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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.3 São Paulo jul./set. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000300011 

    ARTIGOS
    SBPC 70 ANOS

     

    Pioneiras da ciência no Brasil: uma história contada doze anos depois

     

     

    Hildete Pereira de MeloI; Ligia RodriguesII

    IDocente do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET)
    IIPesquisadora associada ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)

     

     

    Neste ano de 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) completa 70 anos e a efeméride permite que se possa avaliar a presença feminina nos espaços científicos nacionais através da trajetória da própria SBPC. Esta, como uma das principais sociedades científicas nacionais, expressa muito bem os percalços e os êxitos das mulheres na construção de uma carreira científica no país. Ninguém duvida que a carreira científica foi e é um espaço de poder e masculino, e analisando a história da presidência da associação, vamos encontrar a primeira cientista eleita como presidente da SBPC apenas no final dos anos 1980. A professora Carolina Bori (1924-2004), apesar de ter ingressado na SBPC em 1969, só vinte anos depois foi eleita presidenta da entidade para o mandato de 1987-1989. Dez aos depois, a bioquímica Glaci Zancan (1935-2007) foi eleita para os biênios 1999-2001 e 2001-2003. E, finalmente, na segunda década do século XXI, a biomédica Helena Nader, que já era primeira vice-presidente, acabou assumindo o mandato na gestão de 2011-2013 e em seguida foi eleita presidenta para os mandatos de 2013-2015 e 2015-2017. Convenhamos que na relativa longa vida da SBPC, apenas três mulheres conseguiram galgar a presidência da sociedade e foram presidentas por cerca de seis mandatos bianuais.

    Isso não é por acaso. O desenvolvimento científico dos últimos dois séculos, no mundo, foi sempre creditado ao gênero masculino e essa trajetória da SBPC expressa apenas a invisibilidade que, por muito tempo e de forma persistente, se deu em relação à presença feminina nos espaços científicos mundiais e brasileiros. Com essa preocupação, este artigo tem como objetivo traçar o empenho de pesquisadoras feministas que, nos últimos 20 anos, estudam a participação das mulheres no campo científico brasileiro, como também resgatar essas histórias [1-9]. Assim, o presente artigo está estruturado da seguinte forma: primeiro faz uma breve síntese a respeito da invisibilidade feminina no meio científico, na segunda parte faz um relato da construção do livro As pioneiras da ciência no Brasil [10], publicado pela SBPC em 2006, e de sua repercussão no ativismo feminista acadêmico, desde então incentivando novas pesquisas sobre aquelas mulheres [11] e abrindo novos caminhos aos estudos feministas nacionais.

     

    UM POUCO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA ... POR QUE TÃO POUCAS?

    No século XX, as mulheres conseguiram avançar no sistema educacional, venceram o analfabetismo e ingressaram nas universidades - instituições estas que configuram o passaporte para o ingresso na carreira científica. No entanto, o mundo da ciência ainda permanece um reduto masculino, no Brasil e no mundo. Há quase uma "invisibilidade" das mulheres nos campos dos saberes científicos - da matemática, ciência considerada pelos antigos como a ferramenta para a explicação do mundo, aos demais campos científicos, nos quais observa-se que a presença feminina aparece esparsa ao longo dos séculos. Schiebinger [12] afirma que o acesso restrito das mulheres às carreiras científicas deve-se ao fato de que os homens são educados para a esfera pública e as mulheres para a privada, que a estrutura social é dirigida pelos interesses e poder masculino. E que o ideal do modelo materno serve mais aos homens que precisam de mão de obra gratuita para cozinhar, lavar e cuidar dos filhos e não a elas que, como mães e donas de casa, têm sustento gratuito (p. 13). Mas esse papel coloca a carreira da mulher em perigo, pois a restringe ao espaço doméstico.

    Por que os inventos científicos são sempre creditados aos homens e a história da ciência registra apenas nomes masculinos? Estas incômodas questões levantadas por feministas trouxeram, sem sombra de dúvida, mudanças ao campo científico desde a segunda metade do século XX. A exumação e o sepultamento de Marie Curie (1867-1934) no Panteão em Paris, em 1995, quando se tornou a primeira mulher sepultada nesse local destinado aos heróis, não aconteceu por acaso: deve-se à insurgência feminista de nossos tempos.

    É necessário que as crianças e os jovens conheçam os nomes de mulheres que, mesmo esquecidas, estiveram nos meios acadêmicos. E saibam que as mulheres não estiveram ausentes no desenvolvimento da matemática e das ciências no mundo ocidental, e que no Brasil não foi diferente. As bases das lutas feministas modernas explodiram no mundo desde 1792, quando Mary Wollstonecraft (1759-1797) publicou Reivindicações dos direitos da mulher, proclamando o direito à educação e o direito à igualdade de oportunidades [13]. Embora a história das mulheres nas ciências tenha avançado desde a segunda metade do século XX, elas não se tornaram cientistas apenas no século passado. Até o fim do XVIII não era necessário ter acesso à educação universitária para se trabalhar com ciência. Como poucas pessoas eram remuneradas para exercer esses ofícios, permitia-se que mulheres trabalhassem nos círculos científicos. Paradoxalmente, as universidades, desde o século XII até o final do século XIX, impuseram a exclusão ou restrições variadas para aceitarem mulheres em seus cursos e pesquisas [12].

    Além de Hipatia, nascida provavelmente no ano 370 da era cristã e que lecionou geometria em Alexandria (Egito) - e foi trucidada por fanáticos em 415, devido aos seus conhecimentos científicos que afrontavam a sociedade daquela época -, poucas foram as mulheres que conseguiram furar o bloqueio e estudaram ou lecionaram em universidades naqueles séculos. No entanto, sempre se encontram exceções e a historiografia registra algumas dessas mulheres: a filósofa italiana Elena Priscopia (1646-1684), a física Laura Bassi (1711-1778), a italiana Maria Gaetana Agnesi (1718-1799), a francesa Gabrielle-Emilie, marquesa Du Chatelet (1706-1749). No século XIX, a inglesa Ada Lovelace (1815-1852) e a russa Sonja Kovalevsky (1850-1891); e no albor do século XX, Amalie Emmy Noether (1882-1935), matemática que revolucionou a álgebra moderna. Essas mulheres foram, na sua grande maioria, de origem nobre ou filhas de comerciantes enriquecidos, o que possibilitava esse tipo de comportamento, mas o privilégio dava apenas acesso limitado ao mundo do poder e do conhecimento. Só depois de 1870 é que as mulheres conseguiram ingressar em cursos universitários, agora um pré-requisito fundamental para ingressarem nas carreiras científicas.

     

    E NO BRASIL .... PORTAS TAMBÉM FECHADAS ÀS MULHERES

    As primeiras instituições de ciências exatas e tecnológicas brasileiras surgiram no final do reinado de Pedro II, com a fundação, em 1874, da Escola Politécnica na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, desde a chegada da corte portuguesa já tinham sido fundadas as Escolas de Medicina e Cirurgia, no Rio de Janeiro e na Bahia. Em 1827, foram criadas as Academias de Direito de São Paulo e Olinda (PE). Em 1829 foi criada a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro com a finalidade de promover o aperfeiçoamento dos conhecimentos médicos no país (com a República, o nome da entidade mudou para Academia Nacional de Medicina). Em 1845 foi criado o Imperial Observatório do Rio de Janeiro, atualmente chamado Observatório Nacional, e, em 1885, em Belém do Pará, o Museu Paraense Emílio Goeldi. Em Campinas, o Instituto Agronômico foi criado em 1887. Já na República, o Instituto Bacteriológico de São Paulo foi fundado em 1893 e a Escola Politécnica de São Paulo, em 1894. Ainda nessa mesma cidade, foram criados a Escola Presbiteriana de Engenharia Mackenzie, em 1896, e o Instituto Butantan, em 1899. O Instituto Soroterápico Municipal de Manguinhos, criado em 1900, foi transformado, em 1907, no Instituto Oswaldo Cruz. Os pesquisadores e professores eram na sua maioria estrangeiros, e os poucos brasileiros tinham se graduado no exterior. Homens e brancos atuando nas áreas de astronomia e ciências naturais.

    A exceção que deve ser lembrada é a presença da cientista Emilia Snethlage (1868-1929), graduada na Alemanha e que veio para o Brasil em 1905 para trabalhar como assistente de zoologia no Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará. Publicou uma obra que inventariou 1.117 espécies de aves amazônicas e que foi referência para os estudiosos da ornitologia ao longo do século XX [14]. Naquela época, as mulheres, em sua maioria analfabetas, estavam longe dos bancos escolares e da carreira científica. Somente a partir de 1879 as mulheres puderam entrar nas instituições de ensino superior brasileiras, e só em 1887 foi expedido o primeiro diploma feminino de medicina, concedido à gaúcha Rita Lobato Velho Lopes (1867-1954). Eram poucas as mulheres aptas a serem aprovadas nos exames de ingresso.

    A existência desses restritos espaços científicos foi abalada pela eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e provavelmente isso contribuiu para que em 1916 fosse fundada a Academia Brasileira de Ciência (ABC), que ao lado da Academia Nacional de Medicina, completava o quadro acanhado das ciências no país. A guerra tinha mostrado, na prática, a importância do poderio da ciência e da técnica nos campos de batalha e urgia que o Brasil, como um Estado soberano, também desenvolvesse o seu meio científico. Alguns cientistas, renomados mundialmente e preocupados com a luta pela paz, empreenderam uma campanha nos anos 1920 e, assim, Albert Einstein e Marie Curie vieram ao Brasil e desempenharam papel importante na difusão da ciência para a construção da paz [15].

    Igualmente, os anos 1920 foram plenos de revoltas militares, greves operárias e de uma agitação científica e política que exaltavam os feitos da ciência e da tecnologia e que possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa básica e a difusão da ciência no Brasil. No rastro dessa agitação foram criadas, em 1920, a Universidade do Brasil e, em 1934, a Universidade de São Paulo. As mulheres foram paulatinamente abrindo as portas das faculdades e, já nos anos 1920, graduaram-se as primeiras engenheiras nacionais. Na década seguinte, as faculdades de filosofia, ciências e letras nas universidades de São Paulo e do Brasil trouxeram muitas mulheres para seus cursos, o que ensejou a formação das primeiras cientistas nacionais [16].

    Assim como a Primeira Guerra Mundial sacudiu o interesse nacional pela ciência, o final da Segunda Guerra Mundial teve também um papel fundamental para a formalização do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. Em 8 de julho de 1948, cientistas reunidos em São Paulo fundaram uma sociedade civil similar a outras existentes nos países avançados, com a finalidade de formular ações e políticas públicas para o desenvolvimento científico nacional: a SBPC. Respondendo a tais demandas, em 1951 o Estado brasileiro criou o, então, Conselho Nacional de Pesquisas - que depois de 1974 passaria a ser o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do então Ministério da Educação e Cultura (MEC).

     

    AS PIONEIRAS DA CIÊNCIA NO BRASIL: SUAS HISTÓRIAS

    A participação feminina nas carreiras universitárias e científicas acentuou-se no país a partir dos anos 1970, depois que as mulheres venceram a luta para entrar no ensino superior. Cada porta do processo educacional nacional foi aberta por nossas trisavós depois de muita luta: da educação primária, secundária até os portões universitários. E o sucesso foi inegável, pois em 1991 assegurou-se definitivamente a vitória das mulheres na batalha educacional. Naquele ano, o censo demográfico mostrou que as mulheres brasileiras tinham mais anos de escolaridade que o sexo masculino. Todavia, a discriminação não foi vencida: persistiram desigualdades salariais e de acesso a carreiras profissionais e nas atividades científicas. E, na segunda década do século XXI, a ciência e a tecnologia ainda permanecem um reduto masculino, no mundo e no Brasil [8]. O reconhecimento dessas distorções foi a origem das tentativas de associadas da SBPC de provocação desse debate no seio da associação desde a década de 1970 [17].

     

     

    O projeto do livro As pioneiras da ciência no Brasil foi fruto desse movimento. Na primeira década do século XXI, a direção da regional da SBPC do Rio de Janeiro era composta por diversas mulheres que abraçaram a ideia de realizar uma pesquisa para mostrar que as mulheres, silenciosamente, estavam nos bastidores do mundo científico nacional e que era necessário rasgar os panos desse anonimato. Participaram da iniciativa a então secretária-executiva da regional do Rio de Janeiro da SBPC, a cientista social Maria Lucia Maciel, uma pesquisadora simpática à luta feminista; a física Ligia Rodrigues e a economista Hildete Pereira de Melo, duas militantes feministas curtidas das lutas dos anos 1970 e 1980; além da matemática feminista Maria Eulália Vares.

    Numa reunião da diretoria foram discutidas e aprovadas ações de gênero para a regional da SBPC do Rio de Janeiro, a saber: palestras sobre o tema no programa que a regional já realizava com sucesso, intitulado "Ciência às 6 ½", e o projeto de um livro sobre as pioneiras da ciência brasileira. A ideia da publicação foi fruto da discussão preparatória para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2005 e da lacuna de nomes femininos na história da ciência nacional, pauta também cobrada por algumas estudantes e docentes no evento daquele ano. Havia como inspiração o livro comemorativo dos 50 anos da SBPC, publicado em 1998 e intitulado Cientistas do Brasil - depoimentos, no qual havia 59 depoimentos de cientistas brasileiros, dentre os quais apenas sete eram de mulheres. Ou seja, apenas 12% desse elenco estrelado de cientistas eram do sexo feminino: Johanna Dobereiner, Maria da Conceição Tavares, Nise da Silveira, Marta Vannucci, Carmen Portinho, Graziela Maciel Barros e Carolina Martuscelli Bori.

    A incumbência de realizar a pesquisa coube a mim e à Lígia. A minha experiência na coordenação de uma pesquisa sobre a participação das mulheres no sistema brasileiro de ciência e tecnologia, realizada para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no início dos anos 2000, foi o pontapé para discutirmos os critérios de seleção das cientistas pioneiras em suas áreas científicas [18]. Tínhamos o desafio de resgatar do esquecimento figuras de mulheres que haviam efetivamente participado do processo de construção da ciência nacional e permaneciam ocultas na sua história. Como na diretoria da SBPC regional havia profissionais de diferentes áreas, começamos nossa pesquisa montando uma lista de pesquisadores que teriam de ser consultados para que fosse feita uma primeira seleção, por área científica, de mulheres que tinham se destacado ao longo daquelas décadas nas suas áreas de atuação, contribuindo dessa forma para o avanço da ciência e da tecnologia no Brasil.

    Entrevistamos professores e pesquisadores renomados, como Herman Lent, Marcelo Damy de Souza Santos, Oscar Sala, José Leite Lopes, Maurício Peixoto, Amélia Império Hamburger, Ernesto Hamburger, além de pesquisadoras do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e de vários professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), USP e Universidade Federal Fluminense (UFF). Também consultamos o acervo da revista Ciência Hoje. Com essas entrevistas e leituras, montamos um painel das cientistas que eram lembradas pelos seus pares como figuras importantes em suas respectivas áreas de atuação. Não importava se tinham falecido, se retirado da vida acadêmica ou ainda permaneciam ativas, o que contava era o destaque no cenário científico nacional. Questões relevantes para compor esse painel referiam-se também à importância das publicações dessas cientistas, doutoramento ou não, e presença no cenário público brasileiro, através de entrevistas em jornais e revistas.

    Encerrada a primeira etapa da pesquisa obteve-se o nome de 19 cientistas: Alice P. Canabrava e Eulália L. Lobo (historiadoras), Bertha Lutz (bióloga), Blanka Wladislaw (química), Carolina M. Bori (psicóloga), Elisa Frota-Pessoa, Neuza Amato e Sonja Ascher (físicas), Elza F. Gomide e Marília C. Peixoto (matemáticas), Graciela M. Barroso (botânica), Johanna Döbereiner (agrônoma), Maria Josephina M. Durocher (obstreta), Maria da Conceição Tavares (economista), Maria José von P. Deane (parasitologista), Marta Vanucci (bióloga), Nise da Silveira (médica psiquiátrica), Ruth S. Nussenzveig (bióloga) e Victória Rossetti (engenheira agrônoma).

    Na época (segundo semestre de 2005), 12 já eram falecidas e sete estavam vivas. Foi possível entrevistar apenas duas dessas cientistas e, para a pesquisa sobre as demais, usamos as informações contidas em publicações e curriculum vitae, quando possível. As informações eram bastante heterogêneas e os verbetes resultantes espelham essas lacunas. Elas tiveram, em sua maioria, uma longa carreira científica [19], com exceção de apenas duas: Sonja Ascher (1923-1948) e Marília Chaves Peixoto (1921-1961), falecidas ainda jovens. A física Sonja Ascher foi a primeira mulher a obter título de doutorado em física, defendido em 1948, na Universidade de Cambridge (Inglaterra) com orientação do Prêmio Nobel de Física de 1933, Paul Dirac. A engenheira Marília Chaves Peixoto publicou trabalhos em funções convexas que tiveram enorme repercussão internacional e, em 1951, foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Ciências. A inclusão de Madame Durocher (1809-1893), uma mulher do século XIX, no rol das pioneiras da ciência no Brasil, se deu pelo reconhecimento do seu talento obstétrico. Ela foi membro titular da Academia Nacional de Medicina e, durante cinco décadas, a única mulher admitida como membro da instituição [20].

    Parte das nossas preocupações foram direcionadas ao entendimento de como aquelas prestigiadas carreiras femininas haviam sido construídas por mulheres com diferentes situações pessoais e familiares (casadas, mães, solteiras). Das 19 cientistas elencadas, sete eram casadas com colegas cientistas, seis eram solteiras e seis casadas com homens de outras profissões. Portanto, 63% tinham constituído famílias e 32% tinham optado por não. Por quê? Como essas mulheres eram nascidas entre os 1910 e 1940, suas decisões eram provavelmente marcadas pelos ditames sociais daqueles tempos. Na entrevista com a matemática Elza Gomide [21], ela afirmou que teria sido muito difícil conciliar a carreira profissional com a familiar e optou pela dedicação integral ao ensino e à pesquisa [6]. Todavia, não foi possível fazer entrevistas com as mulheres cientistas casadas com colegas da mesma área, para conhecer como a conciliação foi feita (ou não) e quais tipos de atritos foram enfrentados por elas. Entre as cientistas com filhos, casadas com maridos de outras profissões, a física Neuza Amato afirmou que o apoio das empregadas domésticas foi importante para a conciliação da carreira e da maternidade. As origens familiares (imigrantes europeus) e o incentivo dos pais, muitos também cientistas, e de professores foi recorrente nas falas delas. Apenas Bertha Lutz e Maria da Conceição Tavares desenvolveram também intensas atividades políticas: ambas foram deputadas federais, Bertha dedicada à construção da cidadania feminina e Conceição da razão crítica na luta permanente pelo desenvolvimento, pela utopia de construir um país justo e inclusivo para brasileiros e brasileiras.

    Em 2005, foi criado o Programa Mulher e Ciência, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República, o CNPq, o então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Ministério da Educação (MEC), com o objetivo de estimular a participação das mulheres no mundo científico e nas carreiras acadêmicas. Assim, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher de 2013, foram colocados no site do CNPq os verbetes do livro Pioneiras da ciência no Brasil (os verbetes foram atualizados, pois algumas das pioneiras haviam morrido desde a publicação [22]). Foi surpreendente a repercussão - o CNPq recebeu mais de 200 mensagens elogiando a iniciativa e sugerindo nomes de outras pioneiras da ciência de praticamente cada uma das unidades da federação brasileira.

    No segundo semestre de 2014, o Museu Ciência e Vida, de Duque de Caxias (RJ), realizou uma exposição inspirada nos verbetes publicados no nosso livro, intitulada Mulheres Pioneiras nas Ciências no Brasil, com curadoria de Simone Pinto, sobre o significado da presença feminina na construção da ciência nacional. Houve um debate conosco e com outras acadêmicas fluminenses, sobre a presença das mulheres na universidade e na pesquisa científica, para estudantes do ensino médio do município. O projeto previa que a exposição municipal deveria, a partir de maio de 2015, tornar-se itinerante pelo estado do Rio de Janeiro.

     

    CONCLUSÕES

    A publicação do livro Pioneiras da ciência no Brasil pela SBPC, em 2006, na gestão de Ennio Candotti e de Maria Lucia Maciel na regional do Rio de Janeiro, foi provavelmente o primeiro resgate que a entidade fez contando a história das mulheres na construção da ciência no país. Hoje, são inúmeros os esforços das cientistas para rasgarem os panos e mostrarem o real valor das pesquisadoras brasileiras e estrangeiras, sejam elas físicas, matemáticas, químicas, engenheiras, biólogas e cientistas sociais. Temos, juntas, travado uma luta contra a sub-representação das mulheres no sistema científico e tecnológico e na denúncia do patriarcalismo, do racismo e do sexismo ainda subjacente na sociedade e no mundo científico.

    Esse é um caminho ainda em construção, e esperamos que seja reforçado pelas novas gerações no momento que a SBPC completa 70 anos. As cientistas e estudantes se multiplicaram pelo Brasil nas duas últimas décadas e torcemos para que, a partir da inspiração na trajetória das mulheres pioneiras, sejam buscados novos nomes, brancos e negros, para que uma nova história seja recontada, com outras personagens da ciência nacional.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Citeli, M. T. "Mulheres nas ciências: mapeando campos de estudo", Cadernos Pagu, Campinas, SP, Unicamp, 2000.

    2. Lima, B. S. "Quando o amor amarra: reflexões sobre as relações afetivas e a carreira científica", Revista Gênero, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, vol. 12, nº 1, 2013.

    3. Lopes, M. M. "'Aventureiras' nas ciências: refletindo sobre gênero e história das ciências naturais no Brasil", Cadernos Pagu, Campinas, Unicamp, 1998.

    4. Lopes, M. M. (organizadora) Dossiê Gênero, Ciências, História, Cadernos Pagu, Campinas, SP, Unicamp, 2000.

    5. Melo, H. P.; Lastres, H. M. M.; Marques, T. "Gênero no sistema de ciência, tecnologia e inovação no Brasil", Revista Gênero, Niterói, Universidade Federal Fluminense, vol.4, n.2, 2004.

    6. Melo, H. P.; Rodrigues, L. M.C. Pioneiras da ciência no Brasil, Rio de Janreiro, SBPC, 2006.

    7. Saitovich, E. M. B.; Funchal, R.; Barbosa, M.; Pinho, S.; Santana, A. (orgs), Mulheres na física, casos históricos, panorama e perspectivas, São Paulo, Editora Livraria da Física, 2015.

    8. Melo, H. P.; Thomé, D. Mulheres no poder, histórias, ideias, indicadores, Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 2018.

    9. Tabak, F. O laboratório de Pandora - Estudos sobre a ciência no feminino, Rio de Janeiro, Editora Garamond Universitária, 2002.

    10. SBPC, Cientistas do Brasil - depoimentos, São Paulo, SBPC, 1998.

    11. Leiam os artigos de Dantes e Chassot, 2015; Endler, 2015; Phys, 2015 sobre Sonja Ashauer, Elisa Frota-Pessoa e Neuza Amato em [7].

    12. Schiebinger, L. O feminismo - mudou a ciência?, Bauru, SP, Edusc, 2001.

    13. Ver [8], caps 1, 2 e 3.

    14. Junghans, M. "Emilia Snethlage (1868-1929): o heroísmo como estratégia de legitimação da ciência", artigo apresentado no VIII Congresso Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Gênero (Cadernos de Resumos), Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 05 a 09 de abril de 2010.

    15. O físico Albert Einstein fez uma viagem à América do Sul visitando Brasil, Argentina e Uruguai, de março a maio de 1925. Esteve no Rio de Janeiro de 4 a 12 de maio, proferindo palestras e entrevistas. Ver matéria na revista Ciência Hoje, vol.21, nº 124, set/out de 1996, SBPC. A cientista Marie Curie visitou o Brasil de 15 de julho a 28 de agosto de 1926, proferindo palestras no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte, sendo recebida com entusiamos pelo movimento sufragista brasileiro. Ver [23].

    16. Blay, E.; Lang, A. B. B. S. G. Mulheres na USP, horizontes que se abrem, São Paulo, USP/Humanitas, 2004.

    17. Algumas reuniões anuais da SBPC dos anos 1970 foram particularmente pioneiras na temática da desigualdade das relações de gênero. Na 29ª reunião, realizada em São Paulo, em 1977, a autora, em parceria com Fanny Tabak e Berenice Cavalcante, apresentou uma pesquisa sobre as mulheres na política. Na reunião anual de 1980, no Rio de Janeiro, foi realizada uma mesa-redonda sobre o feminismo e a política com Branca Moreira Alves, Hildete Pereira de Melo e uma terceira acadêmica feminista (que não recordo o nome). A SBPC, ainda no regime de exceção, mostrava-se um espaço acessível às bandeiras do feminismo.

    18. Melo, H. P.; Lastres, H. M. M. "Brasil, gênero, ciência, tecnologia e inovação - um olhar feminino", Unesco/OEI, Relatório de Pesquisa do Projeto Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Gênero (GenTec), 2003.

    19. Por exemplo, como não conseguíamos descobrir a data de nascimento da química Blanka Wladislaw, ligamos para a USP. A telefonista passou a ligação para seu laboratório e atendeu um assistente. Ele disse que achava que ela havia nascido em 3 de junho 1917, e que, para minha surpresa, ela estava no laboratório e eu poderia perguntar diretamente para ela. Estávamos no ano de 2005, a professora tinha 88 anos. Veio ao telefone, meio surda, mas respondeu às minhas indagações e falou de seu trabalho. Faleceu em São Paulo, em 26 de janeiro de 2012.

    20. Melo, H. P.; Casemiro, M. C. P. "A ciência no feminino: uma análise da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciência", Revista do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Fundação Osvaldo Cruz, Uerj, vol. 11, set/dez, 2003.

    21. Elza Furtado Gomide faleceu em São Paulo, no dia 23 de outubro de 2013, aos 88 anos.

    22. A atualização foi feita por Hildete Pereira de Melo, assessora do gabinete da ministra da SPM/PR, e Maria Lucia Braga, técnica do CNPq.

    23. Braga, F. J. S. "Ano Internacional da Química 2011: Marie Curie", Revista Polonicus, Ano II, nº 2, jul/dez de 2011.