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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.3 São Paulo jul./sept. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000300018 

    CULTURA
    RESENHA

     

    Diálogo controverso e atual sobre o conhecimento

     

     

    Raquel Almeida

     

     

    Existe uma lógica do conhecimento, da invenção, da descoberta científica? É em torno de tão controverso tema, o da teoria do conhecimento, que o educador Anísio Teixeira e o médico Maurício Rocha e Silva travaram um elegante e duro embate por meio de correspondência trocada entre dezembro de 1965 e abril de 1967. A batalha apaixonada de conceitos e posições contrárias dos pensadores acerca dos processos (lógicos ou nada lógicos) que levam à construção do conhecimento científico aconteceu em pleno regime militar brasileiro e seus atos institucionais. As cartas foram organizadas em livro, editado primeiramente em 1968, e republicado em 2007, pela editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quase 40 anos depois. E, mesmo após tanto tempo, é possível identificar ali a contemporaneidade da discussão que ainda hoje divide a ideia do conhecimento entre ciências humanas e exatas, arte e ciência, e que funciona como obstáculo à produção e ao acesso a novos conhecimentos científicos.

    Curiosamente intitulado Diálogo sobre a lógica do pensamento, o que menos se percebe ao longo das 121 páginas é uma conversa entre os dois pensadores. O exercício da dialética, que parte do reconhecimento da posição adversa, não acontece ali. A interação que se apresenta resulta de monólogos construídos para convencer e persuadir o receptor, sempre sustentados em argumentações sólidas e referendadas em outros estudos.

    Para enriquecer a percepção sobre a controvérsia estabelecida, é bom termos em perspectiva também os elos existentes entre os dois autores no ambiente da ciência brasileira no período em que se deu a troca de ideias. Anísio Teixeira, filósofo e educador, defensor das ideias de educação integral, pública e democrática, havia sido fundador e vice-reitor da Universidade de Brasília (UnB), assim como fez parte da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A mesma SBPC que apoiou o projeto de criação da UNB e que teve Rocha e Silva entre seus fundadores.

    É Teixeira quem desfere a crítica inicial e parece levantar o muro entre cientistas e filósofos já na primeira carta, escrita para comentar o então recém lançado livro de Rocha e Silva, Lógica da invenção. Ao mesmo tempo em que enaltece a contribuição da obra para abrir um caminho de elaboração de uma ciência comum, de uma só cultura de base científica, o educador destaca as dificuldades do médico "que, como cientista, parte de uma real vivência do método científico, sobretudo no campo biológico, para as especulações e análises do mundo". Reprova com veemência a tentativa do biólogo de identificar um denominador comum entre o processo de criação artística com o processo de criação científica.

    Enquanto Rocha e Silva aproxima e defende o progresso existente nos dois campos, Teixeira combate a ideia de acumulação construtiva nas artes. Para o educador, que se diz chocado e desconcertado com tais considerações, o médico "deforma a natureza do real progresso que se opera no campo da ciência em contraste com o da arte". "A arte é uma forma de sentir o universo, a ciência uma forma de conhecer o universo. As relações entre os dois mundos consistem, sobretudo, em que o novo conhecimento produz uma nova arte, uma nova forma de sentir o universo (...). A arte não é uma acumulação de esforços em marcha permanente, como é a ciência, mas sempre, e em cada momento, algo de único, podendo ser perfeita ou imperfeita em cada caso ou em cada tempo, mas não propriamente progressiva", escreveu Teixeira, que conclui a carta saudando o colega "cientista doublé de homem das letras".

    Rocha e Silva rebate com uma lista de exemplos de como as artes plásticas também apresentam um progresso acumulado, da Renascença até os modernistas. E explica que seu principal objetivo com os ensaios fora compreender o mecanismo da criação original na ciência e, eventualmente, na arte. Ressalta que o educador está certo ao pontuar que ciência é poder, se for considerada como "um acervo de fatos verificados e que podem ser utilizados pela tecnologia". Mas lembra que há um momento, uma fase muitas vezes nebulosa, da ciência básica ou pura, em que a ciência ainda não configura um poder e onde o trabalho do cientista se aproxima do trabalho do artista.

    Assim, os dois autores seguem no impasse da existência da lógica da invenção ou da investigação científica, o que aparenta, em alguns momentos do debate, significar mais um desajuste de nomenclaturas. É ao longo dessa disputa de ideias que os intelectuais se encontram em um ponto: a visão de que a inovação, a invenção, a novidade acontece quando as regras deixam de ser seguidas e são rompidas.

    E, ainda que não apareça de forma muito explícita no início do "diálogo", a querela entre os intelectuais traz à tona a visão mais importante para o nosso debate contemporâneo: a existência de dois mundos, de duas culturas, a dos literatos e a dos cientistas. Para Maurício Rocha e Silva, esses mundos estariam fadados a viver separados, especialmente por operarem em lógicas diversas.

    É neste ponto que se revela porque Anísio Teixeira é tão incisivo em suas críticas e o que de fato tanto o desconcerta e incomoda na visão do médico: a liberdade literária usada pelo cientista, que reforça a existência dessas duas visões de mundo, de duas culturas e lógicas de funcionamento. Para o educador, esse ambiente é o que precisa ser superado e unificado para que todos os homens possam compreender as ciências, inclusive os filósofos. O caminho proposto por Teixeira é o de que a educação, formal ou não, aproxime esses mundos com uma lógica da experiência, da investigação e da descoberta para vencer "dualismos e conflitos que vêm criando e nutrindo a injustificada Babel moderna". Para criar, inovar, inventar é preciso conhecer. Mais de cinco décadas depois é evidente o quanto esse diálogo segue pertinente e exige dedicação, participação e responsabilidade de todos nós, cientistas, filósofos, educadores e intelectuais.