SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo Apr./June 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200004 

    BRASIL
    COMUNICAÇÃO

     

    Fake news: arma potente na batalha de narrativas das eleições 2018

     

     

    Raquel de Q. Almeida

     

     

     

    A polarização partidária registrada nas eleições brasileiras de 2014 vai ceder lugar, no pleito de 2018, a uma forte batalha de narrativas envolvendo um potente ator: a engrenagem de produção e distribuição de notícias falsas ou, em inglês, fake news. Criados e distribuídos de forma capilar e com a velocidade do ambiente digital, esses boatos e mentiras podem influenciar eleitores e têm sido alvo de várias mobilizações para tentar minimizar seus efeitos nas eleições de outubro.

    No combate às fake news há desde ações de veículos de comunicação, que buscam ampliar a credibilidade da imprensa e investir no letramento midiático de leitores e usuários das redes sociais, a defensores de projetos que preveem a tipificação criminal de quem gera e reproduz esses boatos, e até parcerias firmadas entre as empresas donas das plataformas digitais usadas na disseminação desse conteúdo (Google, Facebook, Twitter, WhatsApp) e agências de checagem de dados e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Juntamente com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, o TSE criou um grupo de inteligência para estudar possíveis formas de atuação. De norte a sul há especialistas em comunicação, em direito e em proteção de dados pesquisando e debatendo o tema, mas não há consenso sobre que mecanismos serão de fato eficazes no combate às fake news durante a campanha eleitoral deste ano.

    A viralização de boatos difamatórios relacionados à vida pessoal da vereadora Marielle Franco, assassinada brutalmente no Rio de Janeiro, em março, serve de ensaio para entendermos o que está por vir, assim como pode dar pistas para soluções possíveis. Menos de 48 horas após o crime, foram publicados nas redes sociais boatos sobre suposto envolvimento da vereadora com traficantes. Estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV DAPP) mostrou que a repercussão do caso motivou 2,1 milhões de posts na plataforma social Twitter e que a viralização do factoide ganhou velocidade a partir de um único post de um deputado. Os conteúdos difamatórios avançaram no território digital por cerca de 24 horas até que uma nova onda de tuites, dessa vez desmentindo a relação da vereadora com o tráfico, conseguiu deter a propagação das notícias falsas e sedimentou o tom do debate na busca dos responsáveis pelo crime. O estudo mostrou ainda que, no período analisado de 14 a 18 de março, o grupo que difundiu as respostas contra notícias falsas naquela rede social foi majoritário: 73% do total.

    Para o diretor da FGV DAPP, Marco Aurelio Ruediger, a análise dos dados revela um rompimento da "polarização muito tradicional da sociedade brasileira vista desde 2014" e pode constituir um caminho para as campanhas eleitorais de 2018. "A divisão dos partidos foi superada e a polarização perdeu terreno.

    Isso aponta que, talvez, uma das chaves para o sucesso eleitoral de propostas em 2018 não seja a insistência na polarização dos campos, mas sim a discussão de temas transversais à sociedade brasileira, focada em valores. Parte do centro conservador não compra a 'agenda' mais radicalizada de um setor da direita", destaca Ruediger.

     

    VERDADES E MENTIRAS

    O rastro das notícias falsas sobre o crime também foi analisado pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O levantamento apontou como principal link compartilhado nas redes sociais, especialmente no Facebook, o de um site (ceticismopolitico.com) que criou a notícia falsa usando como base uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo. O jornal citava o que havia sido escrito por uma desembargadora na rede social a partir de boatos recebidos em mensagens no WhatsApp e informava que um grupo de advogados havia se mobilizado para que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se pronunciasse sobre o caso. Os responsáveis pelo site, no entanto, modificaram o texto original e distribuíram a notícia falsa com o título: "Desembargadora quebra narrativa do PSOL e diz que Marielle se envolvia com bandidos e é 'cadáver comum'".

    Para o coordenador do Labic e professor da UFES, Fábio Gouveia, esse formato usado para gerar e disseminar a informação falsa a partir de uma reportagem verdadeira é um bom exemplo da complexidade e sofisticação existente hoje nessa engrenagem de produção de factoides, que também avança num ambiente onde os veículos de comunicação estão fragilizados. "Num ambiente onde a imprensa está fragilizada e onde cada usuário de rede social é um disseminador de informações vemos outras fontes, mesmo que desconhecidas, ganharem relevância. Estamos num ambiente muito mais complexo do que o de 2014, quando o grande alavancador de disseminação de boatos foram sistemas automatizados, os bots (conhecido como internet bot ou web robot), que republicavam conteúdo em grande velocidade, e perfis falsos de usuários, usados para comentar e gerar interação nas redes", alertou Gouveia.

     

     

    O pesquisador destaca como um elemento que trará ainda mais riscos para as eleições de outubro o fato de a legislação eleitoral permitir, este ano, que as campanhas de candidatos comprem alcance digital nas redes sociais, especialmente diante do desequilíbrio econômico existente entre as candidaturas. "Essa decisão aumentará a dificuldade no combate à disseminação desses boatos no ambiente digital".

    O papel das empresas de tecnologia nesse enredo também tem sido bastante discutido, especialmente depois da descoberta de esquema de acesso a dados privados de 50 milhões de usuários do Facebook para direcionar propaganda política pela empresa Cambridge Analytica, que atuou na campanha do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a consequente abertura de processos judiciais contra a plataforma social.

    Os especialistas no tema lembram que o uso de notícias falsas para influenciar processos eleitorais sempre existiu. O que agravou a situação, em um cenário de prevalência de tecnologias de comunicação digitais, foram a mineração de dados dos usuários a partir de sua navegação no ambiente digital e a possibilidade de viralização pelos algoritmos das redes sociais. "As empresas por trás dessas plataformas já entenderam que também são responsáveis nesse ambiente, porque seus algoritmos de exibição do conteúdo condicionam o fluxo de consumo de informação e geram uma influência direta na opinião pública. A plataforma não é neutra. E, por isso, as empresas têm investido em projetos de jornalismo para atuar nessa guerra contra as notícias falsas", destaca Francisco Belda, coordenador do Projeto Credibilidade e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

     

    CHECAGEM E LETRAMENTO

    O projeto é o capítulo brasileiro do Trust Project, consórcio formado por 70 veículos de comunicação e instituições internacionais que investigam como o jornalismo pode ampliar sua credibilidade aplicando boas práticas e soluções tecnológicas que forneçam maior visibilidade para suas notícias na internet. A iniciativa conta com recursos financeiros do Google e no Brasil reúne 17 entidades, entre jornais, revistas, agências de checagem e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

    Uma outra frente que tem sido estudada no Brasil é a criação de uma coalizão de veículos de comunicação para atuação conjunta nas eleições 2018, a exemplo do mutirão que foi realizado nas últimas eleições presidenciais na França. Lá, o projeto CrossCheck, liderado pelo First Draft News, reuniu 37 veículos nacionais e internacionais que, durante dez semanas, produziram 150 reportagens relacionadas à campanha eleitoral. O conteúdo checado incluía textos, imagens e vídeos publicados na internet e, diante de uma informação falsa ou manipulada que ganhasse ampla viralização, o grupo emitia um desmentido que era publicado por todos os veículos associados, aumentando o alcance da informação checada.

    No campo jurídico e legislativo, a discussão sobre a criminalização e sanções para quem cria ou divulga notícia falsa também tem gerado polêmica. O código eleitoral já prevê detenção de dois meses a um ano para quem dissemina informações falsas. No Congresso Nacional há pelo menos oito projetos para combater as fake news sendo analisados, e em março foi criada uma comissão no Conselho de Comunicação Social para analisar e prestar consultoria para essas tramitações.

    A jornalista Ângela Pimenta, presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) e também coordenadora do Projeto Credibilidade, lembra, no entanto, que a notícia falsa tem muitas nuances. Pode partir da manipulação de uma imagem, da retirada de uma informação de determinado contexto ou até mesmo de um meme ou sátira não indicados claramente como tal. Por isso, ela defende o uso de mecanismos mais eficazes de checagem de informação, a "checagem exaustiva" e um letramento midiático dos consumidores de informação. "Precisamos ensinar as pessoas a consumirem informação. O público tem direito a saber o que consome, como numa dieta nutricional. Só que em vez de alimentos, vai se informar sobre como notícias são produzidas".

    Ela alerta também para o fato de que leis que tentem punir a desinformação podem banalizar a figura legal da remoção de conteúdo, além de abrir caminho para prejuízos à liberdade de expressão. "Tipificar criminalmente a mentira e suas várias faces é uma tarefa complexa e arriscada", afirmou. Neste cenário movediço, o único consenso é que o melhor caminho para garantir um ambiente com menos interferência de conteúdos falsos e difamatórios nas eleições de 2018 passa por uma combinação de metodologias e tecnologias reunindo todos esses atores: veículos da imprensa, agências de checagem de dados, pesquisadores, especialistas em comunicação digital e empresas detentoras das plataformas sociais.