SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.1 São Paulo jan./mar. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000100009 

    ARTIGOS
    MATEMÁTICA
    APRESENTAÇÃO

     

    Pesquisa matemática e instituições científicas no Brasil do pós-guerra

     

     

    Tatiana Roque

    Professora associada do Instituto de Matemática, da Pós-Graduação em Ensino e História da Matemática e da Física e da Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro dos Archives Poincaré (Histoire et Philosophie des Sciences), Université de Nancy. Seu livro História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas (Zahar, 2012) foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2013

     

     

    No início dos anos 1950, a ciência brasileira mudou, passando a contar com incentivos, até então, inéditos. O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) foi fundado em 1949 e exerceu papel importante na criação, em 1951, do Conselho Nacional de Pesquisas (CNP, como era chamado o atual CNPq). Sob responsabilidade desse conselho, ligado diretamente à Presidência da República, criou-se, em 1952, o Instituto de Matemática Pura e Aplica (Impa). Um aspecto pouco explorado nos estudos históricos sobre a ciência brasileira é a existência, de fortes argumentos para que estas estruturas de pesquisa fossem criadas fora das universidades. Tanto o CBPF, quanto o CNPq e o Impa resultaram dos esforços de um pequeno grupo de cientistas e de militares, muito bem articulados politicamente, para convencer o governo de que um fator-chave para o desenvolvimento econômico do país era o incentivo à pesquisa científica e, no caso da física e da matemática, seria melhor que essa pesquisa fosse feita em instituições independentes das universidades.

    José Leite Lopes, físico que já era reconhecido internacionalmente e um dos principais atores na criação do CBPF, dizia que o Brasil tinha que sair de sua posição de "país faminto por ciência" (science-starving country), associando essa possibilidade, em 1946, à criação de centros fora da universidade:

    Aqueles que chegaram a fazer ciência [no Brasil, até então] desistiram de suas posições e nossos belos projetos (belos para um país com fome de ciência) foram paralisados ​​no ar. Nossas esperanças se voltaram para a universidade, onde infelizmente, em virtude da falta de compreensão e da intolerância dos nossos estadistas, a ciência avança lenta e dolorosamente [1].

    Naquela época, Leite Lopes era responsável pela cadeira de física teórica na Universidade do Brasil (que viria a se tornar Universidade Federal do Rio de Janeiro), mas não estava satisfeito com as condições de trabalho disponíveis. Na mesma carta, lamenta o fim do núcleo que funcionava na Fundação Getúlio Vargas e oferecia melhores condições para o desenvolvimento da ciência, como o apoio a publicações e visitas de estrangeiros. Além de Leite Lopes, também frequentavam o grupo matemáticos que iriam criar o Impa, como Leopoldo Nachbin.

    Uma das principais queixas dos cientistas do Rio de Janeiro era a ausência de uma política de pessoal que permitisse a dedicação total à pesquisa, uma diferença importante em relação a São Paulo. A fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, havia criado um ambiente favorável à pesquisa instituindo o tempo integral dos docentes (dedicação exclusiva), o que não existia na Universidade do Brasil (UB). Os cientistas do Rio de Janeiro desejavam, portanto, conquistar condições de trabalho análogas às da USP. Mas, ao contrário da USP, defendiam instituições que tivessem uma visão estratégica nacional, relacionada à soberania e ao desenvolvimento econômico. A USP havia sido criada com o objetivo de estimular o progresso do estado de São Paulo, um regionalismo a ser superado, como aponta Leite Lopes em outra carta enviada a Guido Beck. No ano da fundação do CBPF, 1949, referindo-se às universidades paulistas, lamenta: "o problema da pesquisa, como algo de importância nacional, não pode, portanto, ser resolvido dentro dessas universidades - de mente estreita e que não pensam em termos nacionais" [1].

    "Pensar em termos nacionais", considerando a ciência como condição para a soberania e para o desenvolvimento do país era um traço comum no discurso dos cientistas brasileiros de que tratamos aqui, muito atuantes após a Segunda Guerra. É o que mostra Antonio Augusto Videira, destacando trechos, como os citados acima, para enfatizar que os físicos brasileiros "defenderam em público que a ciência passou a ser, após 1945, o elemento essencial para o desenvolvimento de toda e qualquer nação. Segundo eles, sem ciência não seria possível ao Brasil alcançar o nível de desenvolvimento desfrutado por nações como os EUA, a França, a Alemanha de antes da guerra, a Inglaterra e mesmo a antiga URSS".

    Além do nacionalismo apontado por Videira, destaco aqui o pensamento, muito presente nos debates da época, de que a possibilidade de se fazer pesquisa avançada estava associada à criação de espaços fora da universidade. Essa opção foi vitoriosa, apesar de não ter sido unânime. O próprio Leite Lopes relata que a priorização da universidade fez com que alguns colegas não tenham apoiado imediatamente a criação do CBPF nos moldes propostos:

    Alguns achavam que não se devia fazer nada fora da UB [Universidade do Brasil]. Este foi o caso de Plínio Sussekind da Rocha. Mas, se a universidade não podia fazer nada por nós, eu achava que nós devíamos nos salvar e formar gente nova, como formamos centenas de físicos. Ainda hoje, temos físicos nossos em toda parte. [2]

    Jayme Tiomno reforça o mal-estar com as dificuldades de contratação de pessoal, relatando sua própria experiência de dar aulas sem receber pela universidade, e corrobora a impossibilidade de formar pesquisadores em física e em matemática na UB:

    O CBPF foi criado porque nós tínhamos verificado que não havia condições de fazer pesquisa - pelo menos em física, na universidade. Em outros campos, a experiência mostrou que era possível. Mas, mesmo em matemática, foi muito difícil - não houve pesquisa na área. (...) O doutorado existia para que as pessoas não o fizessem. Existia somente para as pessoas de bom relacionamento na universidade - aqueles que os catedráticos queriam que fizessem. Estabeleceram um sistema extremamente complicado que não estimulava ninguém - não havia curso, somente uma tese a ser feita a sós. Esse era o espírito da UB - o autodidatismo. [2]

    Algumas perguntas surgem desses relatos. Por que justamente as áreas de física e de matemática tiveram essa peculiaridade? Outras áreas científicas, como as biológicas, desenvolveram-se dentro da universidade. Na UB, por volta da mesma época, mais precisamente em 1945, Carlos Chagas Filho criou o Instituto de Biofísica. Por que, então, o argumento de que a universidade criava empecilhos para pesquisas e contratações era mais forte em física e em matemática do que em outras áreas? É fato que a UB era dominada por catedráticos indicados pelo governo, mais interessados na reprodução de seu poder político do que no desenvolvimento científico do país. Essa condição afetava especialmente os cientistas sediados no Rio de Janeiro, protagonistas na criação do CNP. Alguns desses cientistas, contudo, usaram o CNP para estimular laboratórios de ponta funcionando dentro da universidade, como foi o caso da biofísica e de outras áreas. É provável que a influência negativa dos catedráticos variasse de uma área a outra. Na área de matemática da UB, por exemplo, relatos apontam efeitos negativos das atitudes do professor Rocha Lagoa [2]. Seria possível afirmar, portanto, que as situações específicas das áreas de física e de matemática na universidade tornavam sedutor buscar espaços protegidos fora dela. Só que a história é, quase sempre, feita de contingências, mas também de determinações ligadas ao contexto social e político. A pesquisa em física, especialmente em física nuclear ou de partículas, tornou-se estratégica no período da Guerra Fria. Investir no conhecimento científico necessário ao domínio da tecnologia nuclear significava alcançar posição soberana na cena mundial. Foi nesse contexto que se desenvolveu a chamada big science, em diversos países, com ênfase em física e áreas afins. Nesse quadro, a insistência em centros de pesquisa autônomos, voltados para algumas áreas, não era uma idiossincrasia de nossos cientistas. Outros países, na época também em desenvolvimento - e possuindo jazidas de material radioativo, como a Índia - fizeram opção similar.

    A evolução dos sistemas de pesquisa científica e acadêmica na Índia chegou a ser descrita pela noção de "dualismo", sugerida por Dhruv Raina e Ashok Jain [3]. Tratava-se de caracterizar as instituições do sistema de ciência e tecnologia como independentes das universidades, devendo ser estruturadas pelos requisitos de um conhecimento em rápida evolução, assim como pelos imperativos de um Estado em vias de modernização. Embora o Brasil tenha uma história colonial diferente da Índia, o papel da ciência na construção de um Estado soberano e moderno teve sabores similares nos dois países durante a década de 1950, com instituições de pesquisa científica desempenhando um papel central na defesa da soberania durante a Guerra Fria. Raina e Jain afirmam explicitamente que "o surgimento da big science exigiu a criação de novas instituições e, concomitantemente, a superação da universidade como o antigo local para a produção de conhecimento". O desenvolvimento nacional, na Índia, estava ligado à pesquisa em energia atômica e implicou a criação de uma sólida infraestrutura de pesquisa: o Tata Institute of Fundamental Research, que na década de 1950 criou um departamento de energia atômica, o Indian Institute of Science e outros cinco institutos de tecnologia. Todos concebidos como institutos de pesquisa de elite onde "jovens do mais alto nível intelectual em uma sociedade são treinados para pensar e analisar problemas com frescor de perspectiva e originalidade geralmente não encontradas" [3]. Formar uma elite científica era estratégia-chave na missão de construir uma nova nação. Isso pode ajudar a explicar a relação entre física e matemática. Ainda que as áreas matemáticas incentivadas não se aplicassem ao tipo de física requerido no projeto, tratava-se de um campo de saber privilegiado na formação dessa elite científica.

    Já foi bem documentada a participação decisiva do almirante Álvaro Alberto na criação do CBPF e do CNP, sendo um de seus objetivos desenvolver a tecnologia nuclear [4]. Os trâmites para a criação do CNP deixam claro, como mostra Ana Maria Ribeiro, o intuito de se criar algo análogo à Atomic Energy Comission estadunidense:

    ...no contexto das exportações de minerais radioativos do Brasil para os Estados Unidos e do conflito de ideologias expresso na Guerra Fria, tentou-se organizar uma instituição similar à "Atomic Energy Commission". A iniciativa coincidiu com os preparativos da viagem do então capitão-de-mar-e-guerra Álvaro Alberto da Motta e Silva para integrar a delegação brasileira na Comissão de Energia Atômica da ONU, entre 1946-48 [5].

    A produção de consenso, durante a articulação para a criação do conselho, envolvia defesa nacional, bem-estar e ciência, em particular a física nuclear. Uma boa síntese é o discurso do presidente Dutra ao apresentar o projeto ao Congresso:

    É um fato reconhecido que, após a última guerra, tomaram notável e surpreendente incremento, não só por imperativo de defesa nacional senão também por necessidade de promover o bem-estar, os estudos científicos e, de modo particular, os que se relacionam com o domínio da física nuclear. Nesse sentido, estão dedicando esforço diuturno as nações civilizadas (...) que passaram a considerar tais estudos tanto em função dos propósitos de paz mundial como, sobretudo, em razão dos imperativos da própria segurança nacional [5].

    Somado à suposta disponibilidade de jazidas de material radioativo em território nacional, o saber de jovens físicos promissores como Leite Lopes e César Lattes tinha papel estratégico para a soberania nacional [6]. Faltava somente a infraestrutura adequada, que deveria vir com investimentos em equipamentos de ponta, como reatores nucleares. Essa tecnologia serviria tanto ao projeto nacional e militar de soberania, quanto à obtenção de novas formas de energia para o desenvolvimento industrial que poderia transformar o Brasil em uma nação moderna.

    Ao contrário da história da física no período, já explorada do ponto de vista histórico, a relação do Impa com esse contexto permanece um tema em aberto. À primeira vista, parece evidente concluir que a pesquisa de ponta em física demanda conhecimentos matemáticos à altura. Em outros países, a big science também incluiu o investimento em pesquisa matemática na esteira da física atômica. É surpreendente, porém, que não houvesse relação direta entre a matemática pesquisada e o tipo de física tido como prioritário. A criação do Impa não foi vinculada ao incentivo de áreas da matemática que pudessem servir aos projetos do país envolvendo algumas áreas da física. Não que devesse ser assim, mas é um problema histórico relevante relacionar o contexto social e político em que as pesquisas científicas se desenvolvem e as linhas de pesquisa em sua especificidade. Como o contexto de produção de conhecimento impacta o conhecimento que está sendo produzido em si mesmo? Essa é uma das questões levantadas no livro Science and Technology in the Global Cold War, de Naomi Oreskes e John Krige [7]. O foco, abordado de modo ainda insuficiente pela história da ciência, é investigar como a Guerra Fria afetou os padrões e as prioridades da pesquisa científica e que papel as ambições nacionais desempenharam na promoção, na habilitação ou no abandono de certas linhas de investigação. Este tipo de questão é ainda mais difícil de responder no caso da matemática (não coberto pelo livro acima). Escrevi um artigo mais extenso, para o International Congress of Mathematicians de 2018, em que apresento uma hipótese sobre a relação entre tal contexto e as áreas matemáticas desenvolvidas no Impa até o final dos anos 1960. Avanço aqui, de modo resumido, alguns aspectos desse trabalho.

     

    CRIAÇÃO DO IMPA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA MATEMÁTICA

    Durante os debates para a criação da Impa, ligado diretamente ao CNP, um de seus membros, Baptista Pereira, perguntou, em reunião realizada em 17 de setembro de 1952 [8], se não seria melhor criar, em vez de um novo instituto, um novo curso na universidade. Como Leopoldo Nachbin (um dos fundadores do CBPF e do Impa) afirma em entrevista [9], essa era também a posição de Joaquim Costa Ribeiro, diretor científico do CNP na época. Contudo, Cândido Dias, também membro do conselho, respondeu dizendo que o instituto não seria totalmente independente e justificou sua criação nesses moldes pelo fato de que as universidades só podiam ter um número pequeno de professores, o que tornava difícil a contratação dos matemáticos então dedicados à pesquisa [10]. Dias era amigo íntimo de Nachbin e invocou especificamente a situação do Rio de Janeiro, onde alguns proeminentes pesquisadores (como o próprio Nachbin e Mauricio Peixoto) não eram professores titulares na universidade [11]. A criação de um instituto independente, acrescentou, lhes daria uma forma estável de apoio. O argumento de Dias vai na mesma direção do que havia sido invocado na criação do CBPF: a pesquisa de alto nível precisava de "espaços protegidos", mais flexíveis e imunes às restrições impostas pela universidade e o CBPF tinha sido o primeiro - e o modelo - desse tipo de espaço [12].

    Com esse espírito, foi criado o Impa, em outubro de 1952. Durante as duas primeiras décadas de existência, sua história se confunde com as das poucas pessoas que lá trabalharam. Na verdade, havia incentivos e remuneração, mas só na década de 1970 estabeleceram-se contratos formais de trabalho. Quando o Impa iniciou suas atividades, em uma sala no CBPF, havia um diretor, Lélio Gama, que era ao mesmo tempo diretor do Observatório Nacional, e pesquisadores que davam cursos mais ou menos regularmente: Mauricio Peixoto, Leopoldo Nachbin e Paulo Ribenboim. De 1953 a 1956, o Impa funcionou naquela sala e, mesmo depois de se mudar para um novo prédio, em 1957, o instituto contava com um pequeno número de professores e estudantes. Elon Lages Lima, que se tornou pesquisador em 1956, ajuda a vislumbrar as dimensões do Impa naqueles anos:

    No final de cada mês vinha o Sr. Antonio, era ele que cuidava do prédio na esquina da [rua] Sorocaba com a [rua] São Clemente, uma pequena casa de dois andares onde o Impa estava localizado. O Sr. Antonio era o guardião do prédio, ele morava lá com sua esposa, D. Maria, no primeiro andar. No final do mês, o Sr. Antonio vinha com uma bolsa de papel contendo vários pacotes de dinheiro, que eram os salários dos professores, e dizia: assine aqui, professor! Esse dinheiro veio do CNPq. Ele recebia o dinheiro e entregava a nós, só isso. [13]

    Durante a década de 1950, o CNP funcionava como uma agência, complementando os salários de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras (onde havia poucos cargos estáveis), dando bolsas de estudo e promovendo viagens de pesquisadores brasileiros no país ou para o exterior, além de convidar matemáticos estrangeiros para vir ao Brasil. As viagens tinham um papel essencial e foram decisivas para a organização dos campos de pesquisa matemática no Impa. Nachbin e Peixoto eram muito influentes no estabelecimento das políticas do CNP para a área matemática. Outro fator era o apoio de fundações estadunidenses, como Guggenheim e Rockefeller, que contribuíram bastante na promoção de intercâmbios científicos de matemáticos brasileiros na época.

    No período entre as duas guerras, uma Europa enfraquecida pelos esforços de reconstrução e pelo surgimento do nazismo explica o aumento da importância das fundações filantrópicas, em particular da Fundação Rockefeller, como mostra Reinhard Siegmund-Schultze em Rockefeller and the internationalization of mathematics between the two World Wars [14]. A política de bolsas era um programa tão privilegiado que Siegmund-Schultze chega a dizer que a Fundação Rockefeller funcionava como uma agência de viagens, sugerindo que o clima político na Europa após a Segunda Guerra mudou o foco dessas fundações, que passaram a se voltar para a América do Sul. Nos anos 1950 e 1960, diversos pesquisadores brasileiros relacionados com a matemática viajaram com bolsa da Rockefeller, a maioria para universidades nos EUA [15].

    Leopoldo Nachbin e Mauricio Peixoto receberam subsídios de fundações como a Rockefeller e a Guggenheim. Ambos estiveram inicialmente na Universidade de Chicago, um destino preferido dos brasileiros, em grande parte devido à presença do matemático francês André Weil e sua estreita relação com o Brasil (ele foi visitante na USP de 1945 a 1947). Em 1946, Marshall Stone tornou-se chefe do Departamento de Matemática da Universidade de Chicago, liderando sua renovação [16]. Durante o mandato de Stone, expandiram-se os convites para pesquisadores estrangeiros, especialmente da América Latina, pois esse matemático tinha um papel-chave na estratégia dos EUA no pós-guerra. A proposta era criar um invisible college (escola invisível), formando um quadro de estudantes de alto nível ligados aos EUA em diferentes países [17], incluindo o Brasil.

    Na década de 1960, os matemáticos brasileiros passaram a estudar em outras universidades nos Estados Unidos, como Berkeley. Essa segunda geração retornou ao Brasil no final da década e mudou o perfil do Impa - antes, uma instituição pequena, muito ligada ao CBPF [18]. Até esse momento, as linhas de pesquisa se confundiam com as preferências de seus pesquisadores. Todas as teses de doutorado, até 1971, foram dirigidas por Nachbin ou por Peixoto (algumas dissertações de mestrado por Elon Lima) e os diplomas eram emitidos por um convênio com a Universidade do Brasil. Foi somente a partir de 1971 que esse perfil começou a mudar, pois foi criado um programa de pós-graduação em novos moldes, segundo Elon Lima, inspirados no modelo dos EUA - com cursos obrigatórios e uma etapa importante de formação em áreas específicas [13]. Nessa mesma época, os pesquisadores passaram a ter vínculo formal com a instituição.

    Leopoldo Nachbin saiu do Impa justamente no ano de 1971. Após contribuições importantes e internacionalmente reconhecidas na área de análise, criou um grupo de pesquisa no Instituto de Matemática da UFRJ. O artigo que escrevi para o ICM 2018 analisa alguns trabalhos de Nachbin e sugere que, a partir dos anos 1970, quando a pesquisa se institucionalizou no Impa, a área de sistemas dinâmicos se tornou referência. A convergência para essa área teve estreita relação com o objetivo de alçar o instituto à cena internacional da pesquisa matemática no contexto do pós-guerra, levando em conta o novo papel adquirido - globalmente - pelos EUA e pela ciência aplicada.

    Após a Segunda Guerra Mundial, houve uma redistribuição mundial das forças científicas, com repercussões importantes na pesquisa matemática. Amy Dahan-Dalmedico mostra que os Estados Unidos passaram a ter proeminência na matemática, devido ao tamanho de sua comunidade científica, à variedade de campos cobertos e ao vigor de sua infraestrutura acadêmica e de pesquisa - e uma visão mais aplicada da matemática tem papel determinante no novo contexto [19].

    A trajetória de Mauricio Peixoto ajuda a enxergar o papel da área de sistemas dinâmicos nesse contexto. Peixoto trabalhou com Samuel Lefschetz, matemático russo já instalado nos EUA na época, cujo programa de pesquisa era financiado pelo Escritório de Pesquisa Naval do país (ONR, do inglês Office of Naval Research) [20]. Esse apoio permitiu a publicação de várias traduções, particularmente da escola soviética de pesquisa em teoria das oscilações. Após um primeiro estágio em Chicago, em 1949-50, onde trabalhou em análise, com bolsa do Departamento de Estado dos EUA e da Fundação Rockefeller, Peixoto foi trabalhar com Lefschetz em 1957. Após o lançamento do Sputnik, Lefschetz criou um laboratório no Instituto de Estudos Avançados, em Baltimore, adquirindo reconhecimento mundial. Um dos assuntos principais, porque relacionado a uma nova abordagem no tratamento das soluções das equações diferenciais, era a teoria das oscilações não-lineares (relacionada com o que mais tarde ficou conhecido como "sistemas dinâmicos"). Após alguns anos, o grupo mudou-se para a Brown University, onde foi criado um centro de sistemas dinâmicos, em que Peixoto também trabalhou.

    Lefschetz e sua equipe introduziram nos EUA conceitos importantes formulados na União Soviética pelo grupo de Aleksandr Aleksandrovich Andronov, bem avançado nos estudos sobre oscilações não-lineares. Um dos conceitos mais importantes foi o de "estabilidade estrutural", que seria central para a pesquisa de Peixoto e de outros matemáticos brasileiros [21]. A noção de "systèmes grossiers" ("sistemas ordinários", chamados pelos matemáticos de "robustos") havia sido proposta por Andronov e Lev Pontryagin em 1937, em artigo escrito em francês, e desenvolvido no livro sobre teoria das oscilações que Andronov escreveu (em russo) com outros pesquisadores [22]. O objetivo era descrever as propriedades que um modelo matemático deve satisfazer para servir à descrição dos fenômenos físicos. Ser robusto é uma dessas propriedades, mas a definição matemática precisa dessa ideia foi proposta por pesquisadores ligados a Lefschetz, com papel chave de Peixoto [23].

    Mauricio Peixoto ficou conhecido, desse modo, como um dos primeiros a formular o conceito de estabilidade estrutural em termos matemáticos consistentes. Em 1959, coordenou uma mesa redonda sobre o tema no Simpósio Internacional sobre Equações Diferenciais Ordinárias, realizado no México e organizado por Lefschetz. O matemático estadunidense Stephen Smale veio ao Brasil em 1960 e iniciou, em seguida, pesquisa em Berkeley buscando estender para situações mais gerais os resultados de Peixoto, com contribuição de outros matemáticos [24]. Relatos sobre esses desenvolvimentos aparecem em textos dos principais matemáticos brasileiros da área, como Jacob Palis e Marcelo Viana; também abordei esse tema do ponto de vista histórico em [21] e [24].

    A escolha por trabalhar em sistemas dinâmicos era bastante incipiente no Brasil durante os anos 1960. Na verdade, "sistemas dinâmicos" não era ainda sequer usada para designar o campo de estudos em equações diferenciais. No Colóquio Brasileiro de Matemática, de 1962, Mauricio Peixoto apresentou a questão da estabilidade estrutural como um problema fundamental na "teoria das equações diferenciais"; pontuando, em seguida, que tal teoria também era chamada de "teoria dos sistemas dinâmicos" [25]. As três primeiras teses de doutorado realizadas no Impa - de Ivan Kuptka, Jorge Sotomayor e Aristides C. Barreto - foram supervisionadas por Mauricio Peixoto, todas finalizadas em 1964 e em temas relacionados à estabilidade estrutural ou a outros problemas de sistemas dinâmicos. Mas depois dessa data, Peixoto não estava tão presente no instituto, passando a maior parte do tempo nos EUA.

    Foi apenas no final dos anos 1960 que a pesquisa matemática no Impa se institucionalizou. A área de sistemas dinâmicos se consolidou também nesse momento, com o retorno de pesquisadores que tinham feito doutorado nos Estados Unidos, como Jacob Palis. Outras áreas matemáticas foram importantes, como a geometria diferencial - Manfredo Perdigão do Carmo também retornou do doutorado nessa época, incentivando essa área. Mas foi a pesquisa em sistemas dinâmicos a principal responsável pelo lugar que o Impa veio a ocupar na cena internacional; e isso tem relação com o contexto geopolítico do pós-guerra e, indiretamente, com a Guerra Fria. Apesar de ser praticada de modo teórico, como outras áreas da matemática pura, os problemas de sistemas dinâmicos têm relação com vasta gama de aplicações (em física, astronomia, meteorologia, economia etc.). Essa característica permitiu estabelecer uma conexão com a tendência que passou a ser valorizada naquele momento histórico, que colocou os EUA na ponta da pesquisa matemática, corroborando as tendências da big science. É possível estabelecer, assim, uma relação, ainda que indireta, entre o cerne da pesquisa matemática - o incentivo a certas direções de pesquisa ao invés de outras - e o panorama político e social do período da Guerra Fria.

    O fortalecimento das relações com os EUA foi essencial para o projeto de cientistas brasileiros de criar um centro de pesquisa autônomo e internacionalizado. A situação geopolítica do pós-guerra reestruturou a relação entre governos, agências de fomento e cientistas, permitindo construir uma imagem moderna da pesquisa matemática. Essa trajetória foi construída aos poucos, pela convergência de múltiplos fatores durante os anos 1950 e 1960, e solidificada nos anos 1970. O desenvolvimento da área de sistemas dinâmicos teve um papel estrutural na etapa iniciada pelo Impa nos anos 1970, com influência marcante sobre o panorama da matemática brasileira nos anos seguintes.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. O original desta carta encontra-se no Arquivo Guido Beck (CBPF). As citações foram retiradas do artigo de Antonio Augusto Videira, Pensando no Brasil: o nacionalismo entre os físicos brasileiros no período entre 1945 e 1955. Rio de Janeiro: CBPF, 2004.

    2. Fávero, M. de L. (Coord.). Faculdade Nacional de Filosofia. Depoimentos. Rio de Janeiro: UFRJ/ FUJB/CFCH /FE-Proedes, 1992.

    3. Raina, D.; Jain, A. "Big science and the university in India", p. 859-877. In: John Krige and Dominique Pestre (eds.). Companion to science in the twentieth century. Routledge, London and New York, 1997.

    4. de Andrade, A. M. R. Físicos, mésons e política: a dinâmica da ciência na sociedade, São Paulo: Hucitec, 1999

    5. de Andrade, A. M. R. "Ideais políticos: a criação do Conselho Nacional de Pesquisa". In: Parcerias Estratégicas. Vol. 11. Brasília, 2001. pp.221-242

    6. Vieira, C. L.; Videira, A. A. P. "Carried by history: Cesar Lattes, nuclear emulsions, and the discovery of the pi-meson". Physics in Perspective, 16, 3-36, 2014.

    7. Oreskes, N.; Krige, J. Science and Technology in the Global Cold War. MIT Press, Cambridge, MA, 2014.

    8. Reunião nº. 112, em 17/09/1952. Disponível no Centro de Memória do CNPq.

    9. Entrevista feita com Nachbin por Elisabete Burigo, em 11 de junho de 1988, disponível em http://www2.unifesp.br/centros/ghemat/paginas/teses.htm.

    10. Dias, C. S. Cientistas do Brasil: depoimentos. São Paulo, 1998. Entrevista concedida a Vera Rita da Costa, por Candido da Silva Dias, p.693-701.

    11. Essa discussão é mencionada no artigo de Circe Mary Silva da Silva, "O Impa e a comunidade de matemáticos no Brasil", Cadernos de Pesquisa, v. 39, nº. 138, set./dez. 2009.

    12. Reunião nº. 117, em 15/10/1952. Disponível nos arquivos do CNPq, t.6.3.002.

    13. Entrevista realizada em maio de 2017 por Tatiana Roque e Rogério Monteiro de Siqueira.

    14. Siegmund-Schultze, R. Rockefeller and the internationalization of mathematics between the two World Wars. Birkhäuser Verlag, 2001.

    15. Trivizoli, L. M. "Intercâmbios acadêmicos matemáticos entre EUA e Brasil: uma globalização do saber". Tese de doutorado em educação matemática - Unesp, Rio Claro (SP). 2011. As viagens e o papel das fundações foram abordados também no artigo de Michael Barany, "Fellow travelers and traveling fellows: The intercontinental shaping of modern mathematics in mid-twentieth century latin américa", Historical Studies in the Natural Sciences, 46(5), 669-709, 2016.

    16. Parshall, K. H. "Marshall stone and the internationalization of the american mathematical research community". Bulletin of the American Mathematical Society. v. 46, nº. 3, p. 459-482. 2009.

    17. Mac Lane, S. "Mathematics at the University of Chicago: A brief history". Celebratio Mathematica, 1989.

    18. Jacob Palis retornou em 1968, se tornou pesquisador assistente e foi promovido a professor titular em 1970; Manfredo Perdigão do Carmo foi pesquisador do Impa a partir de 1966, mas teve contrato formal apenas a partir de 1969, após uma permanência nos EUA e na Universidade de Brasília.

    19. Dahan-Dalmedico, A. "L'Essor des mathématiques appliquées aux États-Unis: l'impact de la seconde guerre mondiale", Revue d'Histoire des Mathématiques 2, pp. 149-213, 1996.

    20. Dahan-Dalmedico, A. "La renaissance des systèmes dynamiques aux États-Unis après la deuxième guerre mondiale: l'action de Solomon Lefschetz", Supplemento ai Rendiconti del Circolo Matematico di Palermo (II) 34, pp.133-166, 1994.

    21. Faço uma análise mais extensa, e com detalhes matemáticos, desses desenvolvimentos históricos em Roque, T., "Different notions of genericity in the classification problem of dynamical systems". In: Chemla, K.;  Chorlay, R.:  Rabouin, D. The Oxford Handbook of Generality in Mathematics and the Sciences, Oxford University Press, 2016.

    22. Andronov, A. ; Pontryagin, L. "Systèmes grossiers". Doklady Akademi Nauk SSSR, 5, pp. 247-250, 1937.

    23. Mauricio Peixoto. "On structural stability". Annals of Mathematics, 69, 199-222, 1959. Mauricio Peixoto. "Structural stability on two-dimensional manifolds". Topology, 1, 101-120, 1962.

    24. Para a história desse conceito especificamente Roque, T. "De Andronov a Peixoto: A noção de estabilidade estrutural e as primeiras motivações de escola brasileira de sistemas dinâmicos". Revista Brasileira de História da Matemática, vol. 7, nº.14, pp. 233-246, 2007.

    25. "Trataremos nessa conferência da teoria das equações diferenciais ordinárias definidas sobre uma variedade diferenciável Mn. Tal teoria chama-se também teoria dos campos de vetores ou dos sistemas dinâmicos sobre Mn". In: Peixoto, M. "Sobre o problema fundamental da teoria das equações diferenciais". Atas do 3º Colóquio Brasileiro de Matemática, Fortaleza, pp. 190-194, 1961.