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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.4 São Paulo oct./dic. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000400017 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    Mulheres na ciência: por que ainda somos tão poucas?

     

     

    Vanderlan da Silva Bolzani

    Professora titular do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp), campus Araraquara; vice-presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Unesp (Fundunesp), PQ-1A/CNPq e vice-presidente da SBPC

     

     

    Quando se pensa na presença da mulher no mundo da ciência, uma foto de 1927 marca um momento simbólico. Ela registra os 29 participantes da quinta edição da Conferência de Solvay, em Bruxelas, Bélgica. Ali estavam os principais expoentes internacionais da física e da química, linha de frente da revolução científica em plena ebulição no início do século XX. Dezessete deles eram ou seriam detentores do Prêmio Nobel, entre os quais Max Plank (1858 - 1947), Albert Einstein (1879 - 1955) e Niels Bohr (1885 - 1962).

    Marie Sklodowska Curie (1867 - 1934) era a única mulher a figurar entre os cientistas daquela conferência. Eternizada nessa foto histórica, foi também ganhadora do Prêmio Nobel por duas vezes. O primeiro em 1903, na física, e o segundo em 1911, na química, conferidos pelas suas pesquisas sobre o isolamento de isótopos radioativos e a descoberta de dois elementos químicos, o polônio e o rádio, respectivamente. Primeira mulher a ganhar um Prêmio Nobel, Marie Curie foi também a primeira pessoa a ganhar dois prêmios e a única até hoje a vencer em duas áreas distintas. Sua extraordinária investigação científica resultou numa nova área de conhecimento, a radioquímica.

    O exemplo de Marie Curie deve ter inspirado milhares de jovens a buscarem a carreira científica, entre elas a autora deste texto. Mas quando se toma a referida premiação como medida dos resultados desse estímulo, eles podem ser considerados ainda muito modestos. Nos 90 anos que se seguiram àquela Conferência de Solvay, somando as áreas de física, química e medicina, somente 16 prêmios Nobel foram concedidos a mulheres, em um total de 320 premiações.

    Artigo publicado no ano passado no jornal inglês The Guardian ("Why aren't there more women in science? The industry structure is sexist", 31 de maio de 2016) traz à tona a questão da participação feminina na ciência, assunto que tem sido objeto de estudos e discussões mundiais e se mantém atual. Embora o número de mulheres supere o de homens em muitas disciplinas científicas nos cursos de graduação, ao começarem suas carreiras como cientistas ou em outra profissão elas se deparam com várias barreiras, muitas até hoje intransponíveis. No caso do cenário europeu a que o artigo se reporta, a análise olha sobretudo para as carreiras científicas dentro da indústria. Um dos vários aspectos destacados aponta para o fato de que as carreiras de pesquisa científica são regidas por contratos de curto prazo, com baixa segurança de emprego, o que criaria um impasse entre a carreira e a maternidade.

    O fenômeno da representação desigual das mulheres nas carreiras científicas de forma geral, e mais especificamente no campo conhecido como STEM (da sigla em inglês para science, technology, engineering and mathematics), está presente tanto nos países de economias avançadas como nas economias em desenvolvimento. E continua sendo um desafio para educadores e formuladores de políticas públicas. Segundo dados do governo dos Estados Unidos para 2013, apesar de as mulheres constituírem 46% da força de trabalho no país, elas ocupavam apenas 27% dos postos em ciência e engenharia e 12% no segmento exclusivo de engenharia. São números que representam um avanço em relação aos anos anteriores, mas revelam também a dificuldade que ainda existe em vencer as barreiras das estruturas tradicionais.

     


    Figura 1 - Clique para ampliar

     

    O amplo e detalhado relatório divulgado pela editora científica Elsevier, "Gender in the global research landscape" (2017) mostra os ganhos registrados nos últimos vinte anos, em um conjunto de 12 países/regiões (Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Canadá, Austrália, França, Brasil, Japão, Dinamarca, Portugal, México e Chile), em 27 áreas do conhecimento nas quais as mulheres têm se destacado. O documento da Elsevier salienta oito conclusões:

    a proporção de mulheres entre cientistas e inventores cresceu nesse período nos doze países/regiões analisados;

    mulheres apresentam menor número de publicações científicas que homens, em média, mas não há uma evidência clara de que isso afete a forma como seus artigos são citados e baixados;

    mulheres registram menor probabilidade de manter colaborações internacionais em trabalhos de pesquisa;

    mulheres registram menor probabilidade de manter colaborações entre a academia e setores corporativos;

    em geral, a produção acadêmica das mulheres mostra-se ligeiramente maior no que se refere à interdisciplinaridade;

    pesquisadoras mostram menos mobilidade internacional que os homens;

    pesquisas sobre gênero estão crescendo em tamanho e complexidade, com novos tópicos surgindo ao longo do tempo;

    a tradicional predominância dos Estados Unidos em pesquisas de gênero vem declinando enquanto essa atividade de pesquisa cresce na União Europeia.

     

     

    O estudo traz um dado bastante interessante: no segundo período analisado (2011 - 2015), Brasil e Portugal já apresentavam números representativos da paridade de gênero, com mulheres constituindo 49% da população de pesquisadores. Outros países/regiões superam os 40% nesse quesito (Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Canadá, Austrália, França e Dinamarca) ou caminham nessa direção (38% no México, Chile). Uma mudança frente à situação que a pesquisa identificou no primeiro período analisado (1996 - 2010), quando essa proporção era de 60% para homens e 40% para mulheres.

    No Brasil, a representação desigual das mulheres é um fenômeno em movimento e vem se alterando rapidamente na base da pirâmide educacional. De acordo com o censo escolar do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o número de mulheres que concluiu o ensino médio é ligeiramente superior ao de homens no período de 2000 a 2012. Nos cursos de graduação, considerando-se todas as carreiras, aí incluídas áreas onde a predominância feminina é marcante - como pedagogia, letras, ciências humanas -, em 2012, elas representavam 57,1% dos concluintes.

    O ponto de equilíbrio numérico quanto ao gênero dos pesquisadores registrados no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) foi atingido em 2010, quando os 128,6 mil pesquisadores relacionados na base de dados estavam divididos igualmente entre homens e mulheres. Também naquele ano, o número de mulheres (52%) ultrapassou o de homens (48%) como líderes dos grupos de pesquisa registrados no CNPq.

    Um olhar sobre as bolsas de produtividade (PQ) do CNPq, considerada uma premiação ao mérito acadêmico, demonstra que, em 2011, havia 62,8% de homens PQ nível 2 (início de carreira) e 37,2 % de mulheres para o mesmo nível. Bolsas PQ nível 1A, concedidas a pesquisadores seniores de excelência nas áreas de atuação, totalizavam 77,7% para homens e 22,3% para mulheres. Em 2015, as mulheres representavam 24,6% dos bolsistas PQ nível 1A. O pequeno aumento percentual nesse nível altamente competitivo demonstra que o reconhecimento do mérito acadêmico das cientistas brasileiras ainda é bastante insignificante.

    Ações que ampliam a participação feminina na atividade científica devem gerar ganhos substantivos nos próximos anos. Mas os números totalizados não revelam a desigualdade da proporção entre os gêneros quando se olha para as áreas de conhecimento separadamente. Áreas tradicionalmente tidas como masculinas continuam com perfil de distribuição fortemente desigual. Por exemplo, em ciências agrícolas essa proporção é de 74% de homens e 36% de mulheres; em ciências exatas e da terra, que engloba física, química e matemática, a participação feminina é de 32% e nas engenharias, 39%.

    Os dados para avaliar tal realidade são mais escassos quando se trata de identificar a divisão de gênero nos postos de direção das universidades e dos institutos de pesquisa. No entanto, é sabido que esses postos - chefias de departamentos, diretorias de institutos e reitorias - são majoritariamente ocupados por homens. Um reflexo disso está na mais importante sociedade científica do país, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que ao longo de seus 69 anos teve apenas três mulheres na presidência [1]. Em seus 40 anos de existência, por sua vez, a Sociedade Brasileira de Química (SBQ) contabilizou somente uma mulher presidente [2].

    Um número crescente de iniciativas vem buscando alterar esse quadro mais recentemente. Elas partem de políticas públicas, como as expressas pelo CNPq por meio de editais que estimulam e apoiam estudos sobre gênero, visando aprofundar o conhecimento sobre o tema; de agências de fomento como as fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs), que incluíram em suas agendas seminários e premiações de reconhecimento à atuação científica das mulheres; das sociedades científicas, cujas programações em congressos ampliam o espaço para questões de gênero; e de fundações e empresas privadas, para quem o engajamento no combate às desigualdades torna-se um importante valor corporativo, e vêm se reunindo a esse movimento, com a criação de premiações a jovens cientistas mulheres.

    Essas iniciativas permitem um olhar otimista para os próximos anos, também considerando os esforços realizados até agora para a incorporação da força de trabalho feminina em todos os níveis e campos da ciência e tecnologia.

    A mudança desse quadro de desigualdade comporta, a meu ver, algumas medidas básicas, que devem começar no ensino fundamental. A escola precisa despertar na criança, independente de gênero, a curiosidade e a consciência de que conhecer o universo é uma atividade que a torna mais rica como ser humano. Para isso não faltam recursos pedagógicos, mas sim determinação.

    Devemos nos empenhar firmemente para atuar no processo de desconstrução de uma cultura que trata meninas e meninos de forma diferente. É, sem dúvida, uma tarefa difícil, já que nós mulheres muitas vezes também incorporamos a visão de mundo na qual a ideia de feminilidade está associada ao papel principal de cuidadora da família; na qual as meninas são "naturalmente" mais afeitas às carreiras das áreas de humanidades, por exemplo. Uma visão que, enquanto isso, estimula meninos a serem competitivos e a se exercitarem continuamente em jogos que desenvolvem a capacidade de raciocínio.

    Uma prática positiva, que tem crescido nos últimos anos e que pode ser ampliada, é o incentivo a adolescentes e universitárias por meio de premiações e homenagens. Agências governamentais, entidades científicas, órgãos de comunicação precisam dar visibilidade a esses reconhecimentos, aumentando a autoconfiança de mulheres estudantes e profissionais em todo o país, essenciais a qualquer ascensão profissional, independente da questão de gênero.

    É muito importante que continuemos exercitando o debate sobre a questão de gênero de forma que ele envolva homens e mulheres. A universidade é um espaço privilegiado e ideal para essa prática, pois é seu papel discutir ideias em busca de uma sociedade mais igualitária e justa.

     

    REFERÊNCIAS

    1. As três mulheres que ocuparam a presidência da SPBC foram Carolina Bori (1987-1989), Glaci Zancan (1999-2003) e Helena Nader (2011-2017).

    2. A autora deste artigo foi presidente da SBQ de junho de 2008 e maio de 2010.