SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo Apr./June 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200003 

    BRASIL
    EDUCAÇÃO

     

    Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio carece de diálogo com a sociedade

     

     

    Patricia Mariuzzo; Ana Paula Morales

     

     

     

    A Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio, entregue em abril de 2018 pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE), completará a segunda fase do processo de definição das diretrizes que orientarão os currículos de todas as etapas da educação básica no país - ou seja, o que deverá ser ensinado aos estudantes em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas. A primeira fase foi concluída com a homologação pelo MEC, em dezembro de 2017, da base curricular para a educação infantil e o ensino fundamental.

    Agora, a última versão da BNCC para o ensino médio está sendo analisada no CNE, que deve submeter o texto a audiências e debates, para depois ser votado. No dia 4 de maio, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) enviou uma carta ao presidente do Conselho, Eduardo Deschamps, solicitando a realização de um encontro entre a Câmara Bicameral da BNCC e a SBPC e suas sociedades científicas afiliadas, além da Academia Brasileira de Ciências (ABC). O objetivo é apresentar sugestões para o documento e discutir, em especial, os aspectos e conteúdos referentes às ciências e matemática propostos. A previsão do MEC é de que a BNCC do Ensino Médio entre em vigor em 2019.

    A BNCC define um conjunto de 10 competências gerais que devem ser desenvolvidas ao longo de todas as etapas da educação básica, de forma articulada ao conteúdo das diversas disciplinas. Segundo o texto, competência é definida como "a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho". Conhecer as linguagens artística, matemática e científica para se expressar e partilhar informações; compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa e ética, são algumas dessas competências.

     

    REFORMA

    A BNCC complementa a reforma do ensino médio, feita por meio de uma medida provisória (MP 746/16) e já sancionada em 2017 (Lei nº 13415). A reforma é considerada a maior mudança na legislação brasileira no que se refere à educação, desde a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996. Trata-se de um conjunto de diretrizes que muda a estrutura do sistema atual do ensino médio. Ela prioriza a flexibilização da grade curricular e a articulação com a educação profissional e a educação integral. Na prática, no entanto, para que entre de fato em vigor, a reforma do ensino médio precisa dos apontamentos da BNCC para essa etapa de ensino - somente então estados, municípios e a rede privada poderão reelaborar os seus currículos. Hoje, o ensino médio é composto por uma grade com 13 disciplinas obrigatórias. Com a reforma, já no início do curso os alunos escolherão a área na qual poderão se aprofundar: linguagens, ciências da natureza, ciências humanas e sociais aplicadas, matemática e formação técnica e profissional. Do total da carga horária nos três anos de ensino médio, 1.800 horas deverão ser guiadas pela BNCC. As demais 1.200 horas passarão a pertencer a essas áreas de formação, chamadas de "itinerários formativos". Tais mudanças são a grande aposta do governo para estancar a evasão e a queda nos índices de aprendizagem nessa etapa do ensino, além de aumentar a conexão com os jovens.

    O último degrau da educação básica é hoje um dos principais gargalos do sistema educacional brasileiro. De acordo com dados oficiais, há cerca de 1,5 milhão de jovens de 15 a 17 anos fora da escola no país. Muitos deles nem se matriculam após concluir o ensino fundamental, e outros abandonam a escola ao longo dos estudos. Além da alta evasão, a qualidade da educação é insatisfatória: o ensino médio está desde 2011 estagnado em 3,7 pontos no Indice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal avaliação da educação básica no país, calculado a partir da taxa de aprovação e de notas dos alunos.

    No último Ideb, a meta era de 4,3 pontos (a escala vai de 0 a 10).

     

    LEGITIMIDADE

    Para Márcia Azevedo, coordenadora pedagógica do Colégio Espírito Santo, da cidade de São Paulo, a necessidade de uma reforma no ensino médio é indiscutível. "Precisamos de uma escola mais conectada com a sociedade e com as competências exigidas pelo mercado de trabalho", afirmou. No entanto, na opinião dela, a reforma não deveria ter sido feita por medida provisória. "Para ter efeito e ser produtiva tem que ter diálogo com professores e gestores. A proposta de cinco itinerários formativos que vão abarcar 13 disciplinas deixa mais perguntas do que respostas. Como o professor vai trabalhar com isso?", questiona Azevedo, que também é coordenadora do curso de pedagogia da Faculdade Paulista de Pesquisa em Ensino Superior.

     

     

    O texto da BNCC, por sua vez, afirma que o documento é resultado de um trabalho coletivo, fruto de um debate amplo com diferentes atores do campo educacional e com a sociedade e inspirado nas mais avançadas experiências do mundo, como por exemplo, Portugal, Inglaterra e Austrália. "A partir dela [BNCC], as redes de ensino e instituições escolares públicas e particulares passarão a ter uma referência nacional comum e obrigatória para a elaboração de seus currículos e propostas pedagógicas, promovendo a elevação da qualidade do ensino com equidade e preservando a autonomia dos entes federados e as particularidades regionais e locais", escreveu o ministro da Educação, Mendonça Filho, na apresentação do documento.

    Representantes de entidades científicas, no entanto, apontam que não houve diálogo suficiente na elaboração da BNCC, o que pode dificultar sua implementação na realidade das escolas brasileiras. "Até a segunda versão do texto, nós pudemos participar. No atual governo, no entanto, isso cessou", contou o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e conselheiro da SBPC, Eduardo Mortimer. "Com isso, mais de 100 especialistas de várias universidades deixaram de ser ouvidos. Isso compromete a legitimidade desse documento", aponta. Ele acredita que agora, no contexto do CNE, não haverá grandes mudanças. "O diálogo tinha que ter acontecido em uma fase anterior, entre o Ministério da Educação e a sociedade, e isso não aconteceu", lamenta.

     

    INTERDISCIPLINARIDADE

    Na opinião de Mortimer, um dos aspectos mais problemáticos da reforma do ensino médio é a não obrigatoriedade de as escolas ofertarem os cinco itinerários formativos. A BNCC agrava esse quadro ao estabelecer que apenas português e matemática são obrigatórios. Com isso, o problema crônico da falta de professores em todas as regiões do país, principalmente nas áreas de física e química, deixa de existir quando a escola "opta" por não oferecer o itinerário "Ciências da natureza e suas tecnologias".

    "Em um cenário de carência de professores no ensino público, especialmente nas áreas de química e física, ao invés de dar opções aos alunos, como o ministério quer fazer crer, você obriga o aluno a seguir o itinerário que a escola consegue oferecer", diz Mortimer. De acordo com o especialista, as escolas privadas poderão oferecer todos os itinerários, mas nas públicas isso vai depender da disponibilidade de professores. "Ora, nós sabemos que no interior do país e mesmo nas periferias dos grandes centros urbanos não há professores de todas as disciplinas. Com isso, poderemos assistir a um aprofundamento do fosso que separa o ensino privado e o público em nosso país", afirma. A organização do currículo por áreas busca promover um ensino interdisciplinar, que supõe a colaboração entre professores e o estabelecimento de conexões entre os conteúdos. "No dia a dia da escola isso é um grande desafio porque a formação do professor é muito específica, principalmente na área de ciências da natureza", considera Márcia Azevedo. Segundo ela, um dos pontos positivos da proposta da BNCC é a ênfase no processo de aprendizagem que confere ao professor o papel de mediador. "No entanto, o professor pensa que, como mediador, ele não dá aula. Essa cultura tem que ser modificada já na universidade", pontua. A implementação da BNCC depende, de acordo com Azevedo, de um diálogo com as universidades no sentido de adaptar a formação dos professores com esse perfil interdisciplinar.

    Mortimer lembra que a interdisciplinaridade é, de fato, uma demanda da escola contemporânea, mas aponta que é necessário preparar os professores e a escola para isso. Professores de escolas públicas raramente têm um lugar para preparar aulas, corrigir provas e trabalhos. "Para trabalhar os conteúdos conforme as recomendações da BNCC eles teriam que trabalhar conjuntamente. Quando vão fazer isso? Em que espaço? Na realidade da escola pública brasileira isso não me parece factível", lamenta. Para ele, a BNCC teria que ser precedida por mais diálogo com professores, gestores e com a universidade. "Sem isso, ela corre um sério risco de se transformar em um arremedo", finaliza.

     

     

    VESTIBULAR
    Uma das perguntas que as recentes mudanças no ensino médio colocam é em relação aos exames vestibulares, já que, hoje, o currículo dessa etapa de ensino é fortemente pautado pelos processos seletivos para o ensino superior. "Uma vez que o aluno poderá escolher um itinerário formativo, como ele será cobrado nos exames vestibulares? E a prova do Enem, como fica?", questiona Márcia Azevedo. Na opinião dela, a BNCC acerta ao dar mais autonomia para os estados e para as escolas, atribuindo a definição da organização curricular às redes e instituições. Elas podem optar por desenvolver as competências e habilidades previstas na base por meio da oferta das disciplinas das áreas correspondentes, de temas interdisciplinares, de projetos ou outras formas de organização que considerem mais adequadas. Os conselhos estaduais de educação irão normatizar os currículos nos estados. Haverá provas específicas? Não se sabe ainda. "A diversidade é o que existe de mais positivo na BNCC, mas não sabemos como será o ingresso no vestibular, nem o quanto as comissões que organizam os vestibulares vão se engajar nessa proposta", opina Azevedo.