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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo Apr./June 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200010 

    ARTIGOS
    ARTE E CIÊNCIA

     

    CienciArte© no Instituto Oswaldo Cruz: 30 anos de experiências na construção de um conceito interdisciplinar

     

     

    Tania C. de Araújo-JorgeI; Anunciata SawadaII; Rita C. M. RochaIII; Sandra M.G. AzevedoIV; Josina M. RibeiroV; Marcus V. C. MatracaVI; Cristina A. X. BorgesVII; Sheila S. AssisVIII; Danielle B. FortunaIX; Marcelo D.M. BarrosX; Marcelo O. MendesXI; Luciana R. GarzoniXII; Lucia de la RocqueXIII; Rosane M.S. MeirellesXIV; Valeria S. TrajanoXV; Paulo R. Vasconcellos-SilvaXVI

    IMédica, pesquisadora titular em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ex-diretora do Instituto Oswaldo Cruz (2005-2013) e coordenadora dos programas de pós-graduação stricto sensu da área de ensino da Capes e membro do seu conselho técnico-científico (2013-2018). Fundadora da linha e dos cursos de CienciArte na Fiocruz e idealizadora do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz
    IIMuseóloga da Fiocruz e atualmente doutoranda em CienciArte no Liteb-IOC.Fiocruz
    IIIJornalista da Fiocruz e atualmente doutoranda em CienciArte no Liteb-IOC.Fiocruz
    IVBióloga, professora da rede estadual de ensino na cidade de Miracema, RJ, e atualmente doutoranda em CienciArte no Liteb-IOC. Fiocruz
    VCientista social, docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre em Rio Branco e egressa da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino, idealizadora de oficinas dialógicas em saúde, ambiente e trabalho
    VICientista social, palhaço e músico, docente na Universidade Federal do Sul da Bahia em Teixeira de Freitas, campus Paulo Freire. É egresso da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino, idealizador do projeto PalhaSUS e do conceito da dialogia do riso
    VIICientista social e egressa da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino e pós-doutoranda no Liteb-IOC
    VIIIBióloga, egressa da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino e pós-doutoranda no Liteb-IOC trabalhando com o Programa Saúde na Escola
    IXBióloga e egressa da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino, em oficinas dialógicas de quadrinhos e fanzines
    XBiólogo e egresso da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino. Docente do Departamento de Ciências Biológicas na PUC-Minas, docente na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais e professor colaborador da Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz, lecionando, desde 2014, a disciplina Ciência e Arte III
    XIArte-educador, servidor técnico administrativo do Liteb-IOC e mestrando na linha de CienciArte
    XIIBióloga e pesquisadora da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino, especialmente para o controle da dengue e outras arboviroses
    XIII Bióloga e tecnologista da Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino, com foco em ficção científica, literatura e gênero
    XIVBióloga e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, docente da Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz. Oficinas de bioarte e de educação ambiental são sua especialidade
    XVBióloga e tecnologista do Liteb-Fiocruz na linha de CienciArte no Ensino, coordenadora da Pós-Graduação lato sensu em Ciência, Arte e Cultura na Saúde, orientadora de monografias, dissertações e teses em CienciArte
    XVIMédico e artista plástico, doutor em saúde pública e pesquisador colaborador no grupo de CienciArte do Liteb, orientador de teses e dissertações em ensino em biociências e saúde da Fiocruz

     

     


    RESUMO

    A linha de pesquisa em CienciArte, denominação que evoluiu numa trajetória de 30 anos de atividades unindo ciência e arte, vem sendo desenvolvida no Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz desde 2000. Ela testemunha a união de duas culturas, a fim de que ambas possam partilhar e contribuir com elementos essenciais ao ensino e à educação. Suas atividades assumem o pressuposto de que a associação da arte à educação científica possibilita ao ser humano desenvolver novas intuições e compreensões através da incorporação do processo artístico a outros processos investigativos, construindo um discurso sobre a relação entre arte, ciência, atividades humanas e tópicos relacionados a atividades multidisciplinares e multiculturais. Neste texto descrevemos a trajetória histórica da linha de pesquisa, a disciplina que dela derivou, incluindo relações entre conteúdos, referências e atividades diversas desenvolvidas. Essas abordagens atenderam aos mais diversos critérios de inclusão vinculados aos campos de atividade profissional de um ou mais componentes do grupo de estudos e práticas. Versaram sobre temas em ciência, saúde e arte evidenciando a aplicação do paradigma CienciArte e expressando a apropriação do conteúdo debatido ao longo dos anos. Uma figura síntese com a linha do tempo dessas ações mostra seus principais fatos. Entremeamos o texto com quatro "interlúdios" referentes a propostas que trabalhamos nos processos educacionais que conduzimos com CienciArte: (i) o manifesto CienciArte, (ii) as treze categorias cognitivas propostas pelo casal Root-Bernstein no livro Centelhas de gênios, (iii) a letra da música A ciência em si, de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes, e (iv) a modelagem 5D com metaformação, de Tod Siler. Destacamos os referenciais teóricos que embasam a proposta, muito calcada na prática freireana de oficinas dialógicas. Temos convicção de que a linha de pesquisa atinge seus objetivos promovendo o diálogo entre a ciência e a arte, reforçando o conceito "ArtScience", ou, em português, "CienciArte".


     

     

    PRELÚDIO: O CONTEXTO

    Este trabalho é realizado no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos (Liteb) do Instituto Oswaldo Cruz-Fundação Oswaldo Cruz (IOC-Fiocruz), Rio de Janeiro. O Liteb é um laboratório interdisciplinar com três grupos centrais de pesquisa, nos temas que lhe nomeiam. Nos estudos em terapias, as biologias celular e molecular e a imunoparasitologia são as principais ciências experimentais envolvidas, para pesquisas sobre mecanismos fisiopatológicos e terapêuticos. Os estudos em ensino são focados em metodologias investigativas em biociências e artes, promoção da saúde e desenvolvimento de produtos educacionais diversos para ensino em diversos níveis. Os estudos em bioprodutos trabalham disciplinas como bacteriologia, química, genética e ecologia, entre outros. Fazemos aqui uma síntese que relata os 30 anos da linha de CienciArte.

    Em setembro de 2017, fomos convidados para fazer uma palestra no "VII Workshop Paranaense de Arte-Ciência: diálogos e interfaces - as relações entre os saberes interdisciplinares e a complexidade". As reflexões neste texto foram elaboradas para aquela ocasião, e iniciaram com uma comparação da iniciativa dos colegas paranaenses com a nossa experiência de organização de simpósios de ciência, arte e cidadania.

    Desde 2002, o grupo de estudos e práticas em CienciArte do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz-Fundação Oswaldo Cruz, vem organizando bienalmente o evento Ciência, Arte e Cidadania (Fig. 1), em cooperação com os grupos da Rede Nacional Leopoldo de Meis de Educação e Ciência, (hoje sob a coordenação de Viviam Rumjanek, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ) do Espaço Ciência Viva e do Projeto Portinari. A organização dos simpósios é uma vertente essencial do trabalho do grupo CienciArte. Eles se tornaram um ponto focal para a construção gradual de uma rede de cientistas e artistas, todos educadores. Em suas nove edições verificamos uma grande rede de pessoas e instituições, expressando-se através das palestras, oficinas, espetáculos, vídeos e pôsteres.

    É interessante ver o desenvolvimento em paralelo dos workshops paranaenses. Nossos colegas também estavam organizando eventos que articulavam as duas áreas e o de 2017 já era a sétima edição. O grupo partia do olhar da arte, arte-ciência, enquanto os simpósios que nós organizamos na Fiocruz partem do nosso lugar de fala, a ciência, e por isso tem sido ciência-arte. E uma ciência muito marcada pela história que nos traz a própria trajetória do Instituto Oswaldo Cruz, moldado por seu criador num castelo em estilo neomourisco que é pura arte. Luiz Fernando Ferreira refere que Oswaldo sonhou um castelo de mil e uma noites para abrigar uma escola de medicina experimental [2].

    Nesse caminho, unimos os termos ciência e arte para a criação de um novo conceito, ou um novo campo: CienciArte. Mas o que é esse novo campo, CienciArte [3], com palavras aglutinadas, e não mais colocadas lado a lado, com conjunções ou preposições entre elas? Já existe esse campo interdisciplinar, transdisciplinar? Podemos iniciar repensando como surgiram outros campos interdisciplinares, como a biomedicina, a astrofísica, a bioquímica, a físico-química, a bioengenharia, a mecatrônica, ou mesmo a arte-educação, algumas ainda guardando seus conectores. Todas começaram com a disponibilização dos conceitos, métodos e práticas de um campo para o desenvolvimento do outro. Nesse encontro, nenhum dos campos perde sua especificidade, mas ao tratar de temas de interesse comum sob duas ou mais perspectivas diferentes, ambas se enriquecem e contribuem para inovar em soluções para o tema instigante que as uniu. Portanto, o nascer de um novo campo interdisciplinar não extermina os anteriores, mas abre uma nova via, uma nova perspectiva. E é assim que pensamos na perspectiva de que estamos vivendo atualmente a emergência deste novo campo, a CienciArte.

    Parece um raciocínio simples, mas não é. Tanto que, apesar de já termos estruturado a linha de pesquisa em "ciência e arte" em nosso laboratório desde 1998, e desde 2000 em nosso programa de pós-graduação, foi apenas depois de 2011 que nos colocamos de fato na defesa desse conceito interdisciplinar e por vezes transdisciplinar, ao ler o Manifesto ArtScience®, lançado por pesquisadores americanos na revista Leonardo [4]. Apresentamos o Manifesto a nossos estudantes desde o início de nosso curso de ciência e arte (ainda com os termos separados, em fase de transição para os termos fundidos). Ao conversar com um dos autores, Todd Siler, sobre como traduzir o título (ArtScience®), se para ArteCiência ou para CienciArte, ele nos deixou absolutamente à vontade para a opção que quiséssemos. Portanto, a depender do lugar de onde você se apoia para desenvolver esse campo, pode chamá-lo de CienciArte ou de ArteCiencia. Optamos por CienciArte©, e também registramos a marca para que seus desdobramentos possam ser adequadamente protegidos.

     

    INTERLÚDIO 1: O MANIFESTO CIENCIARTE

    Desde que validamos coletivamente a tradução do Manifesto ArtScience [4], não perdemos oportunidade de reapresentá-lo, revelador que é do que nós mesmos experimentamos em nossa trajetória do laboratório. Façamos uma pausa para um interlúdio com a leitura do manifesto traduzido:

    1) Tudo pode ser compreendido através da arte, mas esse entendimento é incompleto.

    2) Tudo pode ser compreendido através da ciência, mas esse entendimento é incompleto.

    3) CienciArte nos permite alcançar uma compreensão mais completa e universal das coisas.

    4) CienciArte envolve a compreensão da experiência humana da natureza pela síntese dos modos artístico e científico de investigação e expressão.

    5) CienciArte funde a compreensão subjetiva, sensorial, emocional e pessoal com a compreensão objetiva, analítica, racional epública.

    6) CienciArte incorpora a convergência de processos e habilidades artística e científica, e não a convergência de seus produtos.

    7) CienciArte não é arte + ciência ou arte-e-ciência ou arte/ciência, nos quais os componentes retêm suas distinções e compartimentalização disciplinares.

    8) CienciArte transcende e integra todas as disciplinas ou formas de conhecimento.

    9) Aquele que pratica CienciArte é simultaneamente um artista e um cientista; e uma pessoa que produz coisas que são tanto artísticas quanto científicas simultaneamente.

    10) Todo grande avanço artístico, impacto tecnológico, descoberta científica e inovação médica, desde o início da civilização, resultou de um processo de CienciArte.

    11) Todo grande inventor e inovador na história foi um praticante de CienciArte.

    12) Devemos ensinar arte, ciência, tecnologia, engenharia e matemática como disciplinas integradas, não separadamente.

    13) Devemos criar currículos baseados na história, na filosofia e na prática de CienciArte, usando as melhores práticas da aprendizagem experimental.

    14) A visão de CienciArte é a re-humanização de todo o conhecimento.

    15) A missão de CienciArte é a reintegração de todo o conhecimento.

    16) O objetivo de CienciArte é cultivar o novo renascimento.

    Assinaram: Bob Root-Bernstein, Todd Siler, Adam Brown, Kenneth Snelson Traduziram: Tania Araújo-Jorge, Anunciata Sawada e Josina Ribeiro

     


    Figura 1 - Clique para ampliar

     

    CANTATA 1: 35 ANOS DE EXPERIÊNCIAS EM CIENCIARTE

    A Figura 2 mostra uma linha do tempo com os principais fatos que marcaram nossa trajetória. Já tínhamos vivência desde a década de 1970 com visitas a museus de ciência que articulam ciência e arte, tais como o Deutsches Museum, em Munique, onde as salas que reproduziam ambientes de antigos laboratórios de química davam acesso a outra sala, agora de artes e música com diversos acervos destes campos [5]. O Exploratorium de São Francisco, museu de ciência, arte e percepção humana, integrava ciência e arte. Como dizia seu fundador, Frank Oppenheimer: "A arte no Exploratorium está misturada com a ciência como parte da pedagogia geral". Também é de Oppenheimer a afirmação: "Tanto a arte como a ciência são necessárias para o completo entendimento da natureza e de seus efeitos nas pessoas". Mas foi de fato com o trabalho de popularização da ciência realizado junto com o Espaço Ciência Viva que a parceria ciência-arte se estreitou [6], particularmente no bojo da interação com o grupo de teatro Tá na Rua [7].

     


    Figura 2 - Clique para ampliar

     

    Exploremos um pouco as imagens selecionadas para os marcos da Figura 2:

    1982. Ciência e arte se fundem em atividades de rua para popularização da ciência no Rio de Janeiro, nas parcerias do Espaço Ciência Viva com muitas instituições acadêmicas, incluindo a Fiocruz. E uma fortíssima interação se iniciou com o grupo teatral Tá na Rua, dirigido por Amir Haddad.

    1986. A atividade "Domingo de Arte e Ciência" foi a primeira que recebeu o público no pátio em torno do castelo de Manguinhos para atividades de arte e de ciência, numa parceria do Espaço Ciência Viva, do Museu de Arte Moderna e da Fiocruz.

    1994. Trabalhos de conclusão da disciplina "Alfabetização e popularização científica", ministrada para alunos da pós-graduação do IOC, já misturam ciência e arte.

    1998. Primeira tese de doutorado do nosso grupo de pesquisa que envolveu ciência e arte, em oficinas de química e arte [8]: experimentos de corrosão sobre telas e a modelagem de uma célula gigante, apresentada no museu Espaço Ciência Viva e posteriormente no Museu da Vida da Fiocruz

    2000. Primeira edição do curso "Ciência e Arte I" (45h), oferecido anualmente desde então. O tema dessa edição foi Ciência e Teatro, com um professor visitante da Universidade de Bourgogne, França, Daniel Raichvarg, e que marcou o começo da parceria com o Museu da Vida, da Fiocruz. As 10 primeiras edições foram estudadas em [9].

    2002. Primeiro Simpósio "Ciência, Arte e Cidadania", organizado bienalmente.

    2004. Primeiro livro publicado: Ciência e arte - encontros e sintonias (Ed. Senac-Rio).

    2004. Início dos cursos de mestrado e doutorado em ensino em biociências e saúde, incluindo uma linha de pesquisa específica intitulada "Ciência e Arte", a primeira numa pós-graduação no Brasil. Assim começa uma formação intensiva de pessoas em ciência e arte em nosso grupo, sob a orientação de diversos doutores que se envolveram com essa linha.

    2010. Início do curso de especialização em ciência, arte e cultura na saúde no IOC.

    2010. Organização do grupo de pesquisa CASA - Ciência, Arte, Saúde e Alegria.

    2012. Início das Expedições Fiocruz por um Brasil sem Miséria, no interior de Pernambuco e posteriormente no Acre, Ceará e Rio de Janeiro, levando e engajando ciência e arte na luta para a redução da pobreza. Uso intensivo do Manifesto CienciArte traduzido, em cursos de 7 a 15 dias em localidades de baixo poder aquisitivo no interior do Brasil.

    2016. Início do projeto de extensão CienciArte na Estrada, mantendo o espírito das expedições, mas realizando atividades mais pontuais, de três horas em um dia ou mais, segundo as possibilidades de cada local, majoritariamente vinculando-se a escolas e organizações da sociedade civil.

    Revisitando essa trajetória, nos perguntamos: o que poderia ter acontecido com o Rio de Janeiro se, na década de 1980, a experiência pontual de ocupação de comunidades com ciência e arte iniciada com atividades do Espaço Ciência Viva tivesse se expandido para todas as comunidades da cidade? Estávamos então vivendo uma experiência de inclusão e inovação, mas ainda sem a política pública para expandi-la, posto que apenas na década seguinte a divulgação científica iniciou a ocupação dos espaços de fomento e expansão.

     

    INTERLÚDIO 2: CATEGORIAS COGNITIVAS PRATICADAS PARA PROMOVER A CRIATIVIDADE

    Em 2000 iniciamos os cursos anuais de ciência e arte, que se tornaram objeto de pesquisa de mestrado no Programa em Ensino em Biociências e Saúde (linha de pesquisa Ciência e Arte) [9]. Inicialmente concebidos para promover encontros entre artistas e cientistas que praticavam os dois campos, profissional ou amadoristicamente, aos poucos foram ganhando uma base teórica e referencial que envolveu campos da filosofia, da psicologia e da educação. O livro Centelhas de gênios [10], publicado em sua primeira versão em inglês em 1999 e em português dois anos depois, caiu como uma luva no espírito do curso, pois sistematizava treze categorias cognitivas presentes no processo criativo de dezenas de artistas e cientistas. Os autores, o casal Robert e Michèle Root-Bernstein, denominaram essas categorias de "ferramentas para o desenvolvimento da capacidade criadora" e nos cursos, desde então, temos elaborado exercícios de promoção da criatividade, utilizando também as categorias como critérios para avaliação de trabalhos apresentados pelos alunos no transcorrer no curso [7]. Estas são as categorias:

    1. observar e registrar

    2. evocar imagens

    3. abstrair

    4. reconhecer padrões

    5. formar padrões

    6. estabelecer analogias

    7. pensar com o corpo

    8. ter empatia

    9. pensar de modo dimensional

    10. modelar

    11. brincar

    12. transformar

    13. sintetizar

     

    CANTATA 2: PESQUISA, ENSINO E EXTENSÃO

    Nessa trajetória de mais de 30 anos, passamos a nos caracterizar como uma equipe integrada, um grupo de pesquisa formado por cientistas brasileiros, artistas, educadores e amantes da abordagem CienciArte, que trabalham juntos para desenvolver estratégias para a educação e o ensino formal e não formal. Nesse sentido, destacamos os seguintes projetos de pesquisa que vieram dando seus frutos, em atividades, formação de pessoas e publicações: (1) oficinas de CienciArte; (2) simpósios bienais; (3) cursos: mestrado, doutorado, especialização, cursos curtos extensão/cursos populares; (4) materiais educacionais; (5) jogos, brinquedos e música; (6) performances em CienciArte. Isso significa que em cada um desses projetos engajamos estudantes de especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado para que as atividades se desenvolvam em conjunto na pesquisa e ensino. Levamos a sério a definição de Carlos Chagas Filho: "Aqui se ensina porque se pesquisa". Mais de 50 teses de doutorado, dissertações de mestrado e monografias de especialização foram desenvolvidas nesses projetos e estão atualmente sendo reunidas numa plataforma de acesso eletrônico que visa concentrar toda essa produção acadêmica.

    Ao criar a linha de pesquisa CienciArte©, desenvolvemos atividades e oficinas para ensino em ciências e saúde usando linguagens e abordagens advindas das artes, como: cinema e literatura; teatro e cenografia; música, paródia, poesia e cordel; palhaçaria e dança; quadrinhos e desenho; artes visuais e eletrônicas; pintura e escultura; jogos eletrônicos e de tabuleiro; artesanato, crochê e patchwork.

    Algumas práticas ficaram muito consolidadas, particularmente as Oficinas Dialógicas com CienciArte. Hoje temos um portfólio de oficinas de nossa equipe e de parceiros que aplicamos nos nossos cursos de ciência e arte na Fiocruz, nas expedições do projeto CienciArte na estrada e também em simpósios e eventos diversos. Alguns títulos deste portfólio são: Promoção da Criatividade I, II e III; Modelagem 5D; Brincar e saúde; Poesia, prosa e ciência; Ciência em quadrinhos; Jogos: brincar e ciência; Lixo: o desafio; Fazendo um telejornal; Miradas caleidoscópicas; EcoArte; Música no Ensino I, II, III, IV, V, VI e VII; Cordel, ensino e saúde; BioArte; Origami; Exercitando o olhar; Espaço, criação e alegria; Filosofia com pipoca; Galileu Galilei; Cabaret Pasteur; Vivências teatrais; Saúde, alegria e palhaçadas; Teatro e saúde; Química e arte: tintas e misturas; Portinari arte e ciência; Ficção e ciência; Vídeo, arte e ciência; Fotografia em lata; Biodiversidarte; Imagem em movimento/stop motion.

    Os simpósios (Fig. 1) foram nossa primeira iniciativa de abertura para a sociedade e de ruptura dos muros da Fiocruz, fortalecendo o componente de extensão de nossas atividades. Mas nessa perspectiva da extensão, acreditamos ter alcançado a maior profundidade com os cursos e oficinas Falamos de Chagas com CienciArte, Falamos de Zika com CienciArte e Falamos de Aedes com CienciArte. Dirigidos a pacientes ou a pessoas afetadas direta ou indiretamente por situações de saúde/doença com as quais trabalhamos, especialmente doenças negligenciadas, eles foram inspirados nas atividades do grupo argentino parceiro, intitulado Hablamos de Chagas [11]. A ideia é oferecer oficinas de CienciArte a portadores e familiares de um determinado agravo, como a doença de Chagas e a febre Zika, ou a populares de áreas vulneráveis a doenças negligenciadas. E, assim, oferecer oportunidades de diálogos criativos sobre os temas e desenvolver a imaginação e o engajamento dos participantes em atividades de promoção da saúde, e formar agentes populares de saúde e vigilância ambiental. Para tornar o tema ainda mais complexo, podemos considerar os cursos como uma tecnologia social educacional, no conceito formulado pela Rede de Tecnologia Social (2013): "Tecnologia social compreende produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que represente efetivas soluções de transformação social". Por isso nossos cursos deixam sementes plantadas que se desenvolvem segundo novas condições.

     

    INTERLÚDIO 3: A CIÊNCIA EM SI

    Se toda coincidência
    Tende a que se entenda
    E toda lenda
    Quer chegar aqui
    A ciência não se aprende
    A ciência apreende
    A ciência em si
    Se toda estrela cadente
    Cai pra fazer sentido
    E todo mito
    Quer ter carne aqui

    A ciência não se ensina
    A ciência insemina
    A ciência em si
    Se o que se pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar
    Do avião a jato ao jaboti
    Desperta o que ainda não, não se pôde pensar
    Do sono eterno ao eterno devir
    Como a órbita da terra abraça o vácuo devagar
    Para alcançar o que já estava aqui
    Se a crença quer se materializar
    Tanto quanto a experiência quer se abstrair

    A ciência não avança
    A ciência alcança
    A ciência em si

    (Gilberto Gil e Arnaldo Antunes)

    Nos cursos de CienciArte realizamos ao menos uma oficina de música e ensino, e a mais frequente é a que introduz a música e a letra de "A ciência em si" [12], de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes no disco Quanta, com o qual Gil ganhou um Grammy em 1995. Apesar de sua beleza e da premiação do disco, menos de 5% das pessoas que já frequentaram nossas oficinas conheciam a música antes de a apresentarmos. E mais de 95% consideraram seu conteúdo muito poderoso para trabalhar os conceitos de ciência, verdades e mitos, experimentos, abstrações, e sobretudo de ensino de ciência. Essa e as demais oficinas de música já desenvolvidas pela nossa equipe foram analisadas em [13].

    Segundo o antropólogo e educador Carlos Rodrigues Brandão, "todo ser humano é em si mesmo e por si mesmo uma fonte original e insubstituível de saber" [14]. De certa forma, também há na arte a representação de um conhecedor/conhecido que se constitui nos processos de produção coletiva desse saber. Cada pessoa, assim como cada obra de arte, é uma fonte original e única de uma forma própria de perceber que encerra um valor em si - por representar representações, por apresentar experiência individual para partilha na existência social.

    A atividade artística nos abre um dos caminhos mais penetrantes de introdução ao ser que, segundo Konrad Fiedler [15], consiste em penetrar como vivência a peculiar consciência do mundo que nasce das obras do artista. Argan prossegue nessa ideia ao afirmar que a arte não é "mero êxtase místico (...), mas uma percepção clara e eficaz das coisas, um modo mais lúcido de estar no mundo" [16]. Assim, de certa forma, um dos papéis da arte na educação seria o de revelação e denúncia de iniquidades no provimento das referências dialógicas. Nesse caminho de aprendizagem torna-se imperativa outra via de "perceber-se no outro", o que implica a necessidade de escuta e o direito de todos a colocar a sua palavra, ao enunciar de si, à expressão de um seu lugar no mundo. Além da sua óbvia dimensão estética, a arte evidencia a miséria de intersubjetividade na percepção das plasticidades ideológicas dissonantes ao redor. A pobreza do "outro" no processo de tornar-se pessoa em contraste com a falsa perspectiva de "pobreza inerente" de aspirações.

     

    SONATA: PROCURANDO CONSTRUIR UM ALICERCE PARA FUNDAMENTAR O QUE PROPOMOS NUM REFERENCIAL TEÓRICO ADEQUADO

    Podemos definir CienciArte? Santaella [17] nos ensina que "quando uma coisa se apresenta em estado nascente, ela costuma ser frágil e delicada, campo aberto a muitas possibilidades ainda não inteiramente consumadas e consumidas". Assim é CienciaArte. Um campo em construção, não formatado e que foge ao aspecto rígido e disciplinar. Os conhecimentos produzidos nos campos da ciência e da arte são inter e/ou transdisciplinares por natureza. Pensar os problemas nessa interface implica na necessidade de articular diferentes disciplinas, saberes, práticas, campos teóricos e procedimentos técnicos. A grande dificuldade é promover esse diálogo sem abrir mão da cientificidade, do rigor e da objetividade, e por outro lado, assegurando o espaço à subjetividade, à intuição e à emoção.

    Nossas atividades visam promover o acesso à troca de experiência aos que estão articulando ciência e arte, ampliando o diálogo entre artistas e cientistas, pontuando os processos criativos em cada um desses campos e, principalmente, contribuindo para a formação dos profissionais de ensino e/ou saúde e pesquisadores em biociências. Trata-se de uma iniciativa inovadora, sem precedentes na Fiocruz, com poucas referências na literatura acadêmica ou experiências comparáveis em outras instituições de ensino do mesmo porte [18].

    A articulação entre ciência e arte, especialmente no ensino, é uma questão complexa que implica em transitar por diferentes áreas do conhecimento, sempre correndo o risco de produzir generalizações e visões superficiais de cada um desses campos. A maior dificuldade é respeitar a especificidade de cada campo sem empobrecê-lo. Assim, se faz necessária uma interação e um diálogo criativo entre os dois campos, recuperando a noção de inserção de ciência e arte como parte da cultura. A uniformização do conhecimento realizada pelas ciências modernas produziu um conjunto de saberes autônomos, especializados e que, em geral, não dialogam entre si.

    Para que a ciência aconteça, muitas vezes o acaso e a criatividade fazem com que os métodos tradicionais sejam superados. Para Boaventura de Souza Santos, o método científico assenta na redução da complexidade [19]. Ainda segundo Santos,

    "A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerá-la melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão porque privilegiamos hoje uma forma de conhecimento que assente na previsão e no conteúdo dos fenômenos nada tem de científico. É um juízo de valor..."

    Para Marilena Chauí, "o modelo tradicional de ciência não consegue analisar totalmente as relações possíveis entre a arte e a ciência" [20].

    A relação ciência-arte está (ainda) em processo (permanente) de construção. Ao trocarmos experiências, todos têm a ganhar, podem aprender uns com os outros, compartilhando ideias e identificando interlocutores. O que nos move é a possibilidade de desenvolver ferramentas que facilitem o trabalho pedagógico dos nossos alunos.

     

    ALEGRO: A DIALOGIA DO RISO E SUA INTERFACE COM A CIENCIARTE

    No trânsito entre prática e teoria, nasce a "dialogia do riso" [21], um conceito baseado na interface da educação popular em saúde e CienciArte, tendo como premissa a formação de vínculos e a promoção da alegria, ao invés das restrições, obrigações ou prescrições. A prática dialógica, fortalecida por Paulo Freire [22, 23], só encontrará adequada expressão em uma pedagogia na qual o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se com alegria, como sujeito de sua própria destinação cultural e histórica.

    Mikhail Bakhtin [24] defende que a comunicação só existe na reciprocidade do diálogo, sendo fator fundamental na produção comunicativa, ou seja, só é possível com prática. Em primeiro lugar está a linguagem direta, a linguagem patética, a linguagem no sentido próprio, aquela que é utilizada sem distanciamento, sem refração, sem consciência linguística explícita, utilizada por figuras sólidas como os bufões e palhaços. Para Bakhtin, a dialogia ocorre quando a interação entre os sujeitos favorece a construção coletiva do saber, construindo horizontalmente as relações sociais.

    O diálogo e o riso são recursos utilizados para potencializar a promoção de encontros baseados na alegria humana. Nesta perspectiva, em nossas investigações adotamos a arte da palhaçaria [25] como uma das diversas metodologias que a dialogia do riso pode agregar. Em nossa pesquisa com moradores em situação de rua [26], bem como na gestão participativa [27], constatamos que o riso é um fenômeno universal, tem uma potência agregadora condicionada a vários aspectos como a cultura, a história, a ludicidade e a saúde. A figura do palhaço mobiliza um turbilhão de emoções, buscando promover encontros e "paixões alegres", como nos diz Baruch Espinosa [28]. Sendo assim, o brincar é potência agregadora que fomenta conhecimentos, criatividade e encontros [29].

    Como já citamos, Robert e Michèle Root-Bernstein [10] propõem treze categorias para o desenvolvimento do processo criativo entre cientistas/artistas e/ou artista/cientista. Destacamos a décima primeira, o brincar, que é estruturante para a dialogia do riso. Para Winnicot [29], é no brincar que o indivíduo, criança ou adulto pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral - e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu. O universo do brincar como instrumental educativo exerce papel fundamental não só no processo de aprendizagem, mas na relação do cidadão com o seu meio social. Fundimos a CienciArte na arte da palhaçaria, constatando que a figura do palhaço como divulgador e promotor de conhecimento científico pode se tornar de grande relevância no atual momento histórico. A arte da palhaçaria é uma tecnologia social com forte potencial pedagógico e dialógico.

    Atualmente, utilizamos a dialogia do riso no projeto de extensão Saúde, Alegria e Palhaçaria (SAP), que vem sendo desenvolvido desde 2016 na Universidade Federal do Sul da Bahia, com ênfase para a autonomia universitária, corresponsabilidade social e institucional, plena liberdade de criação, pesquisa, extensão e ensino-aprendizagem, num ambiente de colaboração, promoção da saúde, brincadeiras, alegria, solidariedade e arte.

     

    ADAGIO: A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA DE PAULO FREIRE COMPLETA O REFERENCIAL TEÓRICO DA CIENCIARTE

    "A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria" [23, p. 139].

    Nas oficinas de CienciArte adotamos o diálogo como uma "exigência existencial", a partir da qual "se solidarizam o refletir e o agir de sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado" [22, p. 108-109]. Assim, nosso trabalho é todo perpassado pela filosofia de Paulo Freire [22, 23] segundo a qual educar implica reflexão dialógica sobre a prática e, nestes termos, a verdadeira liberdade do educador está em perguntar, inclusive, sobre o conteúdo do diálogo, e não apenas em cumprir um programa que é normalmente prévia e/ou solitariamente elaborado, sem o menor conhecimento da realidade dos sujeitos. Nos cursos adotamos a integração dos saberes dos participantes com os dos ministrantes, assegurando continuidade entre as atividades presenciais e outras que são realizadas pelos discentes em seus locais de trabalho, estudo ou moradia. Desse modo, essa ação está fundamentada na pedagogia da alternância, de Paulo Freire.

    O diálogo da ciência com a arte, reforçando o conceito CienciArte fundamenta-se nas propostas de Paulo Freire, para quem "[...] um educador tem que ser sensível, o educador tem que ser um esteta, tem que ter gosto. A educação é uma obra de arte [...]." Como Freire, também partimos do pressuposto de que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção" [23, p. 47]. Não tratamos apenas de criar novas metodologias de ensino, mas de "reeducar a sensibilidade pedagógica para captar o oprimido como sujeito de sua educação, e construção de saberes, conhecimento, valores e cultura" [23, p. 27]. Assim, consideramos que, à semelhança do que fez Paulo Freire, é necessária a manutenção do olhar atento aos sujeitos pedagógicos, aos seus movimentos e a suas práticas de liberdade [23]. Portanto, neste ponto de nosso artigo cabe uma pausa para reler com o tempo necessário para refletir sobre cada uma dessas afirmativas que constituem o corpo da pedagogia freireana, que complementa e embasa fortemente as atividades educacionais com CienciArte. Sem nenhuma pretensão de aprofundamentos, pelo espaço restrito, não podemos falar de CienciArte sem citar as exigências de valores e postura docente necessária para quem busca ensinar com CienciArte:

    I) Não há docência sem discência

    Ensinar exige rigorosidade metódica

    Ensinar exige pesquisa

    Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos

    Ensinar exige criticidade

    Ensinar exige estética e ética

    Ensinar exige corporificação das palavras pelo exemplo

    Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição à discriminação

    Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática

    Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural

    II) Ensinar não é transferir conhecimento

    Ensinar exige consciência do inacabado

    Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado

    Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando

    Ensinar exige bom senso

    Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores

    Ensinar exige apreensão da realidade

    Ensinar exige alegria e esperança

    Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível

    Ensinar exige curiosidade

    III) Ensinar é uma especificidade humana

    Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade

    Ensinar exige comprometimento

    Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo

    Ensinar exige liberdade à autoridade

    Ensinar exige tomada consciente de decisões

    Ensinar exige saber escutar

    Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica

    Ensinar exige disponibilidade para o diálogo

    Ensinar exige querer bem aos educandos

     

    INTERLÚDIO 4: MODELAGEM 5D COM METAFORMAÇÃO

    Uma das propostas mais inovadoras que temos aplicado em nossas oficinas é a modelagem 5D com metaformação (metaphorming, em inglês). Desenvolvida por Siler em seu livro Pense como um gênio [30], a proposta combina instrumentos baseados na arte e na ciência sob a forma de modelos 5D, aplicados a atos criativos de inovação, sempre a partir de uma pergunta mobilizadora. Siler considera como 5D tais modelos simbólicos porque incorporam as três dimensões tradicionais de altura, largura e profundidade, a quarta dimensão com perspectivas de tempo e movimento, e uma quinta dimensão envolvendo todas as formas de simbolismo, todas as linguagens simbólicas, tais como palavras, imagens, objetos, números, sinais, histórias, alegorias, trocadilhos, metáforas visuais, analogias físicas, símiles e outros dispositivos que usamos para nos expressar e nos comunicar. Fazendo verdadeiras esculturas de ideias a partir de uma pergunta mobilizadora, podemos dar início a uma roda dialógica freireana da mais alta qualidade, como temos observado em diferentes cursos. O tema merece um desenvolvimento mais abrangente e aqui é mencionado apenas com o intuito de ser registrado no âmbito geral das teorias e práticas com CienciArte.

     

    POSLÚDIO [31]: PROPOSTA

    Nada melhor do que a fala dos participantes dos cursos de ciência e arte [9] para introduzir sua avaliação:

    "Todo o curso foi muito rico para mim, eu realmente o buscava"
    "Tive a sensação de estar sendo 'iniciada' na arte"
    "Gostei da aula que nos instigou a identificar padrões, a ver e
    ouvir, usar outros sentidos, expressar percepções"
    "Adorei aulas com professores/cientistas/artistas
    trazendo suas experiências"
    "Descobri o que eu realmente queria pesquisar"
    "Mudou totalmente a minha visão de processo educativo"
    "Pude reproduzir e adaptar essa disciplina a outras
    oficinas que ministrei"
    "Passei a utilizar as dinâmicas de grupo em algumas aulas,
    principalmente antes da prova, para reduzir a tensão dos alunos"
    "Acredito nessa fusão e, mais que isso, consigo atrair
    a atenção dos alunos assim"
    "Ampliei o repertório de teorias e experiências,
    conheci novos autores, metodologias"
    "Revi a minha forma de avaliar o aluno, busquei utilizar mais
    instrumentos de avaliação incorporando atividades
    que pudessem aliar ciência e arte"

    Através da educação do olhar, da percepção, da sensibilidade e da criatividade pretendemos estimular a inovação em ciência e saúde, no processo de formação de cientistas e educadores. Partimos dos ensinamentos de Paulo Freire, que compreendia a importância da relação de mútua potencialização entre a palavra e a imagem, situando a arte e a estética como dimensões humanas essenciais ao processo de construção de linguagens e temáticas úteis à alfabetização e ao tornar-se pessoa. A problematização sobre visões divergentes de mundo - sejam estas representadas em telas, canções, lendas e até pelas histórias contadas à beira do sono - antecede o ler, o escrever e o contar. Cada obra evidencia sua transcendência também pela possibilidade de múltiplas percepções e interpretações. Educar a imaginação é o que faz CienciArte, reforçando o pensamento do cientista social Florestan Fernandes: "A grandeza de uma pessoa se define por sua imaginação. E sem uma educação de primeira qualidade, a imaginação é pobre e incapaz de dar a ela instrumentos para transformar o mundo" (F. Fernandes, pronunciamento na Câmara dos Deputados, 02/12/92).

    Nesse sentido, a proposta que defendemos é a introdução de CienciArte no ensino, em todos os níveis, para a formação de cientistas e para a formação de cidadãos. Esses "outros sujeitos" desafiam a elaboração de "outras pedagogias", em que se rompa com os silenciamentos, com invisibilidade e onde se reconheça a legitimidade dos trabalhadores enquanto agentes de sua própria ação educativa [32]. A proposta de conciliar arte e ciência vai ao encontro da necessidade de buscar novos rumos para a educação, a partir da criação de instrumentos teóricos e estratégias pedagógicas que facilitem e potencializem o ensino/aprendizagem. A aproximação com o campo da arte parece ser uma boa alternativa, pois ela amplia a criatividade e a percepção e enriquece a educação.

    Atribui-se a Leonardo da Vinci o conselho apropriado para encerrar estas reflexões: "para uma mente completa, estude a arte da ciência, estude a ciência da arte. Aprenda a enxergar. Perceba que tudo se conecta a tudo.".

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Que o leitor não se espante: somos mesmo vários autores neste texto, pois somos vários autores na construção do campo de CienciArte no Liteb-IOC.

    2. Ferreira, L. F. "Gonçalves Cruz (1872 - 1917)", Cad. Saúde Pública 3(4): 507-517. 1987. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1987000400014.

    3. Sawada, A. C. M. B.; Ferreira, F. R.; Araújo-Jorge, T. C. "CienciArte ou ciência e arte? Refletindo sobre uma conexão essencial", Educ. Artes Incl. 13(3):158-177. 2017. http://dx.doi.org/10.5965/1984317813032017158.

    4. Root-Bernstein, R.; Siler, T.; Brown, A.; Snelson, K. "ArtScience: integrative collaboration to create a sustainable future". In: Leonardo, 44 (3), p. 192, Cambridge: MIT Press, 2011.

    5. Araújo-Jorge, T. C. "Ciência e arte: caminhos para inovação e criatividade". In: Araújo-Jorge, T. C. (org.), Ciência e arte: encontros e sintonias. 1ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2004, v. 1, p. 22-46.

    6. Kurtenbach, E.; Persechini, P. M.; Coutinho-Silva, R. "Espaço Ciência Viva: ciência e arte desde 1982". In: Araújo-Jorge T. C. (orgj, Ciência e arte: encontros e sintonias. 1ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2004, v. 1, p. 146-153.

    7. Mafra, L.; Black, R. "A interação dos artistas do grupo Tá na Rua com os cientistas do Espaço Ciência Viva". In: Araújo-Jorge T. C. (org.), Ciência e arte: encontros e sintonias. 1ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2004, v. 1, p. 208-213.

    8. Aguiar, L. E. V. "Química e arte: motivar para educar". In: Araújo-Jorge T. C. (org.). In: Araújo-Jorge T. C. (org.), Ciência e arte: encontros e sintonias. 1ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2004, v. 1, p. 180-191.

    9. Sawada, A. C. M. B. "A disciplina de ciência e arte no IOC e a criatividade dos egressos através de seus trabalhos finais". Dissertação de mestrado, Fundação Oswaldo Cruz, 2014.

    10. Root-Bernstein, R.; Root-Bernstein, M. Centelhas de gênios: como pensam as pessoas mais criativas do mundo. São Paulo: Nobel, 2001.

    11. Sanmartino M. "Chagas: Arte y Ciencia. Notas de un recorrido en construcción para abordar un problema complejo". Rev. Iberoamericana de Arritmología 1(2): 261-268. 2011. DOI: 10.5031/v1i2.RIA10169.

    12. Gil, G.; Antunes, A. A ciência em si. ©Gege Produções Ciclope-Warner/Chappell Ed. Musicais Ltda.

    13. Barros, M. D. M. "O uso da música popular brasileira como estratégia para o ensino de ciências". Tese de doutorado, Fiocruz, 2013.

    14. Pereira, B. M. "Carlos Rodrigues Brandão: formação, multilinguagens e pluriolhares de um educador popular e antropólogo do mundo rural", História Oral, 20(1):55-75. 2017.

    15. Fiedler, K. De la esencia del arte. Buenos Ayres: Nueva Visión, 1953.

    16. Argan, G. C. Walter Gropius y el Bauhaus. Buenos Ayres, 1957.

    17. Santaella, L. O que é semiótica, Editora Brasiliense, 2012.

    18. De La Rocque, L.; Meirelles, R. M. S.; Figueira-Oliveira D.; Grossman E.; Campos, M. V.; Kamel, C.; Araújo-Jorge, T. C. "Vanguarda em pesquisa e ensino em ciência e arte: uma experiência do Instituto Oswaldo Cruz". In: Actas, X Reunión de la Red de Popularización de la Ciencia y la Tecnología en América Latina y el Caribe (RED POP - Unesco) y IV Taller "Ciencia, Comunicación y Sociedad", San José, Costa Rica, 9 al 11 de mayo, 2007.

    19. Santos, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004.

    20. Chauí, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2004.

    21. Matraca, M. V. C.; Araújo-Jorge T. C., Wimmer, G. "A dialogia do riso: um novo conceito que introduz alegria para promoção da saúde, apoiando-se no diálogo, no riso, na alegria e na arte da palhaçaria". Cienc Saude Colet. 2011; 16(10):4127-38.

    22. Freire, P. Pedagogia do oprimido: saberes necessários a prática educativa. 50ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

    23. Freire, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

    24. Bakhtin, M. Estética da criação verbal. 2a ed., Tradução M. E. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes; 1997.

    25. Campos, M. V. "Alegria para saúde: arte da palhaçaria como proposta de tecnologia social para o sistema único de saúde" [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Oswaldo Cruz; 2009.

    26.Matraca, M. V. C.; Araújo-Jorge, T. C.; Wimmer, G. "A dialogia do riso e a gestão participativa", In: Rede de pesquisa em Manguinhos: sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS. Org. Isabela Soares Santos, Roberta Argento Goldstein - 1 ed - São Paulo: Hucitec, 2016.

    27. Matraca, M. V. C.; Araújo-Jorge, T. C.; Wimmer, G. "O palhasus e a saúde em movimentos nas ruas". Interface Comunição Educação, 2014, 18, Supl 2:1529-1536.

    28. Espinosa, B. Ética III - Da origem e da natureza das afecções. São Paulo, Abril Cultural, 1972.

    29. Winnicott, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Ed. Imago,1975.

    30. Siler, T. Pense como um gênio. Ediouro, 1999.

    31. Tomamos a liberdade para tratar este texto como uma obra de arte, usando a metáfora musical. Prelúdio, para abrir; interlúdio, para introduzir novos temas conectores entre as várias partes; cantata, para definir partes cantadas em conjunto pela equipe, como num belo coral de vozes; sonata, para introduzir trechos mais referentes às teses e dissertações de determinados coautores; alegro, para introduzir a dialogia do riso; adágio, para introduzir uma pausa reflexiva mais demorada e referencial, e poslúdio, para apresentar nossa proposta e nossas considerações finais.

    32. Arroyo, M. G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes; 2012.