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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.70 no.4 São Paulo out./dez. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000400002 

    TENDÊNCIAS

     

    A ciência em movimento

     

     

    José Eli da Veiga

    Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP) e autor de Amor à ciência (Senac, 2017), o mais recente de seus 27 livros. Mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br

     

     

    Um martelo surge do encaixe de duas peças bem distintas, cabeça e cabo. É dessa interação que sai algo bem mais proveitoso, a função intrínseca à ferramenta, que nenhum de seus dois componentes pode executar com um mínimo de eficiência. É dessa imprescindível união que emerge tal propriedade.

    De maneira semelhante, uma molécula de água, com seus dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, jamais dará a alguém a sensação de umidade. Mas alguns bilhões dessas moléculas em qualquer minúsculo recipiente permitem que se experimente a sensação do que o úmido quer dizer.

    A umidade emerge de manhosas interações entre moléculas de água em determinado intervalo de temperaturas. Se a temperatura diminuir, as moléculas interagirão de outro modo, tendendo a formar o cristal de gelo, com emergência da dureza. Se for elevada, será a vez do vapor.

    O que mais há de comum nesses exemplos é o fenômeno da "emergência", extremamente desafiador em termos teóricos.

    Seu entendimento até pode parecer bem simples: novidade qualitativa resultante da interação entre partes de um conjunto, mas ausente em cada uma delas. Só que este é um daqueles casos em que as aparências se revelam bem enganadoras. Para se dar conta, basta uma espiada em qualquer dicionário ou enciclopédia de filosofia. É intrincadíssimo o debate sobre seus possíveis significados. Vem de 1875, teve um eclipse entre 1930 e 1950, e desde então ficou cada vez mais cabeludo.

     

    COMPLEXIDADES

    Tamanho imbróglio filosófico em nada atrapalhou, contudo, as contribuições do conceito de emergência para avanços científicos nos âmbitos da física, da biologia, da neurologia e da matemática. Não é imprescindível que se consiga alcançar as altitudes ontológicas da noção de emergência para que tais proezas científicas ocorram e possam ser entendidas. Basta que pragmaticamente se adote sua versão maliciosamente taxada de "fraca", por se restringir à epistemologia.

    É bem verdade que epistemologia tem mais de um sentido. Sinônimo de filosofia da ciência para os que preferem a inclinação francesa em priorizar a abordagem histórica em estudos do conhecimento científico em vez da tradição anglo-saxã, que sempre deu muito mais ênfase à lógica, mesmo depois do terremoto provocado pela obra do físico estadunidense Thomas Kuhn (1922-1996). E ainda há aqueles para quem seria epistemológica qualquer reflexão sobre o conhecimento em geral, inclusive o poético ou até mesmo o religioso.

    Mas nada disso oferece sério obstáculo. Por mais que essas três variantes da epistemologia possam gerar controvérsias sobre a dimensão dita "fraca" da ideia de emergência, há consenso sobre sua importância para o que costuma ser chamado de teoria da complexidade, conhecimento complexo, ou pensamento complexo.

    A atual teoria da complexidade é a terceira tentativa, em quase meio século, de se trazer fenômenos naturais (físicos e biológicos) para o contexto das propriedades altamente genéricas de sistemas e processos.

     

    TRÊS PROPOSTAS

    A primeira permanece pouco conhecida: a teoria da catástrofe, lançada nos anos 1960 pelo notável matemático francês René Thom. Mostrou que as alterações observadas em alguns sistemas que mudam no tempo conforme leis matemáticas simples podem ser deformações contínuas e graduais do estado imediatamente anterior, mas que, em algum ponto crítico, o conjunto do sistema sofre uma mudança "catastrófica" e prossegue por um novo caminho.

    Exemplo clássico é o da onda do mar que arrebenta por processo contínuo de mudança. Uma ondulação se transforma em curva convexa profunda, cuja característica tubular é subitamente perdida no ponto crítico da arrebentação.

    Entre a da catástrofe e a da complexidade esteve muito em voga a célebre teoria do caos, em grande parte inspirada na meteorologia dos anos 1980. Mostrou que alguns sistemas dinâmicos muito simples têm oscilações regulares com um determinado conjunto de parâmetros, mas que, com outros, sofrem transformações de estado que quase sempre parecem completamente aleatórias. Só que tais mudanças podem ser explicadas por equações relativamente simples. Ecólogos desenvolveram modelos bem acessíveis de crescimento populacional nos quais é o comportamento caótico que evidencia mudanças aparentemente aleatórias.

    A mais recente tentativa - da complexidade - reside na esperança de que sistemas e processos complexos obedeçam, em geral, a leis que têm origem na própria multiplicidade de interações entre muitas partes. Isto é, as leis dos processos complexos decorreriam, antes de tudo, do número elevado das partes elementares em interações que geram emergências.

     

    EPOPEIA

    Sobre a relação entre emergência e complexidade não há, em português, algo que se compare ao dossiê especial que a Ciência & Cultura lhe dedicou em 2013 (v. 65, n. 4). Na publicação, Osvaldo Pessoa Jr. observa que, malgrado o acúmulo de sérias divergências sobre a versão "forte" (ontológica) da emergência, estaria ocorrendo (em 2013) "esforço científico para descrever de maneira mais elegante e frutífera a emergência de padrões complexos" (p. 25).

    Nos últimos cinco anos, o número de publicações pertinentes foi tão elevado, que mesmo um mero resumo seria trabalho por demais ambicioso, até para uma dissertação de mestrado.

    Então, como vislumbre dessa desejável atualização, pode ser útil avaliar os dois últimos lançamentos de quem mais se dedicou ao tema ao longo do último meio século. O francês Edgar Morin, que acaba de completar 97 anos, oferece dois grandes apanhados de sua epopeia teórica em L'aventure de la méthode (Seuil, 2015) e Connaissance ignorance mystère (Fayard, 2017).

     

    TRÊS TIPOS DE ERRO

    Apesar de seus mais de cinquenta livros abordarem áreas tão diversas quanto a condição humana, a política, a era planetária, o cinema, ou a pedagogia, pode-se dizer que, desde o fim dos anos 1960, o cerne das reflexões teóricas de Morin tem sido o próprio conhecimento. Foi seu mergulho profundo em pesquisas de fronteira sobre a vida e sobre o mundo físico que revelou a crucial necessidade de uma abordagem transdisciplinar ainda inédita. O que logo o fez esbarrar naquilo que passou a possuí-lo, tanto como obstáculo, quanto como via à elucidação: o conhecimento complexo.

    Na linguagem mais trivial, os termos complexo e complexidade denotam grande dificuldade de se definir ou descrever alguma coisa muito complicada. Mas são termos que também podem ser entendidos como evidências da desafiante necessidade de se descrever e definir essas complicações que são percebidas como complexas. É por isso que os melhores experts nessa temática - como Edgard de Assis Carvalho - se valem do sentido etimológico do termo latino complexus: composto de vários elementos entrelaçados a ser compreendido sob diversos ângulos e pontos de vista.

    Morin usa a metáfora da "tapeçaria" para realçar a impossibilidade de que algum dos tipos de fio que a formam possa se expressar plenamente. É assim que ilustra a inflexão intelectual empreendida a partir de 1969, quando já era cinquentão. Desde seus trinta quis religar conhecimentos forçosamente pulverizados pelas óbvias vantagens comparativas e competitivas das especializações. E desde seus quarenta também pretendeu superar alternativas entre opções tidas por inconciliáveis, enfrentando as contradições em vez de contorná-las.

    Acabou por se dar conta que entre as mais sutis fontes de erros e ilusões estão a disjunção entre os conhecimentos e a redução do que é composto aos seus elementos constitutivos. Percebeu que não se tratava mais do combate aos erros oriundos da ignorância e do dogmatismo, com os quais fizera um incomum acerto de contas em seu sétimo livro: Autocrítica (Seuil, 1959).

    Foi assim que, na década de 1970, passou a visar outros três tipos de erros: o do pensamento parcial (em seus dois sentidos); o do pensamento binário, que só vê alternativa do tipo ou/ou, por ser incapaz de combinar a conjunção e/e; e o do raciocínio linear, inapto em conceber a retroação e a recursão. No fundo, três falácias das reduções que frustram esforços de apreensão dos fenômenos considerados complexos.

     

    UMA CERTEZA

    Conta Morin que foi sob o efeito de um impulso interno incontrolável seu engajamento na "aventura" ou "missão" de batalhar por uma renovação da própria natureza do conhecimento científico. E por mais que se possa duvidar da viabilidade de tamanha ambição, existe uma certeza: nesse meio século o autor não esmoreceu, muito menos desistiu.

    Para que possa entender o enunciado proposto por Morin para o conceito de emergência, é aconselhável que o leitor lembre dos exemplos concretos que abriram este artigo (martelo, água). Para ele, emergências são propriedades ou qualidades advindas da organização de diversos elementos ou constituintes imbricados em um todo, não dedutíveis a partir das qualidades ou propriedades dos constituintes isolados, e irredutíveis a tais constituintes. É por isso que as emergências não são epifenômenos ou superestruturas, e sim qualidades superiores advindas da complexidade organizacional. Elas podem retroagir sobre os constituintes conferindo-lhes as qualidades do todo.

     

    TRINDADE

    Dada essa importância atribuída à emergência, fica bem difícil entender por que tal conceito não entra na definição proposta por Morin para complexidade, conhecimento complexo ou pensamento complexo. Definição baseada numa trinca de "princípios", que os experts preferem chamar de "operadores". Eles serão a seguir apresentados de trás para frente.

    O terceiro é do holograma, imagem na qual cada ponto contém a quase totalidade da informação sobre o objeto representado. Significa que não somente a parte está no todo, mas que o todo também está, de certa maneira, inscrito na parte. Assim, a célula contém a integralidade da informação genética, o que permite a clonagem. E o conjunto da sociedade, mediante a cultura, está inserido na mente de cada indivíduo.

    O segundo é a recursividade organizadora. É recursivo todo circuito cujos produtos e/ou efeitos são necessários à sua própria produção ou à sua própria causação. Uma bela imagem, apresentada no livro de 2015, é a figueira-de-bengala, árvore endêmica na Índia, Bangladesh e Sri Lanka. Sua característica mais marcante é gerar raízes aéreas delgadas que crescem até atingir o solo, começando então a engrossar até formarem novos troncos indistinguíveis do tronco principal. Segundo Morin, esse ficus benghalensis simboliza o ciclo recursivo próprio a tantos processos complexos em que produtos viram produtores daquilo que os produziu.

     

    DIALÓGICA

    Já o primeiro princípio, ou operador, dito "dialógico", foi deixado para o fim por ser bem menos aceitável, causando até hostilidade entre entendidos em epistemologia. Nas palavras do autor, trata-se da unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias complementares, concorrentes e antagonistas, que se nutrem uma da outra, se completam, mas também se opõem e se combatem. Afirma ser algo distinto da dialética hegeliana, na qual as contradições encontrariam sua solução, se superariam e se suprimiriam em unidade superior. Já nesse neologismo "dialógica", antagonismos permaneceriam constitutivos das entidades ou fenômenos complexos.

    Não parece razoável, contudo, a afirmação de que na dialética hegeliana as contradições sempre seriam antagonismos que encontrariam sua solução em unidade superior. O termo que Hegel mais utilizou foi "'aufgehoben'", que tem triplo sentido: a) dissolver, desfazer, anular; b) guardar; c) pôr em lugar mais alto, colocar em cima.

    Por isso, são três os sentidos que ocorrem na formação do que Hegel chamou de "síntese". No primeiro, a oposição dos polos, que constitui a contradição, é superada e anulada. E o caráter excludente que existia entre tese e antítese é dissolvido e desaparece. No segundo sentido, os polos são conservados e guardados em tudo o que tinham de positivo, apesar da dissolução havida. E no terceiro, vai-se a um plano mais alto: na unidade há ascensão a nível superior.

    Na verdade, interpretar contradições exclusivamente como antagonismos foi inclinação comum entre marxistas. O equívoco foi certamente induzido pela leitura dos escritos de Marx que mais revelam o predomínio do aguerrido revolucionário sobre o cientista social. Só que os outros dois tipos de contradição também são parte do projeto filosófico do velho barbudo.

     

    TRÊS PROCESSOS

    Ao aprofundar seus estudos sobre o funcionamento da economia capitalista, Marx também detectou oposições não-antagônicas, nas quais os contrários estão em posição lógica de simetria. Nesses casos, não há eliminação inovadora de um deles, nem superação "sintética" dos dois, mas sim uma espécie de reprodução cíclica, ou ondulatória, da oposição básica.

    Marx também detectou um outro tipo, no qual a oposição dos contrários engendra algo essencialmente novo. Ou seja, identificou ao menos três espécies de oposição que podem ser entendidas como determinantes de processos revolucionários, ondulatórios e embrionários.

    Não faz sentido, portanto, se apelar para uma suposta dialógica, como se ela pudesse ser complemento à dialética, seja a de Hegel, como a de Marx. Pois as reticências de Morin ao termo dialética são parte integrante dos debates filosóficos sobre o tema. Tentar resolver as dificuldades que permeiam tais debates pelo lançamento de nova moda - a dialógica - foi uma temeridade que não pegou e que irrita muitos pesquisadores.

    O mais irônico, contudo, é que o autor não abandonou o uso da locução "dialética", que parece até ocorrer com mais frequência que "dialógica" nos vários milhares de páginas que publicou.

    Além dessa objeção sobre a infelicidade de bagunçar a dialética, há uma outra cuja consequência é até mais grave: não se dar conta da pertinência da conjectura de Darwin para a aproximação epistemológica das ciências. Por isso, o que vem a seguir é crucial para a reflexão sobre emergência e complexidade.

     

    NOVA SÍNTESE

    O que dizer do que vem ocorrendo na física quântica com o chamado quantum darwinism, e nas ciências cognitivas com o neural darwinismo? Paralelamente, também há no interior da biologia evolucionária um processo tão significativo de mudança no pensamento sobre hereditariedade, que parece prenunciar o surgimento de uma nova síntese que não será mais fissurada no gene.

    Assertivas dessa corrente por uma "síntese ampliada" parecem pura heresia a quem seja prisioneiro da versão mais difundida da teoria da evolução de Darwin, que tudo reduz à adaptação por meio de seleção natural de variações genéticas aleatórias. Mas a biologia molecular tende a mostrar que estão erradas muitas das suposições sobre o sistema genético. Já mostrou, por exemplo, que as células são capazes de transmitir informação às células-filhas por herança não relacionada ao DNA, a epigenética.

    Em princípio, os organismos têm ao menos esses dois sistemas de hereditariedade. Mas nos animais também há muita informação transmitida por meio de comportamentos, o que lhes confere um terceiro sistema. E os humanos teriam quatro, pois uma herança baseada em símbolos - particularmente a linguagem - desempenha papel crucial em sua evolução.

    Desponta, portanto, uma visão muito diferente do materialismo darwiniano quando se leva em conta esses quatro sistemas de herança e as interações entre eles, pois mudanças induzidas e adquiridas também podem ter papéis na evolução. As heranças epigenética, comportamental e simbólica também podem fornecer variações sobre as quais atuaria a chamada seleção natural. Não é razoável, então, reduzir hereditariedade e evolução à dimensão genética.

     

    APROXIMAÇÃO EPISTEMOLÓGICA

    Tanto pela emergência de uma nova síntese muito mais abrangente que a "moderna", quanto pela expansão da "epistemologia evolutiva", fica claro que são muitas as novidades teóricas sobre os determinantes da hereditariedade e da cooperação que poderão acelerar o processo de aproximação iniciado nos anos 1980 com a formação de três originais sociedades científicas.

    Psicólogos e antropólogos se juntaram a biólogos para fundar a Human Behavior and Evolution Society (HBES), que lançou o periódico Evolution & Human Behavior como sucessor do Ethology & Sociobiology. Pesquisadores dessas três disciplinas também se associaram a ecólogos na International Society for Behavioral Ecology (ISBE), que publica a revista Behavioral Ecology. E economistas fundaram a International Joseph A. Schumpeter Society (ISS), que edita o Journal of Evolutionary Economics.

    Tão ou mais importante, contudo, é informar que, no Brasil, a melhor referência sobre as questões abordadas neste artigo é Charbel El-Hani, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (IN-TREE), que hospeda o excelente blog Darwinianas: a ciência em movimento (https://darwinianas.com).

     

     

    A versão completa deste artigo está disponível em http://www.zeeli.pro.br/5447