. Tal racionalidade dos ditos irracionais, em contraste com irracionalidades de supostos racionais pode ser, didática e aristotelicamente, ilustrada pela máxima: "Isso é água que passarinho não bebe".

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

    1. Aristóteles. Física I-II. 2010. Livro II, Cap. I, p. 43. Editora Unicamp, Campinas, SP.

    2. Cordero, L. N. Sendo, se é - A tese de Parmênides. 2011. Fragmento 2, pag. 226. Odysseus Editora Ltda. São Paulo, SP.

    3. Aristóteles. A política. 2012. Livro I, Cap. I, pag. 18. Lafonte. São Paulo, SP.