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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200006 

    MUNDO
    FOME E OBESIDADE

     

    Faces do acesso desigual aos alimentos

     

     

    Leonor Assad

     

     

    O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em março que o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu 1% em 2017, puxado principalmente pela agropecuária, que teve produção recorde. A alta de 13%, bastante comemorada no setor, deveu-se principalmente ao aumento nas produções de milho (55%) e soja (19%). Com isso, o Brasil contribuiu mais uma vez para um bom desempenho da agricultura mundial. Estimativas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) apontam que em 2017 a produção mundial de cereais foi da ordem de 2,6 bilhões de toneladas, excluída a produção destinada à alimentação animal, e a produção de carnes foi de cerca de 325 milhões de toneladas.

    Dados do documento Perspectivas Agrícolas 2017-2026, elaborado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em colaboração com a FAO, apontam que em 2016 a produção mundial da maioria dos cereais, de carne, de produtos lácteos e de peixes atingiu níveis recordes ou próximos disso. Mas apenas os preços das sementes oleaginosas, biodiesel, algodão e peixe tiveram um modesto aumento com relação aos de 2015; somente o preço do açúcar continuou a crescer.

    Com preços baixos e alimentos fartos é de se esperar que a população mundial esteja bem alimentada, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Com efeito, se em 1990 a fome atingia 32% da população mundial, atualmente afeta 11%.

    Ricardo Abramovay, filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), considera que a redução maciça da fome nos últimos 40 anos é uma das mais importantes vitórias democráticas do mundo contemporâneo. Mas aponta que persistem dois problemas na produção agropecuária: "primeiro, os impactos socioambientais ainda são globalmente preocupantes, com taxas elevadas de desmatamento e de emissões de gases de efeito estufa", decorrentes da pecuária e da mudança de uso da terra. O segundo, acrescenta Abramovay, refere-se aos modelos de intensificação produtiva "que se apoiam sistematicamente no uso abusivo de antibióticos, na dependência de fertilizantes nitrogenados e no emprego de agrotóxicos nocivos aos consumidores e aos recursos ecossistêmicos dos quais dependemos".

     

    CONTRADIÇÕES

    Vivemos num mundo paradoxal onde uns precisam emagrecer e outros não comem o suficiente. Ainda que, em 27 anos, o número de famintos tenha se reduzido em 50%, a fome continua sendo um problema grave. De acordo com dados da FAO, atualmente, mais de 825 milhões de pessoas enfrentam esse flagelo. E mais, dados do informe anual The State of Food Security and Nutrition in the World 2017 indicam que a fome voltou a crescer em quase todas as regiões do mundo. Ao mesmo tempo, a obesidade na infância e entre adultos não para de avançar, atingindo este ano, segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 700 milhões pessoas. Apesar de todos os avanços que permitem alcançar produtividades elevadas na agropecuária, muitos países enfrentam também altas taxas de desnutrição infantil e anemia entre mulheres. Ou seja, há alimento, mas o acesso a uma alimentação na quantidade certa e com qualidade está desequilibrada.

    Provavelmente por isso o clima na 35ª Conferência Regional da FAO para América Latina e Caribe, que aconteceu na Jamaica, no início de março, com a inédita participação de todos os 33 países membros da região, era de inquietação. A fome voltou a crescer e atinge 6,6% da população da região. Três outras regiões do mundo possuem percentuais mais altos: Oceania (6,8%), Ásia (11,7%) e África (20%). Na nossa região as condições para a agricultura são favorecidas pelo clima, pelas grandes extensões de terras agricultáveis em países como Brasil, México e Argentina, e os conflitos quando existem se dão em menor escala.

    A obesidade não está necessariamente relacionada à ingestão de alimentos em excesso, mas com a qualidade desses alimentos. Historicamente, a obesidade em adultos era muito menor na África e na Ásia do que em países desenvolvidos. Mas desde 1975 esses índices têm aumentado e, nos últimos dez anos, em ritmo acelerado. Mudanças nos padrões e sistemas alimentares têm provocado aumento do consumo de alimentos processados, muitos dos quais com altos níveis de gorduras saturadas, sal e açúcares e baixos teores de vitaminas e minerais.

     

     

    RELAÇÕES PERIGOSAS

    O vídeo-reportagem do jornal The New York Times intitulado Como a grande indústria viciou o Brasil em junk food, publicado em setembro de 2017 e disponível na internet, aponta que as vendas de alimentos processados por multinacionais do gênero alimentício estão caindo nos países mais ricos e crescendo nos países em desenvolvimento, alterando hábitos alimentares na América Latina, África e Ásia. Atualmente, dez empresas controlam as centenas de marcas visíveis no comércio. Apenas a Nestlé, maior produtor mundial de café e de leite processados, controla mais de oito mil marcas.

    Patrícia Camacho Dias, nutricionista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), considera que o aumento da produção de alimentos, in natura ou processados, aumentou a oferta, mas "foi responsável também pela concentração de riqueza e de terras, empobrecimento do trabalhador do campo, prejuízo à saúde da população em diferentes níveis, não foi capaz de contribuir para a erradicação da fome e favoreceu o avanço da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis". Dias afirma que o aumento da obesidade nas camadas mais pobres da população se deve à redução dos preços dos alimentos industrializados e à ampliação das redes de comercialização de alimentos do tipo fast food, que possuem uma relação custo, sabor e saciedade mais favorável ao consumo. Na mesma linha, Abramovay concorda que há uma explosão mundial no consumo de alimentos industrializados: "o que está em questão não são problemas tópicos e localizados, ou algumas poucas e inevitáveis externalidades, e sim o sistema agroalimentar global como um todo".