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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.3 São Paulo jul./set. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000300015 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    O Hobbit da Ilha de Flores: implicações para a evolução humana

     

     

    Walter NevesI; José Alexandre Felizola Diniz-FilhoII

    IProfessor titular aposentado do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), onde implantou e coordena o Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos, único na América Latina
    IIProfessor titular do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás, pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Coordena atualmente o INCT em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade

     

     

    Nos últimos quinze anos, o campo da paleoantropologia testemunhou várias descobertas impactantes. Todas elas tiveram grande influência sobre nossa compreensão do percurso evolutivo da linhagem hominínia, da qual fazem parte nós, o Homo sapiens, e nossos ancestrais bípedes. Entretanto, uma das mais celebradas foi a descoberta do Homo floresiensis, na caverna de Liang Bua, na Ilha de Flores, Indonésia, em 2003, por uma equipe de paleontólogos e arqueólogos australianos e indonésios (Figuras 1, 2). O artigo original foi publicado na revista Nature em outubro de 2004, liderado por Peter Brown e Mike Morwood, da Universidade de New England, em Armidale, Austrália [1].

     

     

     


    Figura 2 - Clique para ampliar

     

    A descoberta dessa espécie ganhou grande notoriedade na imprensa internacional, dadas as peculiaridades do esqueleto em si, bem como a cronologia desses fósseis. Embora fragmentos de vários indivíduos tenham sido ali encontrados em uma mesma camada estratigráfica, apenas um indivíduo, quase completo, denominado LB1, permitiu aos especialistas fazerem inferências mais contundentes sobre esses novos fósseis da Ilha de Flores.

    A análise do espécime LB1 permitiu fazer duas grandes inferências sobre a população da qual fazia parte: uma estatura de aproximadamente um metro e uma capacidade craniana por volta de 420 cm3, quase a mesma de um chimpanzé. Rapidamente essa nova espécie foi apelidada de "hobbit", uma referência aos famosos personagens da saga "Senhor dos Anéis", de J. R. R. Tolkien. Nada disso seria uma grande surpresa se esse material fosse encontrado na África e datado por volta de 3 milhões de anos, já que nossos ancestrais dessa época eram de fato pequenos e exibiam cérebros na faixa dos 450 cm3(Figura 3). A grande surpresa veio com as datações desses fósseis: LB1, assim como os demais fragmentos encontrados em Liang Bua, foram datados inicialmente entre 30 e 14 mil anos atrás [2].

     

     

    Como explicar a existência em Flores, na Ásia, de uma espécie tão primitiva, em um momento em que o homem moderno já dominava todo o planeta? Para tornar o cenário ainda mais complexo, os esqueletos de Liang Bua foram encontrados associados a uma indústria de pedra lascada avançada e parecem ter sido exímios caçadores, características essas típicas do Homo sapiens, cujo tamanho cerebral é maior do que 1300 cm3. Em outras palavras, como um hominínio com apenas 420 cm3de massa cerebral poderia exibir comportamentos tão avançados?

    Há também uma outra informação que complica esse cenário: como esses hominínios teriam chegado à Ilha de Flores? Aqui cabe uma digressão. Várias ilhas da Indonésia já estiveram ligadas ao sudeste asiático por vias terrestres, em vários momentos em que o nível dos oceanos era mais baixo do que o atual. Esse foi o caso, por exemplo, de Java, Borneo e Sumatra. Mas não Flores! Em outras palavras, a população de Liang Bua apresentava também um outro comportamento avançado: dispunha de algum meio de navegação, ainda que primitivo. Novamente, como conceber que uma criatura com meros 420 cm3de cérebro podia ter uma tecnologia tão avançada? A não ser que ali tenha chegado através de ilhas flutuantes, como querem alguns.

    Uma alternativa que tem sido explorada por vários autores, desde a descoberta do LB1, é que ele seria um esqueleto patológico e que, portanto, não representaria a população local. Várias doenças genéticas podem gerar nanismo e microcefalia nos seres humanos, tais como síndrome de Down e de Laron ou cretinismo endêmico myxoedematoso (patologia desencadeada por hipotireoidismo crônico). Os mais ferrenhos defensores da hipótese "patológica" tem sido Robert Eckhardt, da Penn State University e Maciej Henneberg, da Universidade de Adelaide. Em um livro e vários artigos, esses paleoantropólogos defendem que o espécime LB1 sofria de síndrome de Down e que, portanto, não seria uma nova espécie, mas simplesmente um Homo sapiens doente [3].

    Duas descobertas recentes trabalham, contudo, contra a hipótese "patológica". Primeiramente, os níveis estratigráficos nos quais o esqueleto LB1 se inseria foram redatados para quase 100 mil anos, ou seja, muito antes do Homo sapiens chegar ao sudeste asiático [4]. Segundo, porque em 2016, Gerrit van den Bergh, da Universidade de Wollogon, Austrália, e colaboradores, reportaram a descoberta, em Mata Menge, também na Ilha de Flores, de restos esqueletais similares ao LB1, mas datados em cerca de 700 mil anos [5]. Contudo, essas novas descobertas ainda devem ser vistas com cautela, já que o material encontrado na nova caverna se restringe apenas a um fragmento de mandíbula e alguns dentes.

    Assumindo-se que de fato os fósseis encontrados em Liang Bua e Mata Menge representam uma nova espécie válida, Homo floresiensis, como explicar seu tamanho corporal reduzido e seu cérebro diminuto? Todos parecem apostar no chamado "efeito ilhas" para explicar o padrão morfológico encontrado em Flores. De fato, quando várias espécies de mamíferos de grande porte colonizaram ilhas, com territórios e recursos finitos, evoluíram para novas espécies ou subespécies de tamanho mais reduzido (ao passo que mamíferos de pequeno porte, como roedores, tendem a aumentar seu tamanho corpóreo) [6]. Alguns estudos mostraram que esse padrão também é válido para primatas modernos [7, 8], sendo importante também ressaltar que, junto ao esqueleto LB1, foram encontrados restos de mastodontes pigmeus do gênero Stegodon, muito provavelmente caçados pelos próprios "hobbits" da região [9].

    Se a hipótese do "efeito das ilhas" estiver correta, e tudo parece indicar que sim, ainda resta uma pergunta a ser respondida: qual teria sido o hominínio que chegou a Flores há pelo menos 700 mil anos sobre o qual a seleção natural favoreceu tamanhos e cérebros cada vez menores?

    Há, pelo menos, três hipóteses sendo consideradas:

    1. O Homo floresiensis seria descendente do Homo erectus.

    2. O Homo floresiensis seria descendente do Homo habilis.

    3. O Homo floresiensis seria descendente de alguma forma de australopitecínio.

    Não queremos aqui entrar em detalhes anatômicos, que seriam incompreensíveis para um público leigo (e, às vezes, até mesmo para especialistas), mas vamos sublinhar alguns pontos nevrálgicos para cada hipótese, pesando os "prós" e os "contras" de cada uma delas.

    Fala a favor da primeira hipótese o fato que a Ásia, incluindo o sudeste do continente e a Indonésia, estava ocupada por populações de Homo erectus desde pelo menos 1.6 milhão de anos. Além disso, essa espécie sobreviveu até tardiamente na região, com alguns fósseis de Java datados por volta de 50 mil anos. Muitos estudos mostram também que várias características morfológicas do LB1 (mas não todas) são de fato mais semelhantes a Homo erectus [10]. Fala contra a hipótese 1 o fato que o Homo erectus já tinha uma capacidade craniana por volta de 900 cm3e uma estatura próxima à nossa. Suas proporções corporais também já eram similares às nossas quando H. floresiensis ocupou a Ilha de Flores. A pergunta que se coloca, portanto, é: quantas gerações e quanta força seletiva seriam necessárias para "reduzir" um Homo erectus a um Homo foresiensis?

    Fala a favor da segunda hipótese o fato que Homo habilis tinha uma estatura mais similar à dos hobbits e uma capacidade craniana também pequena, cerca de 600 cm3. Análises filogenéticas recentes, baseadas em diversas características morfológicas, também sugerem maior afinidade com Homo habilis [11, 12]. Além disso, seria muito mais fácil imaginar o "efeito das ilhas" agindo sobre uma criatura já pequena como H. habilis do que sobre uma criatura maior como H. erectus para produzir um H. floresiensis, principalmente quando pensamos no cérebro reduzido. Por outro lado, fala contra essa hipótese o fato que pelo menos até o momento não foram encontrados restos do Homo habilis fora da África, onde surgiu por volta de 2.3, quiçá 2.8 milhões de anos. As evidências mais antigas de hominínios fora do continente africano datam de 1.8 milhões de anos, no Cáucaso, e seriam em princípio mais próximas de Homo erectus.

    A terceira hipótese é de longe a mais improvável. Assim como no caso do Homo habilis, não há a mais remota evidência de que os australopitecínios tenham habitado fora do continente africano. Mas há algo no corpo dos Homo floresiensis que, à primeira vista, parece remetê-los aos australopitecínios: braços longos e pernas curtas! Essas proporções corporais são, na África, típicas dos primeiros bípedes, que ainda associavam, com eficiência, a marcha bípede no solo com grande capacidade de subir em árvores. A bipedia estritamente terrestre, como a nossa (braços curtos e pernas longas), surgiu apenas há 2 milhões de anos, com o início da jornada do gênero Homo. Portanto, a pergunta que se coloca é a seguinte: se os hobbits vieram de algum representante mais antigo do gênero Homo (habilis ou erectus), por que teriam revertido suas proporções corporais àquelas de um australopitecínio? Como pode ser visto, a pendenga sobre os hobbits ainda está longe de ser esclarecida.

    Recentemente, um grupo de pesquisa liderado por José Alexandre Felizola Diniz-Filho, que também assina este artigo, lançou novas luzes sobre a questão [13]. Utilizando modelos complexos de genética de populações esse grupo mostrou que, de fato, a melhor maneira de explicar o encolhimento do Homo floresiensis é mesmo apelar para o efeito ilha e assumir que seu ancestral foi mesmo um Homo erectus indonésio. Entretanto, o mesmo grupo de pesquisas mostrou que o encolhimento do corpo não explica, por si só, o minúsculo cérebro dos hobbits. Em outras palavras, esse hominínio tinha uma capacidade cerebral menor do que aquilo que seria esperado para seu tamanho corporal [14]. Ou seja, houve forças seletivas agindo diretamente sobre o tamanho de cérebro, no sentido de diminuí-lo mais que o corpo. Intuitivamente isso não faz sentido, porque somos um grupo evolutivo que depende de grande cognição para sobreviver. Entretanto, temos que lembrar que o cérebro nos primatas, e nos hominínios em particular, é um órgão que demanda grande quantidade de energia, respondendo por algo em torno de 20% do nosso gasto metabólico em repouso. Como as explicações evolutivas para o efeito das ilhas está exatamente na seleção natural favorecendo menor gasto energético por causa de recursos mais escassos, uma forte redução no cérebro pode fazer sentido. Mas, de qualquer modo, a diminuição do cérebro teria que ser compensada por uma complexa reorganização interna da circuitaria do cérebro, preservando assim as capacidades cognitivas dos hobbits [15].

    De qualquer modo, a descoberta de Homo floresiensis nos mostra que, apesar de todos os avanços da paleoantropologia nos últimos 20 anos, ainda há muito a ser descoberto, e que a variedade das formas humanas e os processos ecológicos e evolutivos aos quais estamos sujeitos podem ser muito mais complexos do que suspeitamos.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Brown, P. et al.Nature, 431, 1055-1061. 2004.

    2. Morwood, M.; Oosterzee, P v. A new human. Washington: Smithsonian. 2007

    3. Ekhardt, R.B. et al. PNAS, 111, 11961-11966. 2014.

    4. Brumm, A. et al. 2016. Nature 534, 249-253. 2016.

    5. van den Bergh, G.D. et al. Nature, 534, 245-248. 2016.

    6. Lomolino, M.V. et al.J. Biogeogr., 40, 1427-1439. 2013.

    7. Bromham, L.; Cardillo, M. Biol. Lett., 3, 398-400. 2007.

    8. Montgomery, S.H. J. Hum. Evol., 65, 750-760. 2013.

    9. Meijer, H.J.M. et al.J. Biogeogr. 37, 995-1006. 2010.

    10. Kaifu, Y. et al. J. Hum Evol., 61, 644-682. 2011.

    11. Dembo, M. et al.Proc. R. Soc. B., 282, 2150943. 2015.

    12. Argue et al. J. Hum Evol., 107, 107-133. 2017

    13. Diniz-Filho, J.A.F.; Raia, P. Proc. R. Soc. B., 284: 20171065. 2017

    14. Weston, E.M.; Lister, A.M. Nature, 459, 85-88. 2009.

    15. Falk, D. et al. J. Hum. Evol., 57, 597-607. 2009.