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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000100003 

    BRASIL
    ENTREVISTA

     

    Otávio Velho: a trajetória e o futuro das ciências sociais no Brasil

     

     

    Ana Paula Morales

     

     

     

    Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho é presidente de honra da SBPC, o primeiro da área de ciências sociais. Suas relações com a entidade remontam à década de 1970, quando foi convidado para retomar a secretaria regional do Rio de Janeiro. A partir de então, os laços se estreitaram cada vez mais. "Na SBPC, foi sempre uma relação de camaradagem, e também uma relação de trabalho prático", lembra o antropólogo, que é professor titular e emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador emérito do Departamento de Antropologia/Museu Nacional/UFRJ e membro permanente da Congregação do Museu Nacional (UFRJ). De acordo com Otávio, as ciências sociais sempre foram valorizadas e estiveram presentes na SBPC. "Eu acho que a SBPC tende a atrair cientistas que são mais abertos para pensar os problemas gerais do país", afirma. Ele foi membro da diretoria da SBPC por três mandatos, ocupando os cargos de secretário (1983-1985), vice-presidente (2007-2009 e 2009-2011) e membro do conselho, também por três mandatos (1979-1983, 1985-1989 e 1995-1999). Para o pesquisador, as ciências sociais ganham mais visibilidade em momentos mais difíceis do ponto de vista político, como o que vivemos recentemente. Por outro lado, o contexto atual é de insegurança para as ciências de uma forma geral. "Nessa conjuntura que estamos vivendo, as ciências em geral estão sofrendo problemas, de alguma maneira, há muita insegurança a respeito do futuro imediato", alerta, apontando a necessidade de união da classe científica e de fortalecimento da comunicação com a sociedade. O pesquisador lançou recentemente o livro Antinomias do real (Editora UFRJ, 2018), uma coletânea de textos sobre assuntos diversos que evidenciam contradições e dualidades que são constitutivas, segundo ele, não somente da sociedade brasileira, mas que aqui parecem ganhar mais força. Leia abaixo a entrevista que ele concedeu à revista Ciência & Cultura.

    Ciência & Cultura (C&C): Como foi a sua relação com a SBPC ao longo da sua trajetória?

    Otávio Velho (OV): Tudo começou mais ou menos naturalmente, quando surgiu a ideia de uma retomada da regional da SBPC do Rio de Janeiro, com pessoas como o Roberto Lent, o Ennio Candotti, o Roberto Passos Guimarães. Eles me procuraram para que eu participasse nas atividades da regional, acho que nos anos 1970, e depois da criação do conselho da revista Ciência Hoje. Foi por aí que surgiu a minha relação com a SBPC, e a partir daí a minha relação com a SPBC nacional foi se desenvolvendo. Eu participei da diretoria do professor [Crodowaldo] Pavan e então comecei a me entrosar, e passei a me sentir como parte realmente, digamos assim, da turma da SBPC. Essa época coincidiu com o período do regime militar, em que estávamos sofrendo uma série de problemas, e isso também eu acho que de alguma maneira ajudou na aproximação. Esse lado informal do relacionamento eu acho que é muito importante. As minhas relações na SBPC sempre foram muito boas. Sem querer romantizar, porque muitas vezes existem ideias a respeito das dificuldades, relacionamentos, ou de compreensão entre as ciências humanas e as outras ciências, e esses problemas de fato existem, mas no meu caso pessoal, eu nunca senti nenhuma dificuldade. O que facilitou, para mim, foi o fato de que trabalhei a vida toda numa instituição muito interdisciplinar, que é o Museu Nacional, que foi vítima agora dessa tragédia. Na SBPC, foi sempre uma relação de camaradagem, e também uma relação de trabalho prático. A entidade sempre prestigiou e valorizou muito a presença das ciências sociais.

    C&C: As ciências sociais e as humanidades estiveram presentes na SBPC desde o início. Como foi construída essa relação?

    OV: Fazendo um pequeno histórico, o primeiro museu brasileiro foi criado em 1818, ano que coincidiu com a chamada aclamação de Dom João VI, realizada aqui no Rio de Janeiro, quando então ele finalmente se tornou rei. A principal fala na cerimônia da aclamação foi de um acadêmico da delegação da Real Academia de Ciências de Lisboa, sobre a necessidade da criação de uma sociedade de ciências e artes aqui no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, explicitando claramente a presença das ciências sociais nesse meio. A Academia de Ciências Brasileira só foi criada em 1916, praticamente 100 anos depois. E quando ela foi criada, não havia a presença das ciências sociais, que só foram incorporadas à Academia em 1980. No caso da SBPC, a presença dos cientistas sociais é constante desde o começo, e não só isso, mas também de cientistas muito interessados em temas sociais. A recente publicação 70 Reuniões Anuais da SBPC, feita por iniciativa do Ildeu [de Castro Moreira, atual presidente da SBPC], com os cartazes de cada reunião anual, mostra que os temas sociais estavam presentes desde o começo, muito recorrentemente, inclusive nos títulos das reuniões. Acho que isso tem a ver com o clima da época da criação da SBPC, o clima do pós-guerra, em que havia cientistas realmente muito preocupados com questões políticas e sociais. Eu acho que a SBPC tende a atrair cientistas que são mais abertos para pensar os problemas gerais do país, e interessados nesse diálogo com colegas das ciências sociais. De modo que foi um orgulho ter sido escolhido presidente de honra da SBPC - é significativo o fato de que eu ainda sou o único das humanidades, mas eu acho que isso é interessante. As ciências sociais parecem que ganham mais visibilidade na SBPC em momentos mais difíceis do ponto de vista político, em que a análise a respeito das situações do país ganha maior relevância, e as pessoas são obrigadas a sair das discussões exclusivamente das suas especialidades. Eu acho que estamos agora passando por um período como esse e, nesse sentido, o meu prognóstico é de que essa relação, essa presença das ciências sociais na SBPC, vai se tornar talvez maior proximamente. Outro motivo pelo qual eu acho que isso vai acontecer, é que não há dúvida que nessa conjuntura que estamos vivendo, as ciências em geral estão sofrendo problemas, de alguma maneira há muita insegurança a respeito do futuro imediato. Eu acho que as ciências sociais particularmente estão muito vulneráveis neste momento. Então também para elas é muito importante, eu acho, essa aproximação com colegas de outras áreas, e com as associações, sobretudo com a própria SBPC. Eu tenho estimulado muito os colegas nesse sentido. Recentemente, na abertura da reunião da nossa Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, a Anpocs, que foi agora em outubro, em Caxambu, antes mesmo do desenlaço das eleições, eu já chamava atenção para a importância desse trabalho junto com os colegas de outras áreas. Eu acho que eu fui bem compreendido e acredito que isso vá acontecer proximamente.

     

     

    C&C: No contexto atual, o sr. então julga importante essa união da comunicada científica...

    OV: Sem dúvida nenhuma! E podemos dizer que nós estamos encontrando muita receptividade nesse sentido por parte da diretoria da SBPC. É uma diretoria particularmente sensível. Um ponto que eu acho que serve de convergência para nós, é a questão da educação. É muito comum entre os participantes da SBPC, uma preocupação com a educação no Brasil, não só em nível de pós-graduação, ou universitário, mas com o ensino em geral no país. Eu acho que esse é um dos focos que deve se desenvolver, e onde nós podemos trabalhar juntos.

    C&C: O sr. publicou recentemente o livro Antinomias do real. Um ponto em comum são as dualidades que permeiam as várias temáticas. Esse seria o tema central do livro?

    OV: Fazendo um certo paralelo, que é um paralelo livre, de leigo, eu tento de alguma maneira mostrar a questão das antinomias aproximando isso do que historicamente foi enfrentado pela física, sobre a natureza da luz. No século XVII, Newton falava que a luz deveria ser tratada como um corpúsculo, e Huygens falava em tratá-la como ondas, e isso foi uma controvérsia que atravessou os séculos. Já no século XX, Niels Bohr deu uma solução, digamos assim, oriental, em que ele disse: "não tem que tratar [a luz] exclusivamente como corpúsculo ou como onda, tem que tratar tanto como corpúsculo, quanto como onda". Inicialmente, a ideia era tratar a luz ora como corpúsculo, e ora como onda; mas depois outros cientistas começaram a falar de tratá-la simultaneamente como corpúsculo e como onda. Acho que isso dá um pouco essa ideia da antinomia.

    A outra questão também tem um paralelo com a física: se essa dualidade seria inerente à natureza da luz, ou se refletiria as limitações do observador. Na segunda parte do título, tento pensar essa questão das antinomias para as questões sociais, que são as antinomias constitutivas do real. O último capítulo do livro tem como título: "Antropologia e a guerra: não só de narrativas", pois eu acho que nas próprias ciências sociais estava havendo um certo abuso nos últimos tempos em tentar pensar a vida social como ficção, como narrativa, e eu estou tentando voltar a um certo realismo. Eu acho que essa ideia de antinomias precisa de alguma maneira dar conta do modo pelo qual vários cientistas sociais, vários pensadores, para ser mais amplo, têm pensado o Brasil - como um país contraditório, um país que estou chamando de antinômico. E daí a dificuldade de definir o país de alguma maneira.

    Por outro lado, recentemente estamos nos dando conta que muitas dessas coisas que a gente achava que eram exclusividade brasileira também de alguma maneira acontecem em outros países. Mas aqui, para o bem ou para o mal, somos um teatro que se presta a uma observação especialmente forte nessa questão das antinomias, que na verdade dizem respeito à vida social como um todo. Isso é tratado de várias maneiras em relação a diversos assuntos no decorrer do livro.

    C&C: Essa dualidade de que o senhor fala parece estar mais exposta na sociedade brasileira atualmente...

    OV: Exatamente! É como se algum lado do Brasil que não estava sendo observado, que não estava aparente, emergisse, e muitas vezes emerge com violência, e até que se faça algum tipo de acomodação disso tudo é complicado. Nós precisamos aprender a conviver com isso, sem cada um querer destruir o outro. Eu acho que esse aprendizado da convivência, essa convivência que é constitutiva do país, nós temos que vivê-la para que essas antinomias não estejam sempre em conflito, criando explosões tão violentas.

    C&C: O sr. diz, no capítulo 3, que "a religião, para além de ser objeto das ciências sociais, pode também ser uma parceira no que diz respeito a questões de natureza teórica e epistemológica". O sr. poderia explicar melhor o que quer dizer?

    OV: A religião é um tema recorrente no livro, porque eu sempre tentei chamar atenção para a importância da questão da religião entre nós, os cientistas, e particularmente os cientistas sociais. Eu acho que em geral eles tenderam a subestimar isso, a pensar o país apenas como um Brasil moderno, onde a religião seria descartada. Não é verdade, a religião não está descartada e nem vai ser descartada. Assim como hoje também querem descartar a ciência, o que é igualmente um absurdo. No caso da nossa área, existe uma espécie de guerra entre ciência e religião que não são os cientistas que provocam, mas que de alguma maneira às vezes também se tornam um pouco unilaterais. Uma coisa que eu acho interessante e curiosa é como muitos de nós nunca nos demos conta da presença de pessoas religiosas dentro da universidade. De alguma maneira, acho que essas pessoas se sentiram muito marginalizadas e ignoradas, e precisamos aprender com isso. O cientista social, o antropólogo fala da convivência com o outro - isso é uma mensagem fundamental da antropologia -, por exemplo, com os índios, que é algo da qual não podemos abrir mão. Mas, mais proximamente de nós, existem diferenças difíceis de enxergarmos, ou desagradáveis até certo ponto, e temos que enfrentar de alguma forma. Temos que permanentemente refletir a respeito das nossas atividades e das nossas atitudes.

    C&C: Como o senhor caracterizaria as ciências sociais e a antropologia brasileira atualmente?

    OV: Olha, o que eu posso te dizer é que é impressionante o crescimento da escala. Isso se refere ao conjunto da ciência brasileira. Mas, para quem já chegou à minha idade, realmente comparar as coisas tal como elas se davam na década de 1960 e como se dão hoje, a diferença de escala é muito grande. Eu acho que esse é um processo irreversível e desejável, mas temos que estar atentos às suas inconveniências. Para poder lidar com esse sistema cada vez maior e mais complexo, há uma certa atitude burocrática que às vezes dificulta o trabalho em vez de enriquecê-lo. Por exemplo, por vezes me parece que as teses, devido a todas as exigências que são feitas hoje, tendem a ficar um pouco mais repetitivas e menos criativas. Ao mesmo tempo, elas formam um conjunto precioso, que precisa ser melhor aproveitado - nós temos que realmente romper as barreiras para que a sociedade conheça o nosso trabalho. Esse é o motivo de muitas incompreensões que surgem hoje, e que estão nos ameaçando. É preciso romper a barreira com a sociedade e conseguir nos comunicar mais. Para a antropologia, particularmente, eu acho que essa questão é fundamental. E neste momento nós temos que aprender também a conviver com outros pontos de vista. Essa que é a dificuldade.