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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000100004 

    BRASIL
    HISTÓRIA

     

    Instituto dos Pretos Novos quer manter viva a memória dos africanos no Brasil

     

     

    Chris Bueno

     

     

     

     

     

    Mais de três milhões de africanos foram trazidos para o Brasil durante o período da escravidão. Muitos desses homens, mulheres e crianças não suportavam a travessia do Oceano Atlântico e morriam durante o trajeto (a taxa de mortalidade nos navios era de 20%). Muitos ficavam tão debilitados com a viagem que morriam pouco tempo depois de chegar ao destino. Alguns eram enterrados em terrenos próximos às igrejas ou em cemitérios, mas uma boa parte acabava em valas coletivas. Séculos depois, um desses cemitérios acabou se tornando um sítio arqueológico para preservação da memória desse período da história do Brasil, além de fonte documental e local dedicado à disseminação da cultura africana: o Instituto dos Pretos Novos (IPN), na cidade do Rio de Janeiro (RJ).

    O cemitério de pretos novos (como eram chamados os escravos recém-chegados antes de serem vendidos) foi descoberto por acaso, em 1996, durante uma reforma realizada em uma casa construída no século XVIII, de propriedade de Ana Maria de la Merced Guimarães e Petruccio Guimarães. Quando estavam cavando, os pedreiros se deparam com um punhado de ossos que, depois, se revelaram um verdadeiro achado arqueológico.

    A casa passou a abrigar então arqueólogos e técnicos de escavação que encontraram 28 ossadas, a maioria de homens entre 18 e 25 anos. Eram partes de crânios, costelas, dentes e mandíbulas. Segundo os arqueólogos que trabalharam na escavação, isso mostra que se tratava de um cemitério com covas coletivas, onde os corpos eram simplesmente jogados uns sobre os outros. "Além dos sinais de brutalidade, esse tipo sepultamento revela o total descaso com o ser humano e com a cultura africana", explica a historiadora Martha Abreu, professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Os negros eram enterrados sem qualquer ritual religioso", diz. Na cultura banto, por exemplo, existe a crença de que quando o morto tem um enterro apropriado ele se encontra com seus antepassados. Porém, sem o devido sepultamento, ele se converte num desgarrado, sem lugar entre os vivos e os mortos. Também foram encontrados vários artefatos, como pontas de lanças, argolas, colares, contas de vidro, peças de barro, porcelanas, conchas, ostras e vestígios de fogueiras.

     

    MEMÓRIA NEGRA

    A casa onde foi feita a descoberta arqueológica fica localizada na Gamboa, bairro da zona portuária da capital carioca, em uma área que era conhecida como Valongo. O cais do Valongo foi um dos principais pontos de desembarque e comércio de negros africanos e estima-se que, durante seus 20 anos de operação, tenha recebido entre 500 mil e um milhão de pessoas trazidas à força do continente africano. "Já era sabido que naquela região havia um grande cemitério de africanos, mas nunca houve interesse, ou houve muito pouco, em pesquisar o local e reconstituir essa memória. Foi necessário que muitos anos se passassem - e que uma descoberta 'acidental' reacendesse a discussão - para que todo o horror que foi esse período de nossa história voltasse para o debate", aponta Abreu.

    Hoje, o casarão funciona como museu memorial, galeria de arte contemporânea e oferece oficinas e cursos, especialmente para professores. O objetivo é debater o papel do negro na história do Brasil - não só durante a escravidão, mas especialmente na história contemporânea. "É preciso problematizar o papel do negro no Brasil após a escravidão. Muitos livros de história trazem a discussão só até ali e esquecem de debater o papel do negro em nossa sociedade hoje. E isso é muito importante, porque até hoje o negro enfrenta piores condições sociais, menos oportunidades no mercado de trabalho e na escola, sem contar as questões de preconceito que ainda existem. E tudo isso precisa ser discutido", afirma Abreu.

     

    PATRIMÔNIO E CRISE

    A biblioteca do instituto, inaugurada em 2012, conta com cerca de 1,2 mil títulos em processo de catalogação sobre cultura, história e artes afro-brasileiras e indígenas. Em 2017, quando passaram pelo centro cultural mais de 16 mil visitantes, o Instituto IPN foi vencedor do 4 º Prêmio Nacional de Expressões Culturais na categoria Preservação e Difusão do Patrimônio Cultural e Histórico. O prêmio foi criado pelo Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves (Cadon), organização não governamental sem fins lucrativos, que tem como objetivo apoiar expressões artísticas de estética negra. No entanto, a crise enfrentada pelo estado do Rio de Janeiro ameaça fechar as portas do local.

    Como parte do circuito de lugares que trabalham com temas relacionados à herança africana, o IPN recebia anualmente recursos via Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP), órgão da prefeitura, para manutenção de suas atividades. No entanto, desde 2017, o convênio está suspenso. "No ano passado nós sobrevivemos de doações e das mensalidades dos cursos que oferecemos. O futuro este ano é incerto", contou Ana Maria Guimarães, diretora do IPN.

    Em 2018, a Secretaria de Cultura da cidade do Rio de Janeiro terá um orçamento ainda menor do que em 2017. Mesmo assim, a secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, confirmou a intenção de criar o Museu da Escravidão e da Liberdade. Em entrevista para O Globo, em janeiro deste ano, ela afirmou que não se trata de um museu tradicional, mas de um museu de território que vai ter como tema a desigualdade social. O novo museu deve ocupar o prédio das docas Pedro II, em frente ao Valongo. Ainda segundo a secretária, a ideia é que o IPN seja "abraçado nessa história". Sem saber como pagaria as contas do mês de fevereiro, Ana Maria Guimarães disse que não recebeu nenhum tipo de informação oficial por parte da Secretaria de Cultura. "Enquanto ela faz esse tipo de afirmação, nós estamos morrendo", disse.

    Para evitar o encerramento de suas atividades, Guimarães criou a campanha "IPN Resiste" por meio da qual pede doações pelas redes sociais e tenta chamar atenção para a luta do IPN para se manter funcionando. "O IPN tem por direito verba de custeio. É dever do Estado o reconhecimento do crime da escravidão. Manter o local aberto é parte da reparação para os que escaparam da escravidão morrendo".

     

    SOTERRANDO A HISTÓRIA

    Esse cemitério de pretos novos foi criado em 1769 por Luís Melo Silva Mascarenhas, o marquês do Lavradio, então vice-rei do Brasil, que teve que transferir o porto de desembarque dos negros do cais da Praça XV, no centro da cidade, para o Valongo, na época, fora dos limites urbanos. Estima-se que tenham sido enterrados ali de 20 mil a 30 mil pessoas. Em 1830, o cemitério foi fechado por questões sanitárias e legais (o tráfico de escravos havia sido proibido). Depois disso, começou o aterramento do pântano e da praia — soterrando também esse terrível rastro da escravidão no Rio de Janeiro.