SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200016 

    CULTURA
    HISTÓRIA

     

    Livro explora relações raciais e luta dos negros contra a escravidão em Cuba

     

     

    Beatriz Maia

     

     

     

    Insurreições, fugas e a luta pelo fim da escravidão são alguns dos temas que compõem o cenário em que se desenvolve o livro Conspirações da raça de cor escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881), da historiadora e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Iacy Maia Mata. Este ano, o livro recebeu a menção honrosa na categoria "literatura brasileira" do Prêmio Literário Casa de Las Américas, em cerimônia realizada todos os anos em Havana. A obra faz parte da coleção Várias Histórias, coordenada pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) e publicada pela Editora da Unicamp.

    De uma conjuntura de guerras e intensa agitação política, a autora escolheu analisar uma conspiração pouco estudada pela historiografia sobre a colônia espanhola. Trata-se da conspiração descoberta em 1867, em Santiago de Cuba, envolvendo homens "livres de cor" e escravos, e que pretendia, fundamentalmente, pôr fim à escravidão. O inquérito produzido para investigar e punir os acusados de participar do movimento contém cerca de 1.200 folhas entre interrogatórios, depoimentos, defesas e sentença e foi a porta de entrada para a autora discutir escravidão, liberdade e relações raciais na região. Uma das hipóteses para a falta de atenção da historiografia para a conspiração de 1867, segundo a autora, é a intensa atividade política anticolonial em Cuba que, entre 1868 e 1898, foi convulsionada por três guerras contra a Espanha, que teriam ofuscado a conspiração. Mata cita o historiador João José Reis como uma de suas grandes inspirações, por conta dos estudos sobre a Revolta dos Malês, em Salvador, surpreendida ainda em seus preparativos em 1835. "O diálogo com a historiografia brasileira e o olhar atento para a história social permitiram que eu me debruçasse sobre a sociedade santiagueira a partir da conspiração e do projeto de revolta que não se realizou", completa. "As duas perguntas que me fiz foram: por que os "livres de cor" estão envolvidos em uma conspiração com escravos? E em seguida: qual o significado, para a época, do lema 'sublevar a gente de cor contra a branca'? Isso aparece em outras revoltas e conspirações escravas nas Américas, mas eu queria destrinchar os significados políticos desse projeto nesse contexto específico", conta a historiadora.

     

    CONSPIRAÇÕES

    Mata explica que a expressão "livres de cor", amplamente utilizada na época em Cuba, abarca negros, pardos, mulatos, morenos, trigueños e outras denominações de um sistema de classificação social baseado na cor. Nesse contexto, um dos argumentos fundamentais da pesquisa é que no curso das conspirações e insurreições antiescravistas e anticoloniais, negros e mulatos passaram a reivindicar o pertencimento à "raça de cor".

    Para entender como os "livres de cor" viviam na região, a autora analisou testamentos, textos de viajantes, legislações municipais, documentações policiais e buscou dados acerca de ocupação, posses e possibilidade de mobilidade social. De acordo com ela, ainda que alguns negros e mulatos chegassem a possuir pequenas faixas de terra e escravos, a mobilidade social não os livrava do estigma da cor. Esse foi o caso do proprietário da fazenda La Retreta que foi chamado de "negro desavergonhado" por um vizinho branco na presença da escravaria. Apesar de possuir terra e escravos, o fazendeiro queixou-se à polícia de que a ofensa fazia com que os cativos não o respeitassem. "Livres de cor" trabalhavam lado a lado com escravos nos engenhos e cafezais, às vezes desempenhando as mesmas tarefas e foi nessa experiência compartilhada que começaram a organizar a conspiração de 1867. A proximidade com os escravos e o tratamento discriminatório vivido pelos "livres de cor" ajudam a explicar o compromisso desses homens com a abolição da escravidão.

     

     

    Na visão da autora, por mais que alguma ascensão social fosse possível, grupos de homens "livres de cor" percebiam com muita precisão as barreiras impostas pelas hierarquias raciais. "Percebi isso quando comecei a me perguntar por que um dos objetivos da conspiração era sublevar a 'gente de cor' contra os brancos e promover a igualdade entre os negros. Observando os papéis que os brancos ocupavam em Santiago de Cuba na década de 1860, percebi que os grandes fazendeiros, as autoridades administrativas, os juízes, os policiais, os comerciantes, todos em posições de poder e controle eram brancos", pontua Mata. A conspiração teve como alvo não só os proprietários de escravos, mas os brancos que dominavam os espaços de poder e prestígio na sociedade colonial.

     

    VOCABULÁRIO POLÍTICO

    O livro reconstitui o ambiente político em que emergiram as conspirações da "raça de cor" e analisa o vocabulário político específico mobilizado pelos negros no curso das guerras anticoloniais. A autora encontrou na documentação pistas como a de uma testemunha da conspiração de 1867, que relatou que um homem negro entrou na casa de um homem pardo e o convocou a matar um branco, dizendo "nós todos somos iguais". Para a autora, o gesto seria uma tentativa de diluir as diferenças existentes entre pardos e negros para que atuassem juntos na conspiração. Nessa época, em Cuba, pardos e negros tinham festas e associações separadas.

    No final de 1880 e início de 1881, cerca de 200 "livres de cor" foram presos e deportados, acusados de tomar parte em assunto político. As autoridades espanholas alegavam que aqueles homens tramavam uma grande conspiração. Nos documentos apreendidos pelas autoridades espanholas, uma carta de um pardo a um mulato, suspeitos de participar da conspiração, reafirmava o compromisso de redimir os "irmãos africanos" (ex-escravos e agora patrocinados), pois por suas veias corria o mesmo sangue. Outra carta de suspeitos da conspiração terminava com "muito cuidado e que Deus proteja nosso propósito para o bem da nossa raça".

    Desse modo, Mata identifica o vocabulário político específico dos "livres de cor", que lutaram contra a escravidão e conclamaram a unidade entre negros e pardos durante as guerras anticoloniais. Nesse esforço, a identidade de "raça de cor" foi acionada e negros, pardos e mulatos, apesar da diferença na cor, passaram a reivindicar uma origem e passado comuns: a África. A historiadora ressalta que as classificações por cor não deixaram de existir: "a categoria raça foi mobilizada com o objetivo político de abolir a escravidão e conquistar direitos políticos integrais para os não-brancos. Ao mesmo tempo, esses insurgentes e conspiradores que assinavam como "cubanos de cor" lutavam para tornar Cuba uma nação. Eles forjaram, nas batalhas contra a Espanha e a escravidão, suas identidades racial e nacional", finaliza.