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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000300014 

    ARTIGOS
    SBPC 70 ANOS

     

    Interação universidade-empresa: relato de uma experiência

     

     

    Elson Longo

    Professor emérito e titular do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), docente vinculado à pós-graduação do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp) e professor honoris causa da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É diretor do Centro para o Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF/Fapesp). Membro da Academia Internacional de Cerâmica (World Academy of Ceramics), da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC)

     

     

    Há 30 anos, três professores - José Arana Varela, Luís Bulhões e eu – tivemos a ideia de criar um laboratório interdisciplinar, sendo os professores Varela e Bulhões físicos, e eu, químico. A ideia surgiu porque tínhamos conseguido equipamentos por meio de auxílios de agências financiadoras, mas não havia espaço suficiente em nossos respectivos departamentos para alocá-los. Os mesmos estavam, até então, guardados em caixotes.

    Havia a nossa frente um enorme desafio: conseguir apoio para a construção do espaço físico. Entramos em contato com a Companhia Brasileira de Metais e Metalurgia (CBMM), empresa que tinha interesse que o futuro laboratório desenvolvesse alguns produtos que visassem seus objetivos. Desta sorte, logramos seu apoio para a construção de um prédio na Universidade Federal de São Paulo (UFSCar), o Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec). Aos poucos, fomos agregando vários alunos interessados em participar das pesquisas desenvolvidas no novo laboratório. Os primeiros foram Edson Leite e Carlos Paskocimas. Passados esses 30 anos, centenas de estudantes já realizaram seus estudos no Liec, participando ativamente das pesquisas e desenvolvimento com a indústria nacional.

    Afim de ordenar este trabalho, vou abordar as atividades desenvolvidas no Liec ao longo desse período. Antes, é preciso frisar que nossas atividades não são pautadas por hierarquizações. Não se trata de conceber uma atividade mais ou menos importante do que outra. Ressalto também que o trabalho desenvolvido foi e continua sendo coletivo e não somente de um professor específico.

    Primeiramente, as atividades docentes: seja por meio de aulas, cursos ou orientações, a formação acadêmica inclui alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Recebemos estudantes de diversos cursos da UFSCar, assim como de outras instituições da cidade, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e de outros estados, sem contar os alunos de outros países. Com essa prática, reforçase o caráter interdisciplinar do projeto inicial.

    Em segundo lugar, as atividades de pesquisa. Entendemos a investigação científica como um momento intermediário entre dois campos: o experimental acadêmico e a interação com a indústria. Ambos se alimentam mutuamente. Não se acham separados. Assim, os vários temas de pesquisa foram se desenvolvendo e também mudando a partir das reflexões teóricas e dos contatos com várias empresas. Deve-se ressaltar que não se trata de produção de um conhecimento como reflexo das necessidades empresarias. Ao contrário, tais necessidades suscitaram novos modelos interpretativos e diálogos com outras teorias.

    Enumero, em seguida, as principais interações com empresas, além daquela com a CBMM, que resultaram na produção de novos conhecimentos.

     

    COMPANHIA SIDERÚRGICA NACIONAL (CSN)

    Os primeiros estudos se deram quando a empresa ainda era estatal. Os contatos iniciais foram estabelecidos pela empresa com os pesquisadores Sidney Nascimento e Oscar Rosa Marques, a fim de solucionar os problemas do queimador cerâmico, que estava apresentando corrosão devido à interação do óxido de ferro (FeO) com a sílica do refratário, formando silicato de ferro. A atmosfera rica em FeO foi neutralizada por filtração do ar. Com a eliminação da corrosão no queimador cerâmico a vida média do equipamento teve um aumento exponencial. A solução desse problema levou a equipe a pesquisar e a resolver problemas do alto forno, canal de corrida, carro torpedo, conversor - em síntese, todos os equipamentos da CSN. Atualmente, Fernando Vernilli Junior, da USP, está à frente dos projetos de pesquisa nessa área, principalmente em meio ambiente, transformando rejeitos em produtos de alto valor agregado.

    Ao longo desses anos, essa interação resultou em mais de 100 milhões de dólares de retorno para a empresa. Por intermédio da interação com a CSN, houve a ampliação do prédio do Liec, com financiamento do Banco do Brasil, compra e manutenção dos equipamentos, bolsas de estudo de iniciação científica, mestrado e doutorado.

     

    3M DO BRASIL

    Como a pesquisa básica nos anos 1990 era, sobretudo, com varistores, desenvolvemos com a 3M do Brasil a implantação de uma fábrica de varistor em Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, atividade que foi dirigida por Edson Leite. Essa colaboração nos permitiu abrir outra subárea de pesquisa, por meio da qual produzimos o primeiro varistor à base de óxido de estanho. Dessa empreitada, participou também Sidnei Pianaro, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná.

    Paralelamente, desenvolvíamos pesquisas em cerâmica estrutural à base de óxido de zircônia estabilizado, com terras raras e metais alcalinos terrosos. No decorrer dessa investigação, ocorreu o primeiro contato com Juan Andres, docente da Universidade Jaume I de Castellon, da Espanha. A colaboração com ele e seu grupo de pesquisa já dura 29 anos. Vale ressaltar que os aportes teóricos trazidos pelo professor Juan Andres enriqueceram sobejamente nossas reflexões, permitindo a criação de novos campos interpretativos dos resultados experimentais obtidos dos variados projetos implementados. Desse modo, ficou demonstrado que a teoria pode, além de dar apoio à pesquisa, solucionar problemas ligados a empresas cerâmicas.

     

    WHITE MARTINS

    Já no final de 1990, com a White Martins Gases Industriais, por intermédio dos engenheiros Tulio Mendonça e Abilio Tasca, tivemos o desafio de equacionar o problema de coração negro em revestimento cerâmico, com a utilização de oxigênio. Depois de dois anos de pesquisas, o problema foi solucionado, gerando patentes nacionais e internacionais.

     

    PARCERIA COM ARTESÃOS

    Em 1995, foi criado o Programa Comunidade Solidária, vinculado diretamente à Casa Civil da Presidência da República, presidido pela professora e antropóloga Ruth Cardoso. O programa fazia parte da Rede de Proteção Social. Fomos convidados pela equipe de execução do projeto a levar o conhecimento técnico para artesãos de cerâmica artística em nove estados brasileiros. Com o intuito de fornecer subsídios para melhorar a qualidade dos produtos dos artesãos, sem no entanto interferir na concepção artística dos mesmos, compilamos as informações em uma publicação denominada Cartilha do artesão. Foram dados cursos aos artesãos que auxiliaram na estruturação de pequenas empresas a partir de tecnologias modernas. Contamos com a participação de alunos de mestrado e de doutorado do Liec para a realização dos contatos com os artesãos em várias comunidades do Brasil.

    Em razão dos resultados positivos dessa experiência, por meio de parcerias com os ceramistas de Porto Ferreira e Pedreira, ambas cidades do estado de São Paulo, propusemos, para melhorar a qualidade da massa cerâmica, a transformação dos fornos elétricos em fornos à gás, projeto este que contou com a participação de Carlos Paskocimas.

    No contexto das investigações relacionadas à cerâmica tradicional, participamos do criativo projeto de Otávio Paschoal, que revolucionou a produção de revestimento cerâmico em Santa Gertrudes, também no estado de São Paulo, transformando a região na maior produtora brasileira e entre as melhores do mundo cerâmico.

     

    CEPIDS

    Em 2000, o Liec, após acirrada concorrência com pesquisadores de várias instituições do estado de São Paulo, foi contemplado com o projeto Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), passando a se denominar Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC-Liec). Com isso, houve a garantia de 11 anos de financiamento contínuo para pesquisas, inovação tecnológica e difusão do conhecimento. Esse foi um momento muito importante para o Liec, uma verdadeira inflexão na trajetória de nossas investigações. A partir daí, houve um crescimento exponencial nas pesquisas e inovação e na interação com as empresas, possibilitando o surgimento da área de difusão do conhecimento, ampliando enormemente as interações científicas nacionais e internacionais do Liec.

    Naquele momento, o Liec iniciou uma profunda modificação nas pesquisas de semicondutores cerâmicos, utilizando o método Pechini. Houve um crescimento significativo nas pesquisas em materiais sensores a partir de partículas nanométricas.

    Esse estudo resultou no desenvolvimento de um sensor a base de óxido de cério, dopado com lantânio para detectar monóxido de carbono. O sensor será produzido por uma empresa Argentina, em função da parceria com Miguel Ponce, professor da Universidade de Mar de Plata, e Alexandre Simões, da Unesp.

    Com o objetivo de transformar o conhecimento científico em ciência aplicada, aumentando, assim, as possibilidades de nossos alunos se inserirem no mercado, o Liec iniciou o apoio a empresas spin-off, ou seja, aquelas que surgiram a partir das pesquisas realizadas no laboratório. Este foi um marco na inovação apoiado pelo Cepid/Fapesp.

    Nesse contexto, foram criadas duas empresas: a Nanox, especializada em nanopartículas bactericidas utilizadas pela indústria de tapetes, secadores de cabelo e embalagem de leite; e a CosmoScience, especializada em caracterização de cosméticos para Natura, Unilever, Boticário etc.

    Em 2013, o Liec, juntamente com grupos de diferentes universidades paulistas, foi novamente contemplado com o projeto Cepid da Fapesp, passando a ser denominado Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDFM). As linhas de pesquisa inseridas no CDMF/Cepid abarcam três grandes áreas: energia, meio ambiente e saúde. No estágio atual, a ênfase teórico/metodológica recai sobre

    o método hidrotermal microondas para obtenção de nanopartículas semicondutoras, havendo um controle rígido da cinética de reação e morfologia (teórico-experimental).

    Por outro lado, houve uma evolução crescente na difusão do conhecimento e inovação, com a participação de Antonio Carlos Hernandes (USP) e Adilson de Oliveira (UFSCar), que criaram novas formas de interação com a sociedade, por meio da utilização das mídias digitais e também de contatos com as escolas da rede pública do estado de São Paulo. Atualmente, o CDMF possui uma ampla gama de projetos de difusão, participando ativamente das redes sociais, da elaboração de vídeos científicos para os diferentes níveis de ensino, jogos educativos, programas de rádio e televisão educativa.

    No novo centro, pesquisadores do Liec estruturaram duas empresas spin-off que estão se projetando de modo extremamente positivo: a NChemi Nanomaterials, especializada em nanomateriais; e a Katléia, especialista em cosméticos para cabelo. Ambas estão sendo apoiadas pela Fapesp e pelo CDMF por meio de programas de incentivo à inovação.

    Deve-se ressaltar que nos últimos anos as pesquisas evoluíram em qualidade/quantidade, colocando os professores do Liec e participantes do CDMF entre os mais produtivos do país, e com posição privilegiada no contexto internacional. O modus operandi do Liec procurou ser caracterizado pela cooperação entre todos os participantes, professores e alunos, do país e do exterior, para criar e inovar.

    Vale dizer que toda essa projeção foi consolidada graças ao papel fundamental dos órgãos financiadores como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finesp) e, sobretudo, a Fapesp, por meio do programa de financiamento de longa duração dos Cepids; e também, pela interação com as empresas nacionais e internacionais.

    Não poderia deixar de transmitir algumas palavras às futuras gerações que, seguramente, darão continuidade ao nosso trabalho. Que vocês leitores não apenas deem prosseguimento ao que aí está, como também plantem novas sementes para obterem outras colheitas. Esta brevíssima história aqui relatada é uma história de muito trabalho, dedicação e perseverança. Ela diz respeito a um passado; no entanto, nenhum futuro haverá sem o conhecimento produzido anteriormente. Para a realização de qualquer projeto, é necessário o conhecimento do passado, ainda que ele deva ser passado a limpo.

    Nessa caminhada houve muitas dificuldades, desatinos, tropeços e pedras no caminho. Devo ressaltar, no entanto, que não nos tomem como modelos, abstratos e fixos. Criem seus próprios, reinventem-se! Produzam seus próprios faróis. Orientem-se por eles, partindo do presente, olhando para o passado em direção ao futuro, que é o tempo que nos aguarda.