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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.1 São Paulo enero/marzo 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000100015 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    A Amazônia no antropoceno

     

     

    Ima Célia Guimarães VieiraI; Peter Mann de ToledoII; Horácio HiguchiIII

    IPhD em ecologia, pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi-MPEG/MCTIC. ima@museu-goeldi.br
    IIPhD em geologia, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais-Inpe/MCTIC
    IIIPhD em biologia evolutiva e de organismos, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi/MCTIC

     

     

    Desde que surgiu na Terra, há pelo menos duzentos mil anos (1), o homem moderno vem alterando o mundo continuamente para adequá-lo às suas necessidades. As mudanças irreversíveis que o homem impingiu a um mundo dinâmico de quatro bilhões e meio de anos, cujo passado de transformações e renovações radicais se devia apenas a fatores e processos naturais de longa duração ou efeito, agora fizeram-no reconhecer sua própria importância como fundador de uma nova época geológica: o Antropoceno.

    Não há unanimidade entre os cientistas sobre quando teria começado o Antropoceno, ou mesmo se essa terminologia é tecnicamente válida sob a visão da escala temporal da geologia histórica. Já se propôs iniciar essa época praticamente junto com o Holoceno (tornando-o redundante com uma idade já formalmente reconhecida); no período das grandes navegações do final do século XV; no advento da revolução industrial, trezentos anos mais tarde. No final de julho de 2016, um grupo de trabalho sob os auspícios da Comissão Internacional de Estratigrafia recomendou o evento chamado de Grande Aceleração como o começo do Antropoceno, considerando como marco inicial a dispersão por todo o planeta dos resíduos radiativos das detonações de artefatos nucleares, pouco após a Segunda Guerra Mundial (2). Outros candidatos a marcadores com efeitos planetários incluíam a profusão de plástico industrial, a contaminação dos solos por fertilizantes de nitrogênio e a criação em massa da galinha, cujos restos fósseis seriam encontrados em todas as escavações paleontológicas do futuro (2,3).

    Assimilar o conceito do Antropoceno como uma época geológica, nos remete a uma análise e compreensão temporal que vai muito além de nossas gerações mais próximas, ou mesmo do período inicial do surgimento das civilizações modernas. Como ponto de reflexão, Stager (4) aponta que, pelos processos naturais, o excedente de gases de efeito-estufa emitidos pela queima de combustíveis fósseis, carvão e florestas, particularmente o dióxido de carbono, levará 100 mil anos para sua completa assimilação na geosfera. Estes índices na atmosfera irão modificar padrões climáticos alterando, por exemplo, a extensão e intensidade do próximo período glacial. Ao se entender que estamos na fase final de um período interglacial, que começou há dez mil anos, e que nos próximos milênios deveremos enfrentar outra mudança de estado do sistema climático, torna-se necessário compreender a dimensão dessas alterações no planeta e suas consequências neste período de crise ambiental (5).

    Cabe à humanidade escolher os caminhos a seguir, uma vez que a ciência já demonstrou o alcance de nossa influência na Terra.

     

    A AMAZÔNIA EM TRANSFORMAÇÃO

    Na Amazônia brasileira, no âmbito do Antropoceno, atividades humanas têm modificado irreversivelmente vários ecossistemas, em especial a floresta. A mais extensa floresta tropical do mundo é também a mais biodiversa e contém 1/6 de toda a água doce da Terra. Além disso, há ali uma grande riqueza de comunidades humanas que souberam aproveitar a enorme produtividade biológica local. Seus usos da terra - colheita, plantio, caça e pesca - tiveram baixo impacto na integridade da floresta. Mas a partir de meados dos anos 1960, a política governamental de ocupação do território, oferecendo terras baratas e crédito subsidiado, trouxe à região grandes levas de migrantes que promoveram rápido desmatamento e degradação florestal nas décadas seguintes (6,7). A população da Amazônia aumentou cinco vezes entre 1960 e 2010, alcançando 25 milhões em 2010, com projeção de 27 milhões de pessoas em 2015 (8), no entanto a população rural era, em 1960, praticamente três vezes superior à população urbana.

    Reconhece-se, portanto, que, desde a década de 1960, o sistema socioecológico amazônico encontra-se em fase de contínuo dinamismo caracterizado pela transição de diferentes fases - passando de um conjunto de ecossistemas relativamente intocado a um mosaico complexo de diferentes usos da terra. Assim como em outros biomas florestais tropicais, na Amazônia há vários elementos de pressão e de impacto humano, porém reconhece-se como principais o desmatamento em larga escala, a degradação florestal e a expansão agrícola (9).

    O desmatamento, isto é, a "limpeza" de extensos trechos da floresta através de corte raso e queima, é realizado principalmente com a finalidade de transformar a floresta em pasto para criação de gado ou para a monocultura de alguma planta com alto valor de mercado. Também é feito para erguer povoados e vias de acesso. Até o início da década de 1970, o desmatamento da floresta era inferior a 1% do território amazônico e atingiu quase 20% da região em 2016 (10) - são cerca de 785 mil quilômetros quadrados - um território maior do que o Maranhão, o Piauí e o Ceará juntos - de floresta desmatada na Amazônia, concentrada numa faixa curva (arco do desmatamento) que vai do leste do Pará até o Acre, passando por Mato Grosso e Rondônia.

    A degradação florestal não é o mesmo que desmatamento. É o empobrecimento progressivo da floresta, um processo destrutivo de longo prazo, que não é imediatamente observável em todos os seus efeitos. Vista do alto, uma floresta degradada não parece obviamente afetada como uma floresta desmatada: ainda existe certa cobertura vegetal, mas ela é fragmentada, com falhas aqui e ali, causadas pelo corte de árvores de interesse madeireiro, queimadas intencionais, abertura de trilhas para caça etc. Muitas árvores continuam de pé, mas a floresta não tem a mesma capacidade que tinha antes de sustentar a vida da fauna e flora que ali ocorrem. Levantamentos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) (11) mostram que, de 2007 a 2013, uma média de 14 mil km2 (equivalente à metade da área do estado de Alagoas) foi degradada por ano. Os agentes principais da degradação florestal são a atividade madeireira predatória, que muitas vezes é desenvolvida de forma ilegal, e as queimadas e incêndios florestais provocados por atividades humanas.

    Somando-se área de desmatamento por corte raso e mais a área de degradação florestal, estima-se que cerca de 47% da floresta amazônica pode ter sido impactada diretamente por atividade humana. Tudo isso tem um impacto na diversidade biológica e cultural da região. Com a perda de habitats e alimentos e a pressão da caça, dezenas de plantas e animais de vários grupos vêm sofrendo extinções locais: espécies registradas há mais de um século por pesquisadores não são mais encontradas. O último levantamento mostra que 183 espécies de animais estão ameaçadas de extinção, sendo 122 endêmicos da região (12), enquanto as plantas somam 86 espécies ameaçadas de extinção (13). Na região metropolitana de Belém, 47 espécies de aves desapareceram em 200 anos, das 329 encontrados por naturalistas e cientistas desde o século XVIII (14). A extinção de aves pode significar a perda de serviços ecossistêmicos e de espécies que regulam a população de outros animais. Assim, o ambiente fica em desequilíbrio, o que pode gerar um efeito "em cascata". As aves são um dos grupos de animais mais bem estudados no mundo e seu desaparecimento serve também como um sinal para a provável perda de outros vertebrados, plantas e insetos nos remanescentes florestais da Amazônia.

    O risco de extinção ou de redução da população de espécies devido à degradação da floresta pode ser tão grande quanto aquele causado pelo desmatamento. No Pará, estudos recentes (15) mostram que o número de espécies que desapareceram em florestas degradadas é maior do que o ocasionado pelo desmatamento de toda a Amazônia no período de 2006 a 2015. Por outro lado, quase 1/4 das áreas alteradas e abandonadas ou postas de lado após seu uso vão se regenerando e podem voltar a sustentar seres vivos, mas de forma diferente da floresta original: as florestas secundárias (capoeiras) assim formadas se verificaram capazes de manter parte da biodiversidade e do carbono e podem ter um papel importante para a conservação e para a geração de serviços ecossistêmicos (16). Os dados do projeto Terraclass, desenvolvido pelo Inpe e Embrapa, evidenciam que, em 2014, essas florestas já somavam cerca de 165 mil km2 e são mais abundantes no estado do Pará (39% de sua área desmatada). Estudos da Rede Internacional de Pesquisa 2ndFOR mostram que, em uma região onde a floresta densa foi desmatada, as florestas secundárias podem levar 30 anos para recompor a biomassa original e 300 anos para igualar a diversidade de espécies de árvores que existia no momento da destruição.

    Mas a região amazônica não é só floresta, rio ou recursos minerais. A presença do homem ali data de pelo menos treze mil anos, sendo que, pelo menos a partir dos últimos nove mil, ele vem transformando ativamente o ecossistema (17). Trechos de florestas em que predominam umas poucas espécies vegetais trazem indícios de que sejam resultado de intervenção humana, uma vez que as espécies ali presentes são em geral plantas utilizadas pelo homem para alimentação, construção, vestuário ou uso ritual (18). Os vários grupos sociais que sucederam os primeiros ocupantes nômades da Amazônia souberam aproveitar a enorme produtividade biológica primária com a qual desenvolveram múltiplas culturas. Da seleção e plantio semissistemático (9 mil anos AP) à horticultura, plantio ordenado, corte-e-queima e disseminação de cultivos (5 mil anos AP) e, depois, o estabelecimento de núcleos habitados e campos cultivados, construção de tesos e acúmulo de descarte orgânico produzindo a "terra preta de índio" (3 mil anos AP), o homem vinha alterando a topografia, o solo e a vegetação da Amazônia de maneira intensa (17,18), mas ainda não avassaladora. Entretanto, com a chegada dos europeus à região, suas atividades colonialistas e extrativistas e o uso de meios tecnológicos de alto impacto, a exploração dos recursos da floresta acelerou-se e levou à depauperização da biodiversidade e do solo, que atingiu níveis críticos a partir das políticas desenvolvimentistas de meados dos anos 1960. Alguns grupos sociais que fugiam da opressão do desenvolvimento colonialista - indígenas, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros, balateiros, castanheiros, açaizeiros, buritizeiros - conseguiram, no entanto, preservar partes da floresta com suas práticas tradicionais, que encontraram eco no movimento ambientalista ocidental e têm contribuído para o ordenamento territorial (19).

    Hoje, com seus territórios invadidos por madeireiros, grupos indígenas e comunidades tradicionais são duramente atingidos pelas atividades transformadoras que devastam a floresta onde e da qual vivem. Com população reduzida, às vezes a um punhado de pessoas, esses grupos correm sério risco de desaparecer e com eles sua língua, cultura e o conhecimento sobre a região.

    Novos e contraditórios interesses se projetam e reconfiguram a paisagem da Amazônia. É sobre esta região que se desencadeia todo um conjunto de obras de infraestrutura (portos, rodovias, hidrelétricas) que abrem a região a um novo padrão de desenvolvimento, tão predatório quanto o que foi desenvolvido na década de 1970. As obras de infraestrutura previstas (Figura 1) entram em conflito com as unidades de conservação e terras indígenas, de tal forma que 61% do total das UCs federais e estaduais da Amazônia têm incidência de processos minerários e 57% delas têm trechos rodoviários dentro de seus limites, além de 27 usinas hidrelétricas (UHE) e pequenas centrais hidrelétricas (PCH) em operação, em construção ou planejadas (20). E, além disso, a legislação ambiental brasileira, vem sofrendo retrocesso de tal sorte que causará enorme impacto na paisagem e nas populações locais.

     


    Figura 1 - Clique para ampliar

     

    Assim, a transformação drástica dos ecossistemas florestais e não florestais da Amazônia significa a destruição de um imenso patrimônio biológico, social e cultural no Antropoceno. As tendências de organização social e desenvolvimento econômico da região refletem as principais ameaças à região: expansão da fronteira agrícola, rápido crescimento da população, obras de infraestrutura e ocupação ilegal de terras públicas e privadas. As políticas de ordenamento do território e regularização das propriedades são insuficientes ou ineficientes e, muitas vezes, acabam em conflitos fundiários. A atividade humana ditará o futuro da Amazônia e o planejamento de políticas públicas integradas é crucial à manutenção desse bioma.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Stringer, C. P. Phil. Trans. R. Soc. B. 371.20150237. 2016.

    2. Steffen, W.; Crutzen, P. J. & McNeill, J. R. Ambio, 36, 8, 614-621. 2007.

    3. Zalasiewicz, J.; Williams, M.; Fortey, R.; Smith, A.; Barry, T.; Coe, A.; Bown, P.; Rawson, P.; Gale, A.; Gibbard, P.; Gregory, J.; Hounslow, M.; Kerr, A.; Pearson, P.; Knox, R.; Powell, J.; Waters, C.; Marshall, J.; Oates, M.; Stone, P. Phil. Trans. R. Soc. A. 369, 1036-1055. 2011.

    4. Stager, C. 2012. Our future earth: the next 100,000 years of life on the planet. Reino Unido: Duckworth Overlook. 2011.

    5. Palsson, G; Szerszynski, B.; Sorlin, S.; John, M.; Avril, B.; Crumley, C.; Hackmann, H.; Holm, P.; Ingram, J.; Kirman, A.; Buendia, M.; Weehuizen, R. Environmental Science & Policy, 28, 3-13. 2013.

    6. Becker, B. Amazônia. São Paulo: Ática, 1994.

    7. Fearnside, P.M. Conserv Biol. 19, 680-688. 2005.

    8. IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 2017. Diretoria de Pesquisas. Dados de 2015 baseado nas projeções contidas em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/projecao_da_populacao/2013/default.shtm

    9. Vieira, I. C. G.; Toledo, P. M. de; Silva, J. M .C. da; Higuchi, H. Brazilian Journal of Biology, 68, 631-637. 2008.

    10. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Prodes - Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite. www.obt.inpe.br/prodes.

    11. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Degrad - Mapeamento da Degradação Florestal na Amazônia Brasileira. Disponível em www.obt.inpe.br/degrad. Acesso em 10 de agosto de 2017.

    12. ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. Ministério do Meio Ambiente. Brasília, 76 p. 2014.

    13. Loyola, R.; Machado, N.; Nova, D. V.; Martins, E.; Martinelli, G. Áreas prioritárias para conservação e uso sustentável da flora brasileira ameaçada de extinção. Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 82 p. 2014.

    14. Moura, N. G.; Lees, A. C.; Aleixo, A.; Barlow, J.; Dantas, S. M.; Ferreira, J. et al. Conserv. Biol., 28, 1271-1281. 2014.

    15. Barlow, J. et al. Nature, 535,144-147. 2016.

    16. Vieira, I.; Gardner, T.; Ferreira, J.; Lees, A.; Barlow, J. Forests, 5, 1737-1752. 2014.

    17. Roosevelt, A. C. Anthropocene, 4: 69-87. 2013.

    18. Yadvinder, M.; Gardner, T.; Goldsmith, G.; Silman, M.; Zelazowski, P. Annu. Rev. Environ. Resour, 39, 125-5. 2014.

    19. Toledo, P.; Dalla-Nora, E.; Vieira I.; Aguiar, A. & Araújo, R. Current opinion in environmental sustainability, v. 26-27, 77-83. 2017.

    20. ISA 2015. Unidades de Conservação na Amazônia brasileira: pressões e ameaças 2015. Disponível em https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/mapa_09set.pdf