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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000100005 

    BRASIL
    URBANISMO

     

    Novos atores na humanização de cidades

     

     

    Alice Wassall; Leonor Assad

     

     

    Cidade é uma aglomeração humana multifacetada, povoada por uma multiplicidade de pessoas que se manifestam por meio de diferentes linguagens, formas e atividades. O arquiteto argentino Jorge Enrique Hardoy, em artigo publicado na revista Problemas delDesarollo (vol.9, nº 34, 1978), aponta que cada geração constrói cidades em função de seus níveis de conhecimento e possibilidades e como reflexo da estrutura da sociedade e seus valores. Portanto, o conceito de cidade é dinâmico e evolui com o tempo e o lugar, estando condicionado pelo ambiente, pela estrutura socioeconômica e pelo nível tecnológico da sociedade à qual pertence o observador.

     

     

    François Ascher, urbanista e sociólogo francês (1946-2009), é autor de uma obra considerada fundamental no debate sobre as metamorfoses daquilo a que ainda chamamos cidade. Em seu livro Os novos princípios do urbanismo, traduzido no Brasil em 2010, Ascher afirma que as transformações da nossa sociedade, e especialmente das cidades, estão apenas começando. Segundo ele, vivemos a terceira revolução urbana moderna que se caracteriza por cinco evoluções: a metapolização (as cidades mudam de escala e de forma e surgem grandes aglomerações urbanas, distendidas e descontínuas, heterogêneas e multipolarizadas), a transformação do sistema de mobilidade urbana (a cidade se move e se telecomunica), a formação dos espaços individuais (cidadãos se esforçam cada vez mais para controlar individualmente seu espaço e seu tempo), a redefinição das relações entre interesses individuais e coletivos (os vínculos sociais são mais frágeis, menos estáveis porém mais numerosos e mais variados e conectados), e os riscos (preocupação crescente com a segurança física, econômica, social e familiar), que resultam de incertezas de toda ordem.

     


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    No Brasil, o livro de Ascher foi traduzido por Nadia Somekh, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie. Na apresentação do livro ela afirma que nas cidades brasileiras, apesar de existirem planos e leis, a legislação exclui a maioria da população: "nossas cidades não previram a localização dos pobres, que informalmente ocupam áreas de risco, de proteção ambiental, de preços fundiários depreciados, com a anuência velada das autoridades governamentais". Um dos caminhos para amenizar os efeitos dessas relações desiguais é por meio do engajamento comunitário.

     

    HUMANIZAÇÃO

    O enfrentamento desses desafios fez com que novos conceitos, como espaço coletivo e engajamento social, entrassem no cotidiano das discussões sobre humanização e melhoria das condições de vida nas grandes metrópoles. A criação e ocupação de espaços públicos são uma forma de resistência ao individualismo das grandes cidades. O foco é o plural, o encontro entre pessoas, a busca por atitudes e ações coletivas sustentáveis que beneficiem o maior número de cidadãos. Nesse sentido, a praça Irmã Carmela Stecchi, mais conhecida como praça do Coco, no distrito de Barão Geraldo, em Campinas (SP), e a praça Roosevelt, no centro da cidade de São Paulo são bons exemplos. Esses lugares foram alvo de reformas nas duas últimas décadas, com consequências evidentes tanto para a sociabilidade e ressignificação enquanto espaços públicos, quanto para suas funções sociais e culturais. A trajetória das duas praças se assemelha no engajamento de seus frequentadores, na proteção pelos moradores que as circundam e, principalmente, pelos atrativos culturais.

    A praça Roosevelt, que ao longo do tempo abrigou casas noturnas e a sede de importantes grupos de teatro paulistanos, como Os Satyros e o Parlapatões, é reconhecida pelo seu apelo cultural, em especial pelas atividades ligadas ao teatro. Na praça do Coco, pai e filho, Valdir e Vagner dos Santos, se norteiam pelos princípios do desenvolvimento sustentável para resgatar e preservar a história do distrito de Barão Geraldo. Vários são os agentes públicos e privados que concorrem para sua manutenção. Nos dois casos, percebe-se uma motivação comum para realização das mudanças e, em certo sentido, ultrapassar os entraves colocados pelo poder público, ao transformar as adversidades e preservar os espaços públicos, transformando-os em lugares no sentido antropológico.

    Essa foi a motivação de um movimento recente, também na cidade de São Paulo, batizado de "A Batata precisa de você", idealizado pela arquiteta Laura Cabral. Formado por moradores e frequentadores do largo da Batata, no distrito de Pinheiros, desde 2014 o movimento vem fazendo ações de ocupação do largo. Conforme descrito no texto do site do movimento, os objetivos são fortalecer a relação afetiva da população local; evidenciar o potencial de um espaço hoje ainda árido como local de convivência; testar possibilidades de ocupação e reivindicar infraestrutura permanente que melhore a qualidade do largo como espaço público. "É um exercício de democracia em escala local, um movimento de cidadania e concretização social e urbana".

     

    PARCERIAS

    Na Constituição Federal de 1988, incorporou-se pela primeira vez no Brasil um capítulo específico sobre política urbana (capítulo II, título VII). Nele consta ser de responsabilidade do poder público municipal a execução da política de desenvolvimento urbano, articulando-se às ações promovidas pelo governo federal. Mas um grande entrave para um planejamento urbano, de médio e longo prazos, são os recursos financeiros disponíveis. No Brasil, pouquíssimas cidades conseguem gerar receita própria e muitas dependem de recursos do governo federal que, face às crises atuais, estão cada vez mais escassos. Objetivos como diminuir as desigualdades sociais, reestruturar a mobilidade urbana e promover a sustentabilidade têm sido apontados em planos estratégicos, já elaborados ou em elaboração, de cidades como São Paulo (SP), Salvador (BA) e Sinop (MT). Mas garantir a sobrevivência de um planejamento urbano de longo prazo não é tarefa fácil no Brasil. E um dos principais entraves é que não se tem ainda, no Brasil, uma cultura de continuidade da gestão pública: muda o prefeito, muda o planejamento urbano.

    Ainda assim algumas prefeituras têm conseguido implantar projetos de médio prazo, contando com apoio da iniciativa privada e de organizações não governamentais (ONGs). Um exemplo é a ação do World Resources Institute (WRI) que atua no momento em 18 cidades brasileiras. Nívea Oppermann, diretora de desenvolvimento urbano da WRI Brasil e professora de planejamento urbano da Unisinos, aponta que o foco dos projetos está voltado para cidades médias e grandes: "Temos várias frentes de trabalho em planejamento metropolitano e urbano, transporte coletivo, transportes ativos, segurança viária, DOTS (desenvolvimento orientado ao transporte sustentável), qualidade do ar, eficiência energética, financiamento urbano, governança e resiliência", explica. Em São Paulo e em Fortaleza estão sendo feitas inúmeras intervenções para ampliar a segurança viária e promover maior integração das pessoas ao espaço público. Também estão sendo feitas discussões com grupos de mulheres para qualificar a questão de gênero no transporte coletivo em São Paulo.

    Arquiteta de formação, Oppermann destaca o projeto Ruas Completas, uma parceria da WRI Brasil com a Frente Nacional de Prefeitos, que está colaborando com 11 cidades para aumentar o espaço de pedestres e ciclistas nas vias públicas. Segundo ela, em vários projetos ocorre a participação da comunidade local, "porque entendemos que diversos atores precisam dar sua contribuição para que as soluções atendam o interesse do maior número de pessoas".

    As cidades estão em constante transformação por causa das pessoas que ali vivem, que a frequentam. Muitos são os exemplos que mostram que é possível romper com a barreira do desencantamento, desde que o foco da mudança esteja nas pessoas e não exclusivamente em fins lucrativos.