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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200002 

    TENDÊNCIAS

     

    O cientista e a síndrome de Cassandra

     

     

    Natalia Pasternak Taschner

    Bióloga, com doutorado e pós-doutorado em microbiología. Sócia fundadora do blog de divulgação científica Café na Bancada, co-autora do livro Caçadores de neuromitos vol II (Ed. IBIES), diretora no Brasil do festival internacional Pint of Science e coordenadora científica dos planetários de São Paulo

     

     

    Primeiro vieram os shampoos que atuavam diretamente no DNA do seu cabelo: ele entra na sua célula e substitui o material genético do seu cabelo por DNA de plantas, para evitar a perda de DNA que, segundo o fabricante do shampoo, é o que danifica o cabelo. Mas nós não falamos nada porque, afinal, era só um shampoo. Rimos do assunto no laboratório, pois para nós, cientistas, algo que atua no DNA é mutagênico - a luz UV que age no nosso DNA pode causar mutações e, consequentemente, um câncer. A propaganda de um shampoo usar essa analogia era no mínimo estranho. Até comentamos que as empresas têm cada vez mais usado a linguagem da ciência para vender, mas logo voltamos ao trabalho, afinal era só uma propaganda de shampoo. Que mal faria?

    Depois vieram as bananas maduras que curam o câncer porque têm fator de necrose tumoral nas manchas escuras. Curiosos para saber de onde veio mais esse mito de internet, descobrimos que um grupo no Japão havia injetado extrato de bananas diretamente no peritônio de camundongos. Isso tinha provocado uma resposta imune nos animais, e observou-se um aumento na expressão de fator de necrose tumoral. Alguém leu o artigo, não entendeu, e concluiu que o fator de necrose estava nas bananas, mais precisamente na parte escura. E finalmente publicou a descoberta na revista científica mais acessada e lida do mundo: o Facebook! Pronto, o estrago estava feito. E de novo pessoas eram enganadas por alguém que usava a linguagem da ciência para iludir. "Mas poxa, banana faz bem, deixa o pessoal comer banana madura", dissemos. E voltamos ao trabalho, porque temos projetos de pesquisa para escrever e artigos para publicar.

    Então vieram as dietas detox e, de novo, não falamos nada, pois era só uma dieta. Outra conversa na bancada do laboratório se seguiu, dessa vez com um tom um pouco mais preocupado. Nos perguntávamos por que as pessoas acreditavam que eliminariam toxinas do corpo seguindo uma dieta de frutas. Aparentemente, não entendiam qual a função do fígado no nosso organismo. Ninguém se perguntava quais toxinas eram essas? E por que acreditavam que eliminar toxinas provocaria emagrecimento? Alguns de nós até se aventuraram explicar para a mídia que as pessoas estavam sendo enganadas, que estavam gastando dinheiro à toa. Mas foi enorme a quantidade de livros e produtos vendidos sobre a dieta detox, alguém certamente estava ganhando muito dinheiro às custas da desinformação. Mas logo voltamos ao trabalho. Era só uma dieta. Ninguém morreria por passar alguns dias tomando suco de maçã com couve. Temos nossas pesquisas para tocar.

    Vieram as terapias alternativas. Era tanta pseudociência junta que não valia nem a pena comentar. Exceto por alguns casos extremos, em geral essas terapias só faziam mal para os bolsos das pessoas. E não tinham nenhum grande impacto sobre o andamento da ciência - ninguém cortou nossa verba. Mas desperdiçou-se um montante para comprovar o óbvio: terapias alternativas não funcionam. E claro, uma quantia ainda era utilizada para financiar essas práticas. A comunidade científica até comemorou quando países como Austrália e Reino Unido baniram a homeopatia da rede pública de saúde. Mas não aproveitamos a onda para pressionar o Congresso a fazer o mesmo no Brasil. Ainda temos a vacina homeopática da dengue sendo distribuída na rede pública de saúde. Temos até homeopatia no Sistema Único de Saúde (SUS), paga com o nosso dinheiro.

    Mas aí veio a fosfoetanolamina. A cura do câncer. E o que era pior: ela veio de dentro. Ela nasceu ali, na maior universidade da América Latina. Ninguém viu, e quem viu se calou, pois, afinal, era só um pesquisador produzindo algumas cápsulas para a população local de uma cidade pequena. Mas a fosfo cresceu. E quando decidimos falar, porque a situação se tornou séria e perigosa, nossa voz tinha sumido. E nem sabíamos que não tínhamos voz, porque não estávamos acostumados a usá-la. E quando finalmente conseguimos falar, ninguém ouviu. E por que ouviriam? Ninguém sabia quem éramos. "Cientistas? Eles não querem ajudar a população. Cientistas brasileiros? Eles não sabem nada, tem que mandar investigar nos Estados Unidos. Eles estão com inveja do único pesquisador sério, esse que descobriu a pílula do câncer. Esse sim é cientista. Ouvi dizer que ele é professor na USP Deve saber o que diz".

    A população que não sabia o que era ciência, e que não tinha como saber porque não foi educada para isso, adotou o cientista que usou sua voz, e que disse o que as pessoas queriam ouvir. Afinal, quem não gostaria de saber que foi descoberta a "cura universal do câncer", e, ainda por cima, na forma de uma pílula simples: "basta tomar três por dia e pronto; não precisa de hospital, não precisa de quimioterapia, não precisa de sofrimento". O cientista que vendia sonhos era muito mais atraente do que o cientista que vendia realidade.

    E quando parecia que nada poderia ficar pior, o movimento anti-vacinas ganha força no Brasil. Justo no país que sempre foi um exemplo de vacinação pública e gratuita. De repente, famílias de classe média-alta deixam de vacinar seus filhos por acreditar em um mito de 20 anos atrás, resultado de um trabalho fraudulento e de um médico desonesto que teve sua licença cassada. E o mais surpreendente, essas pessoas afirmam publicamente que usam as redes sociais como fonte de informação.

    Diante de tantos movimentos anti-ciência, nos deparamos ainda com o criacionismo e as aulas de religião em nossas escolas. E eis que de repente, debaixo dos nossos narizes, o Brasil já não é laico, e as aulas de ciência tornam-se tão facultativas e desvalorizadas como nosso trabalho, e o ensino de evolução nas nossas escolas está ameaçado. Calados e desvalorizados por um governo que não entende a importância da ciência e da tecnologia para a sociedade, nos deparamos também com pesados cortes em nossas verbas. Milhões foram alocados para os testes com a fosfoetanolamina. Milhões foram cortados de nossas bolsas e de nossos projetos de pesquisa.

    Em meio à calamidade, a comunidade científica tentou falar. Percebemos enfim que a situação tinha ido longe demais. Protestamos. Organizamos marchas. Fomos ao Congresso, mandamos carta para o presidente da República. Mas era tarde. Já fomos todos acometidos pela síndrome de Cassandra. Não temos credibilidade. Ninguém acredita no que temos a dizer. Assim como Cassandra, nós enxergamos o futuro.

    Sabemos o que vai acontecer com a ciência brasileira se tudo permanecer como está. Mas assim como Cassandra, ninguém acredita em nós.

    Logo vários de nós estaremos desempregados ou fora do Brasil. Nossos pesquisadores irão embora, assim como nossos alunos. E desenvolverão tecnologias no exterior que o Brasil terá que importar, pois não teremos pessoal qualificado para desenvolvê-las no país, nem para ensinar a nova geração. Demoramos demais para falar com a sociedade. Falhamos quando deixamos de esclarecer o cidadão sobre as propagandas enganosas, as pseudociências e os movimentos anti-ciência, que colocavam em risco sua integridade, seu bolso e sua saúde.

    Nós não falamos quando foi preciso. E agora não sobrou ninguém para falar por nós.