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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000400021 

    CULTURA
    POESIA

     

    Rafael Viegas

    Doutor em letras e em saúde coletiva e pós-doutorando em teoria literária na Unicamp

     

     

    AGRESTE

    Estão baixos os vergéis
    E eles mal cobrem o
    título que demos ao homem,
    Pequeno que és tu no Universo

    Teus cocos dominaram a natureza por centenas de milhões de anos
    Mas os cocos que caíram próximos de ti
    Voltaram à copa das árvores

    Planos, planos pelo vento
    E pelo deserto, planos são os indícios
    De que tens terra em teu coração

    Já fechava-se a margem quando de repente
    Pararam para beber água
    Do rio
    Seco
    Teu jardim e teu cachorro

    Dividindo a tua alma
    Em cem tijolos
    Construirás perfeitamente bem
    A casa dos teus sonhos
    E regarás com ela
    Os vales deitados na penumbra

     

    OS CELEBRANTES

    I.
    Foi preciso tirar o sono da tua mãe
    E acordar no alicerce que já era fundo
    Um abrigo do tamanho do teu coração

    Quem diria que, ao ver os olhos calmos de hoje
    Primeiro foi preciso abri-los
    Ao sol morno do início de março

    Esperava-se um outono castanho, monótono
    Mas ainda era verão
    E nas tuas folhas respirava-se a tarde e o mormaço

    Você cresceu devagar, um centímetro
    A cada vez uma palavra
    Uma bota, um lápis, um dente, o primeiro livro

    E depois, sentado sobre a carteira
    Dividindo o lanche entre as mãos
    Disse, apontando para baixo: estou pronto

    A grossa ventania assolou o quintal
    Os galos correram para as plantas
    Onde havia somente os brinquedos, e morreram

    II.

    Diante da porta fechada
    Escutava-se a voz do teu pai
    Longe, funda, rosa e azul, da cor da parede.

    Não era o mesmo que desde o início chorava
    Perto da matéria úmida
    Tirada das pernas e dos lençóis.

    Em meio ao tecido que nos separava da sala
    Junto à pomada amarela sobre a cômoda
    Seu dedo criticava, severo, a própria clavícula.

    As sardas ardiam e queimávamos os piolhos,
    Alguém penteava para trás seu cabelo crespo,
    As curvas nos braços, tortos nos doíam

    Enquanto os cílios engasgavam-se no céu pensativo
    Ou atrás das crinas do travesseiro escondido
    E fugiam, atrás, depois, sobre os ombros, inclinados.

    E bem lá de dentro, do prato imerso da tua sopa
    Subiam as constelações antigas
    E o planeta Urano, recém-descoberto.

     

     

    Rafael Viegas é carioca, doutor em letras e em saúde coletiva e pós-doutorando em teoria literária na Unicamp. Publicou Estreito de Magalhães (7Letras, 2017), de que faz parte o poema "Agreste", prepara seu segundo livro, que tem o título provisório de Inventário e do qual faz parte o longo poema "Os celebrantes" (as seções I e II, inéditas, são aqui também publicadas).