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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo Apr./June 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200017 

    CULTURA
    ARTES VISUAIS

     

    A radiação Basquiat

     

     

    Mariana Castro Alves

     

     

    O menino Jean-Michel Basquiat já desenhava automóveis e quadrinhos, mas foi com Gray's anatomy, publicado em 1858 pelo cirurgião inglês Henry Gray (1827-1861), que seu interesse por ilustrações foi despertado. Hospitalizado por conta de um atropelamento quando tinha apenas sete anos, ele se distraia com as mais de trezentas figuras do livro de anatomia, por meio das quais queria entender a extensão das lesões causadas pelo acidente. Presente dado pela mãe, a publicação influenciaria para sempre sua obra, permeada por desenhos de órgãos e de partes do corpo humano. O livro também dá nome à sua banda, Gray, onde tocava clarinete e sintetizador nas noites da Baixa Manhattan no fim dos anos 1970. Entre heróis negros, pugilistas, músicos de jazz e personagens de história em quadrinhos, várias referências são trabalhadas em uma poética visual sofisticada desse artista que morreu precocemente, aos 27 anos, e que se tornaria um dos ícones das artes plásticas da segunda metade do século XX.

     


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    Parte desse universo pode ser vista em grande retrospectiva que reúne mais de 80 peças pertencentes ao colecionador israelense Jose Mugrabi. Promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), ao longo de 2018, a mostra passa por São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

     

    VEIAS DA CIDADE

    Depois da infância no Brooklin, ingressou numa escola alternativa de Manhattan chamada City-as-school, para alunos superdotados. Tinha 16 anos. "Essa escola usava a cidade como sala de aula, organizando estágios que combinavam trabalho e estudo. Mesmo depois que saiu de lá, a cidade de Nova York continuou sendo sua escola", conta o curador da exposição do CCBB, Pieter Tjabbes. Foi lá que Basquiat conheceu o artista grafiteiro Al Diaz, com quem, sob o pseudônimo SAMO (acrônimo para "same old shit", "a mesma merda de sempre"), pintava mensagens enigmáticas pelas ruas.

    Aos 18 anos, passou a morar com amigos, vendendo cartões postais e camisetas pintadas à mão para sobreviver. Tocava em clubes como o Mudd, a primeira casa noturna de Nova York a abrigar uma galeria e, já nessa época, Basquiat fazia parte da cena artística mais intelectualizada da cidade.

    Para Marcus Bastos, professor do Departamento de Arte da PUC-SP, o contexto multicultural da Baixa Manhattan permite que o artista amadureça uma linguagem bastante particular no diálogo com a cultura da cidade e com questões ligadas ao racismo e ao preconceito nos Estados Unidos. "No final dos anos 1970, Nova York era uma cidade sob o efeito da recessão econômica. Entre outras coisas, isso fez surgir um circuito de experimentação onde se cruzavam tribos urbanas procurando novas formas de expressão, com o fortalecimento do punk, do hip hop, do grafite, do skate. Era nesse cenário de novas linguagens da arte urbana que Basquiat estava inserido", afirma.

     

    MITOS

    Se aos 19 anos não tinha dinheiro para comprar tinta, aos 24 suas pinturas alcançam os US$ 25 mil. "Depois que expôs na galeria de Annina Nosei, especializada em pintura contemporânea, Basquiat passou a atrair muita atenção. Criou-se uma mitologia de que ficava no subsolo, trancado como um escravo, produzindo em troca de cocaína, o que permitia uma produção em ritmo acelerado", conta o professor do Departamento de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo (USP), Geraldo de Souza Dias Filho. "Houve um salto de qualidade quando foi para a galeria da assistente de Leo Castelli, a Mary Boone. Esse foi um segundo momento. O terceiro momento foi com Warhol", explica o professor da USP.

    Basquiat produz com Andy Warhol (1928-1987) mais de cem quadros em grande formato - alguns dos quais estão na exposição do CCBB. No ateliê, Warhol normalmente projetava uma imagem sobre a tela e aí pintava à mão. Basquiat trabalhava sobre a tela, pintando e acrescentando imagens e palavras. Em 1985, quando os quadros são expostos, a parceria é desfeita depois de críticas negativas. A partir daí Basquiat torna-se cada vez mais recluso.

    Em 1988, no ano seguinte ao falecimento de Warhol, Basquiat morre aos 27 anos, por "intoxicação aguda por mistura de drogas", conforme indicado em sua autópsia.

     

    LINGUAGEM

    A colagem dinâmica de palavras e imagens em objetos como portas e esquadrias faz de Basquiat um dos maiores expoentes da cultura da remixagem. "A mistura de influências e imagens de gigantes da história da arte, como Da Vinci, até Looney Tunes, reflete seu extraordinário insight sobre o modo como as pessoas de sua geração enxergavam o mundo", diz o curador. "A liberdade composicional do pintor e fotógrafo norte-americano Cy Twombly (1928-2011), bem como sua integração de palavra, imagem e gestos, eram uma influência reconhecida", aponta Tjabbes. Conforme explica Dias Filho, apesar das palavras estarem presentes nas artes plásticas desde a Idade Média, como em Fra Angelico (1387-1455), na arte moderna ocorre uma contaminação do código escrito e imagético. "Em Basquiat, as palavras preenchem os espaços, por isso, ele é muito mais visual que poeta", afirma. Nos Estados Unidos, entre o final de 1960 e os 1970, o minimalismo e uma arte conceitual dominavam as artes visuais. No entanto, nos anos 1980, a pintura, que tinha sido deixada de lado em favor da escultura, retorna e traz de volta a subjetividade do artista que se expressa por meio de figuras marcantes. Um exemplo é o pintor neo-expressionista Julian Schnabel, que em 1996 dirigiria o filme Basquiat- traços de uma vida. Com esse ou outro rótulo, os preços de Basquiat crescem exponencialmente após sua morte. Em 2017, um quadro de caveira negra foi arrebatado por US$ 110,5 milhões em Nova York, tornando-se a sexta peça mais cara já vendida em leilão.