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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.70 no.4 São Paulo oct./dic. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000400006 

    MUNDO
    70 ANOS DA CEPAL

     

    Entrevista com Carlos Mussi, diretor do escritório da Cepal em Brasília

     

     

    Patricia Mariuzzo

     

     

    A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, Cepal, foi estabelecida pela resolução 106 (VI) do Conselho Econômico e Social, de 25 de fevereiro de 1948, e começou a funcionar nesse mesmo ano. É uma das cinco comissões regionais das Nações Unidas e sua sede está em Santiago do Chile. Foi fundada para contribuir ao desenvolvimento econômico da América Latina, coordenar as ações encaminhadas à sua promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e com as outras nações do mundo. Posteriormente, seu trabalho foi ampliado aos países do Caribe e se incorporou o objetivo de promover o desenvolvimento social. A Cepal teve papel destacado na constituição de um pensamento sobre a economia da América Latina, com nomes como Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, José Serra, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Mello. Nos últimos 10 anos a Comissão tem trabalhado no sentido de desenvolver trabalhos de pesquisa e cooperação técnica que favoreçam o cumprimento da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Este ano, juntamente com os eventos ligados às comemorações dos seus 70 anos, a Cepal lançou o livro A ineficiência da desigualdade, no qual analisa como a desigualdade reduz a eficiência dinâmica das economias da América Latina e do Caribe. Nesta entrevista para a revista Ciência&Cultura, o diretor do escritório da Cepal em Brasília, Carlos Henrique Fialho Mussi, fala sobre esse documento e sobre as propostas da Cepal para superar a desigualdade nos países da América Latina. Segundo ele, que é economista pela UnB, a igualdade não somente é um princípio ético e irredutível, mas uma forma de estruturar uma sociedade mais justa com cidadania e garantia de acesso aos seus direitos básicos, sejam os direitos humanos, políticos, sociais ou econômicos.

     

     

    Ciência&Cultura: Este ano a Cepal completa 70 anos de atuação na elaboração de estratégias para o desenvolvimento dos países da América Latina e Caribe. Há cerca de 10 anos, a Cepal tem colocado a questão da igualdade no centro das propostas de estratégias de desenvolvimento da América Latina e este ano a Comissão lançou a publicação A ineficiência da desigualdade. O que levou a esse direcionamento?

    Carlos Mussi: Desde 2010, a Cepal tem apresentado propostas ligadas ao tema da igualdade. Nesses últimos oito anos, nos relatórios apresentados a cada dois anos em sua principal reunião com os países membros, a Cepal tem desenvolvido o conceito da igualdade sob diferentes perspectivas. Começamos analisando o momento de discutir a igualdade como objetivo final, além das questões de equidade ou de igualdade de oportunidades. Em seguida, apresentamos a necessidade de mudanças estruturais nas nossas economias e de estabelecer pactos para implementar essas mudanças. No documento apresentado em 2016 colocamos a discussão de estilos de desenvolvimento e critérios para analisá-los a partir de eficiências sobre a estrutura produtiva, a demanda agregada e a sustentabilidade ambiental. Daí, chegamos a trazer a discussão de como a desigualdade reduz a produtividade e consequentemente gera a ineficiência que observamos em nosso desenvolvimento.

    C&C: E qual seria esse conceito de igualdade? A que ele se refere?

    Carlos Mussi: Esse conceito de igualdade ao qual a Cepal se refere diz respeito à titularidade de direitos para todos e todas. Não somente é um princípio ético e irredutível, mas uma forma de estruturar uma sociedade mais justa com cidadania e garantia de acesso aos seus direitos básicos, sejam os direitos humanos, políticos, sociais e econômicos. Dizemos que a igualdade é o horizonte, que as mudanças estruturais são o caminho e a política é o instrumento.

    C&C: E por que a desigualdade gera ineficiência?

    Carlos Mussi: Uma sociedade desigual está relacionada a uma estrutura heterogênea, com setores altamente produtivos convivendo com uma grande maioria de setores e empregos de baixa produtividade e com rendas muito baixas. Essa estrutura traz dificuldades para que existam políticas de desenvolvimento abrangentes com resultados imediatos para a sua transformação. Isso pode ocorrer tanto por questões de falta de capacidades, como educação, tecnologia e financiamento, como por questões próprias de cada país, no que chamamos da cultura de privilégios que se apresenta em diferentes graus em todas as sociedades latino-americanas, que impedem a transformação produtiva.

    C&C: O estudo sobre a ineficiência da desigualdade menciona a existência de uma economia política da desigualdade. O senhor pode explicar o que significa essa economia e que barreiras ela representa?

    Carlos Mussi: A resposta a essa pergunta está relacionada ao que identificamos como a cultura do privilégio. As sociedades latino-americanas foram construídas, tanto em seu lado da produção como de estruturas sociais, de forma muito concentrada, com a exploração de alguns recursos naturais nos diferentes ciclos econômicos que observamos, ou na organização política centralizada, com a apropriação do Estado por diferentes grupos de interesses. Para romper essa economia política da desigualdade, os países da região devem buscar uma maior diversidade em sua capacidade produtiva, estimulando a inovação e a ampliação do conhecimento, e buscar maior descentralização, transparência e avaliação das políticas públicas para conhecermos os seus impactos e custos, especialmente a quais grupos essas políticas favorecem e seus resultados finais para o resto da sociedade.

     

     

    C&C: A igualdade está estritamente ligada aos temas da educação. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), intitulado "Um olhar sobre a educação" e divulgado em setembro, apontou que no Brasil mais da metade da população (52%), entre 25 e 64 anos, não tem ensino médio completo. Esses números não são muito diferentes em boa parte dos demais da América Latina. Como a desigualdade de acesso à educação afeta o sistema econômico?

    Carlos Mussi: A capacidade de qualquer pessoa, grupo e país de se desenvolver está ligada ao que Raul Prebisch, o principal fundador da Cepal, coloca: a "incorporação do progresso técnico". Hoje adicionaríamos não somente a incorporação, mas também a capacidade de gerar inovação e novas tecnologias. Para isto precisamos de conhecimento, ou seja, de uma população amplamente educada com ensino de boa qualidade. Os testes internacionais de educação como o PISA, da OCDE, colocam a grande maioria dos países da região em seus menores níveis. Esse resultado está muito relacionado à como nós, latino-americanos, damos prioridade à educação, seja em grau de cobertura para que todos tenham acesso às escolas, como também no sentido de trabalhar para melhorar a qualidade da educação oferecida nas escolas e de estimular a pesquisa e a inovação. A desigualdade no acesso, na qualidade e na permanência dos latino-americanos nas escolas faz com que fiquemos limitados, com a geração de empregos de baixa produtividade e consequentes baixos salários. Isto não é um caminho para o desenvolvimento.

    C&C: Ainda sobre educação, diante da velocidade da difusão da revolução digital, o que a Cepal recomenda como prioridades em termos de investimentos em educação?

    Carlos Mussi: Como mencionei, o progresso técnico é fundamental para o desenvolvimento. Portanto, a revolução digital em todos os seus aspectos é uma transformação do modo como produzimos, consumimos e pesquisamos. Por detrás, estão as decisões de inovação, investimentos, emprego e renda. Igualmente, essa nova tecnologia altera o modo como o Estado funciona na prestação de seus serviços, na regulação dos bens públicos e até quando e como arrecadamos impostos. Juntamente com os países membros, a Cepal tem criado uma agenda digital que abrange certamente a questão da educação e a capacidade de gerar, gerenciar e usar essas novas tecnologias, mas também levanta o tema do acesso a elas e a governança de nossos dados e recursos.

    C&C: O índice de desenvolvimento regional (IDR) latino-americano de 2015, elaborado pela Cepal, identificou as macrorregiões com as maiores defasagens relativas em matéria de desenvolvimento econômico social. Entre elas estão as regiões Norte e Nordeste do Brasil. Considerando que a Cepal também tem se debruçado sobre o tema da bioeconomia como um instrumento para o desenvolvimento dos países latino-americanos, quais as oportunidades e desafios para essas regiões brasileiras de gerar riquezas a partir de seus recursos naturais?

    Carlos Mussi: A história de nossa região está ligada à exploração dos seus recursos naturais. Sempre estamos em fases diferentes nesses ciclos que envolvem os preços e as quantidades exportadas por nossos países. Um desafio que muitas vezes não conseguimos superar é criar uma boa "governança" na exploração e no uso desses recursos. Hoje é fundamental não somente uma gestão econômica, mas uma gestão sustentável desses recursos, que incorpore as questões ambientais e sociais. A bioeconomia ou novas tecnologias "verdes" são o avanço para um novo ciclo de uso de nossos recursos naturais. Há que prover essas regiões com os instrumentos para se obter um desenvolvimento abrangente e inclusivo, ou seja, que não seja somente extrativo, sem vínculos com a economia local, e que os seus benefícios não fiquem concentrados e transferidos para outras localidades.

     

     

    C&C: Um dos eixos defendidos pela Cepal dentro de uma estratégia que promova o desenvolvimento e a redução das desigualdades na América Latina é um estado de bem-estar, com políticas de desenvolvimento social inclusivo, que proporcionem benefícios sociais de qualidade. Nesse sentido, como o senhor vê medidas tomadas no Brasil como, por exemplo, o congelamento do teto de gastos por 20 anos (PEC 241)?

    Carlos Mussi: Constata-se que tanto economias mais desenvolvidas quanto em desenvolvimento têm um nível de concentração de renda muito semelhante se excluirmos a ação do Estado nas rendas de seus habitantes. Ao incluir a intervenção do Estado, por meio da tributação e de seus gastos e transferências, observa-se uma substancial queda na concentração de renda nos países desenvolvidos e praticamente nenhuma alteração no caso dos países latino-americanos. Isso demonstra a dificuldade que o nosso Estado tem em atuar de maneira efetiva em melhorar o estado de bem-estar, medido por acesso à educação, à saúde e à seguridade social, entre outros. Um diagnóstico comum é que o estado de bem-estar prometido e desejado por nós latino-americanos está muito além da nossa capacidade de financiá-lo (baixa renda per capita ou, em alguns casos, por menor capacidade de arrecadação). Países com maior carga tributária e com sistemas de bem-estar mais amplos e estruturados como o Brasil têm esse desafio de conferir eficiência ao uso dos recursos públicos, para que exista uma melhor alocação deles e que não se dependa somente do aumento dos impostos para pagar maiores gastos.

    C&C: Um dos desafios para superar as desigualdades na América Latina e Caribe é combater uma cultura do privilégio que tem raízes históricas, ligadas ao processo de colonização e que se dissemina de forma estrutural e institucional. Como o sistema tributário vigente na América Latina colabora com essa cultura? O que a Cepal sugere nesse sentido?

    Carlos Mussi: O sistema tributário da região reflete bem essa cultura de privilégios ao limitar a tributação sobre renda e riqueza e o gasto ser direcionado para subsídios e renúncias fiscais que trazem poucos resultados para toda a sociedade. A nossa sugestão está em uma proposta de reformas fiscais progressistas, que diminuam o peso dos impostos para as pessoas de menor renda e que exista uma prioridade para gastos que tenham maior impacto sobre todos.

    C&C: A Cepal defende a tese de que os países da América Latina e do Caribe devem implementar um novo paradigma de desenvolvimento baseado em um grande impulso ambiental. O que isso significa? Um dos eixos desse modelo é a adoção de uma macroeconomia para o desenvolvimento. No que essa estratégia se traduz, especialmente no caso brasileiro?

    Carlos Mussi: Dentro da análise sobre estilos de desenvolvimento e o objetivo da igualdade com eficiência da sustentabilidade ambiental, surge a proposta para um novo ciclo de investimentos em novas tecnologias sustentáveis ou verdes para construir uma sociedade com menor uso de carbono e que incorpore ações para enfrentar as mudanças climáticas que estão ocorrendo. Em resumo, chamamos como um grande impulso ambiental um conjunto de políticas coordenadas para estimular esses investimentos e gerar a demanda e os estímulos para sua boa execução. Afinal, a região tem como base econômica seus recursos naturais e há muitas oportunidades para gerar tecnologia, obras e empregos sustentáveis. A decisão de investir tem como base a forma como os empreendedores veem o futuro e as suas expectativas sobre o retorno de seu capital. Variáveis chave como crédito, inflação, taxa de juros e taxa de câmbio são fundamentais para esse processo de decisão. Por meio da proposta de uma macroeconomia do desenvolvimento, a Cepal alerta para que a gestão macroeconômica não seja limitada a resultados de curto prazo, mas que considere os ganhos e custos de movimentos nessas variáveis no médio e longo prazos.