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Ciência e Cultura
versão On-line ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.70 no.3 São Paulo jul./set. 2018
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000300019
CULTURA
POESIA
Poesia
Fernando Paixão
1.
A lua é da noite
os peixes das águas.
Só as palavras são
do homem.
Vagas que preenchem
o declive dos vazios.
(de Fogo dos rios, Editora Brasiliense, 1989)
AZULEJISTA
Superfície descarnada para o sono
perde pedaço a pedaço
pelas mãos do azulejista.
A parede crua desaparece lenta
submetida ao capricho
de uma pele de esmalte e infinito.
E a claridade
antes repousando em poros
sobre que rebrilhos fluirá?
Ausente. Ele maneja massa e quadrados.
Constrói o azul.
(de 25 azulejos, Editora Iluminuras, 1994)
ANTIGAMENTE
Nas guerras de antigamente
os rios seguiam as batalhas
com o seu bordão triste.
Soldados feridos e curvados
vinham morrer na quietude
das margens acolhedoras.
O correr das águas acompanhava
o derradeiro baque. Havia
o encontro heroico do sangue
com o nascer da lua no horizonte.
Cada guerreiro valia por um mito
sugerido nas linhas do céu.
O embalar do rio lhe servia de manto
(ah, os ossos entregues ao chão)
nas guerras de antigamente.
6.
A noite é uma fruta costumeira
que sai das mãos maternas.
Aos poucos aparece crescida
nos hábitos da casa.
Certa vez entrou pela janela.
A passos largos distendeu
em vermelho tinto
um sem-número de cavernas.
Mas terminou resignada
igual às outras:
pálpebra escura e grave
sobre as casas.
(de Poeira, Editora 34, 2001)
CANTIGA D'AMIGA
Ah, tua chegada ao meu corpo os dedos
são remos aéreos em bordo cego.
Roçam-me o ventre num brindar de aedo
e breve me vencem os teus chamegos.
De que me vale dizer ao desejo:
não!? Se a própria mão escreve que sim
e na pele recebo o teu cortejo
sinto-me uma cortesã carmesim.
Tuas unhas. Louca. Quero ser loba.
Inteiro bardo no centro das curvas
ocupa-me a lua no vão das pernas.
Quero-te em mim erguido em asas:
voooooooooooa!
E que ao venceres a distância pouca
quero ser loba. Tuas unhas. Louca.
(de Porcelana invisível, Editora CosacNaif, 2015)
Fernando Paixão nasceu em Portugal e vive em São Paulo. De início, teve longa carreira como editor profissional; nessa área, organizou Momentos do livro no Brasil (1995, Prêmio Jabuti). Em 2009, ingressou na docência acadêmica e, desde então, leciona literatura no Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo. No ensaísmo, entre vários livros, publicou Arte da pequena reflexão (Iluminuras, 2014), sobre o gênero do poema em prosa. Dedica-se também à poesia, com 6 livros publicados, desde 1980.