SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 número4 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.4 São Paulo out./dez. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000400018 

    CULTURA
    TEATRO

     

    Brecht menos conhecido chega ao Brasil

     

     

    Mariana Castro Alves

     

     

    O mundialmente consagrado dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) também foi poeta, narrador e escritor de textos sobre estética e política. Ao longo deste ano, essas faces menos lembradas do autor podem ser exploradas por meio de várias traduções, que revelam para o leitor brasileiro a incursão do dramaturgo em diversos gêneros.

     

     

    A Editora 34 lançou Conversas de refugiados, que mostra um Brecht prosador. Segundo o professor de literatura alemã da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Tercio Redondo, que fez a tradução desse livro, tradicionalmente a prosa brechtiana tem sido relegada a um segundo plano, não apenas no Brasil. "Espero que essa lacuna editorial comece de fato a ser preenchida", diz ele. Apesar de ter sido escrito na forma de diálogo, Conversas não é uma peça teatral. De acordo com Redondo, seu modelo seria Jacques, o fatalista, do filósofo e escritor francês Diderot (1713-1784), dado que foi registrado por Brecht em seus diários de trabalho.

    Com capítulos relativamente curtos, Conversas de refugiados descreve os encontros de dois refugiados políticos alemães em Helsinque, capital da Finlândia, no início da Segunda Guerra Mundial. Com o exército hitlerista às portas da cidade, eles aguardam o visto de entrada de qualquer país que os acolha. Com origem social distinta - um é operário e o outro um físico - o exílio os torna observadores argutos. A dialética, característica da composição brechtiana, mostra-se nesse texto como "um exercício ímpar de compreensão do mundo", segundo o tradutor. "O debate entre os refugiados gira em torno do esforço por compreender as razões históricas do nazi-fascismo e das possibilidades de superá-lo, numa luta em que o conhecimento figura como arma fundamental", aponta Redondo. Brecht foi ele mesmo um exilado. A ascensão de Hitler o obriga a sair da Alemanha em 1933 e viver na Dinamarca, Finlândia e nos Estados Unidos. O dramaturgo só retorna ao seu país natal em 1948.

     

    CRÍTICA POLÍTICA

    Já o Brecht crítico e pensador pode ser encontrado nos escritos de Walter Benjamin (1892-1940) publicados este ano pela Boitempo. A edição Ensaios sobre Brecht traz a primeira tradução integral para o português de Versuche über Brecht, de 1966, uma compilação que incluía manuscritos de Benjamin sobre Brecht. Antes da publicação, apenas alguns desses textos haviam sido editados no Brasil, em coletâneas de Walter Benjamin. "Há o ineditismo de reunir todos os ensaios que Benjamin escreveu sobre Brecht, além de trechos de seu diário que ajudam a lançar luz sobre essa relação de amizade e colaboração intelectual", afirma André Albert, editor-adjunto da Boitempo.

    Marxistas de relevância no cenário intelectual da Alemanha - e, depois, no exílio - Brecht e Benjamin se empenharam contra o avanço do nazi-fascismo e também convergiram no ceticismo em relação aos rumos do stalinismo. "Podemos dizer que essa obra contribui não só para a compreensão da poesia e da dramaturgia de Brecht, mas também para conhecer o que ele pensava sobre teoria e a política", afirma o editor.

    Nos Ensaios sobre Brecht também é possível conhecer melhor a produção poética brechtiana. Em "Guia para o habitante das cidades", escrito a partir de meados dos anos 1920, por exemplo, Brecht dá tratamento lírico, em chave experimental, ao fenômeno da vida metropolitana. "É um ponto alto em sua poesia, tendo introduzido uma grande novidade na lírica alemã", afirma Tercio Redondo. Para o professor da USP, nessa obra, a fina observação dos novos modos da convivência citadina teria levado Brecht a entrever os mecanismos de perseguição e extermínio que o regime nazista levaria a cabo anos depois.

    Há ainda muito o que explorar na obra de Brecht. O diretor, dramaturgista e pesquisador no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Pedro Mantovani, está analisando o "Complexo Fatzer", um conjunto de manuscritos sob a guarda do Arquivo Bertolt Brecht, em Berlim. Parte do manuscrito, uma pequena peça, foi publicada pelo próprio Brecht em 1930 e já teve traduções para diversos idiomas. No Brasil, pela Paz e Terra e pela Cosac & Naify (em versão do escritor Heiner Müller [1929-1995]). Mas, ainda restava material sem tradução para nenhuma outra língua. "Eu acredito que é possível ver no "Complexo" todo o método de configuração artística de Brecht em ação, ou seja, o uso da dialética para a configuração de suas peças", afirma Mantovani. Escrito entre 1926 e 1930, o "Complexo Fatzer" não foi finalizado. "Até onde entendo, a ascensão do nazismo o levou a interromper o trabalho. Ele está escrevendo a peça em uma determinada conjuntura que se modifica a tal ponto que já não faz mais sentido terminar", acredita o pesquisador da USP.

     

    TEATRO DIALÉTICO

    Debates sobre a apropriação da obra de Brecht seguem gerando questões em torno da contemporaneidade do dramaturgo. O teatro épico (ou dialético) brechtiano insta o espectador a estar ali como indivíduo consciente e crítico e a se envolver intelectualmente com o debate e com a trama, em vez de emocionalmente. O efeito de distanciamento seria um recurso para mostrar um evento como sendo histórico. Por exemplo, as quebras, os apartes do teatro clássico e o uso do coro podem dar esse efeito de distanciamento ao espectador, que desnaturaliza a cena, mostrando que o que se vê é resultado de determinada formação social. "O princípio formal da obra de Brecht - seja a dramatúrgica, poética ou teórica - é a dialética, o movimento perpetuamente crítico, vivo, das relações sociais postas pelas condições de produção. O método é fazer que a obra gere contradições sobre as imagens de mundo que ela mostra e sobre o lugar dela mesma como obra de arte", explica Sérgio de Carvalho, professor do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP.

    Segundo Roberto Schwarz, um dos nomes mais importantes da crítica literária no Brasil e também tradutor das peças A Santa Joana dos matadouros (1929-31 e 1959) e Vida de Galileu (1937-38 e 1943), a ideia subjacente ao teatro épico é a de que, no fundo, bastaria conhecer o funcionamento do capitalismo para transformá-lo. Esse pressuposto teria se mostrado falso no decorrer do século XX. "Brecht tem um esquema de desnaturalização por meio do qual você indica para as pessoas que o sistema capitalista não é natural e, então, elas se sentem liberadas e vão fazer uma coisa que é favorável a elas: é a ideia de revolução", descreve. "Eu tenho a convicção de que isso não funciona mais. Ninguém acha que nada é natural. Muita gente entendeu o problema e ninguém apareceu com a solução. A situação das pessoas que se consideram de esquerda hoje, é essa", afirma o professor no documentário Brecht na Companhia do Latão (2006).

    Para Carvalho, no entanto, o teatro épico não pode ser reduzido a uma questão puramente formal. "O importante é em que medida ele é capaz de despertar um olhar histórico crítico", afirma. Segundo o professor, que também é fundador da Companhia do Latão, que há vinte anos vem levando Brecht aos palcos brasileiros, Brecht deveria ser mais conhecido e encenado, mas "desde que fosse por um palco crítico, que desconfiasse do imaginário dominante, que em alguma medida pensasse que a função do artista não é abastecer o aparelho de mais produtos culturais e sim modificar o próprio aparelho cultural", completa.

     

     

    Na opinião de André Albert, com a crise do "socialismo real" nos anos 1980 e 1990, alguns apostaram que a obra brechtiana envelheceria mal e que o público e os criadores perderiam o interesse por ela. "Nada poderia ser mais equivocado porque a crítica brechtiana incide sobre aspectos (e, ouso dizer, cada vez mais) presentes em nossa realidade social", diz.

     

    SERVIÇO

    Conversas de refugiados
    Autor: Bertolt Brecht
    Editora 34

    Ensaios sobre Brecht
    Autor: Walter Benjamin
    Coleção Marxismo e Literatura - Boitempo Editorial