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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000100015 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    A visão de divulgação científica de José Reis

     

     

    Luisa Medeiros MassaraniI; Juliana Passos AlvesII

    ICoordena o Instituto Nacional de Comunicação Pública em Ciência e Tecnologia, sediado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e o Mestrado Acadêmico em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, criado em 2016 em parceria com a UFRJ, Fundação Cecierj, Museu de Astronomia e Ciências Afins e Jardim Botânico
    IIJornalista, possui especialização em jornalismo científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 2014). Mestre em divulgação da ciência, tecnologia e saúde pela Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, sendo José Reis o tema de sua dissertação

     

     

    1. INTRODUÇÃO

    José Reis é um dos nomes mais conhecidos da divulgação científica brasileira, além de ter contribuído significativamente para a construção da ciência de nosso país. Reis teve papel fundamental na consolidação de instituições como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

    A atuação, tanto quanto cientista como quanto divulgador, confere a José Reis uma bagagem singular para falar sobre ciência e sua relação com a sociedade. Em 1947, uma década antes de se aposentar pelo Instituto Biológico em São Paulo, no qual atuava como pesquisador, passou a contribuir com textos de divulgação científica no Grupo Folha - do qual faziam parte os jornais Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite, e que em janeiro de 1960 se consolidaram na Folha de S.Paulo - e seguiu até o ano da sua morte, em 2002, portanto, ao longo de quase seis décadas. Na SBPC, fez parte do grupo que criou a revista Ciência & Cultura. Também colaborou com a revista Anhembi, que circulou entre 1950 e 1962, com textos principalmente sobre política científica (Mendes, 2006:238). Como reconhecimento pelo seu destacado trabalho na área de comunicação da ciência, recebeu em 1975 o Prêmio Kalinga, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e considerado o mais importante prêmio internacional em divulgação científica.

     

    2. MATERIAIS E MÉTODOS

    Para este estudo, analisamos textos escritos por José Reis sobre a divulgação científica, em suas distintas abordagens. Fizemos a busca por inspeção visual no Acervo José Reis [1], que possui materiais de sua autoria publicados em distintos periódicos, entre eles no jornal Folha de S. Paulo, na revista Ciência & Cultura e na revista Anhembi. Também nos apoiamos em alguns textos do arquivo digital de suas publicações nos veículos do Grupo Folha, em que José Reis aborda especificamente reflexões sobre divulgação. Dessa forma, consolidamos um corpus de 12 textos, 10 deles presentes no arquivo físico.

     

    3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

    3.1 O CONCEITO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

    Em diferentes ocasiões José Reis se preocupou em delimitar os objetivos da divulgação científica (DC) e o modo como esta deveria ser trabalhada. No entanto, a conceituação do que é a DC foi pouco trabalhada por ele. Um desses momentos foi em 1964 na revista Ciência & Cultura, sem ter a preocupação de distinguir divulgação do jornalismo científico conforme pontua Bueno (2009:163).

    Por divulgação entende-se aqui o trabalho de comunicar ao público, em linguagem acessível, os fatos e os princípios da ciência, dentro de uma filosofia que permita aproveitar o fato jornalisticamente relevante como motivação para explicar os princípios científicos, os métodos de ação dos cientistas e a evolução das idéias científicas. Aquêle fato jornalisticamente interessante não ocorre todos os dias. Cabe, porém, ao divulgar tornar interessantes os fatos que êle mesmo vai respingando no noticiário. E se tiver habilidade, fará isso até com fatos antigos, que êle trará novamente à vida. (Reis, 1964, p. 353)

    O conceito aparece também rapidamente na entrevista concedida à Alzira Alves de Abreu, em 1982. Após o questionamento direto, a resposta é breve: "É a veiculação em termos simples da ciência como processo, dos princípios nela estabelecidos, das metodologias que emprega" [2].

    3.2 COMO, O PORQUÊ E PARA QUEM

    Reis coloca a necessidade de se abordar a ciência sem estereótipos e com uma contextualização da pesquisa para que não se torne um experimento de pesquisadores isolados em sua torre de marfim.:

    [...] o divulgador deve procurar transmitir a seus leitores uma imagem exata do que fazem os cientistas e de como o fazem. Como se formam eles. Como trabalham. O que produzem. O ambiente em que precisam viver, para poderem gerar o conhecimento ou dar vazão ao seu espírito criador. [...] Apenas a verdade, o relato sincero dos fatos ou teorias. Em geral a descoberta científica já traz em si enredo bastante para prender a atenção. (Folha de S. Paulo, 13 de agosto de 1967, Caderno Ilustrada, p.1)

    A cobertura de ciência sensacionalista e a transformação do "meramente curioso" em científico são preocupações constantes. No texto datilografado em inglês Aim and policies of science reporting (1962), presente no Acervo e apresentado no Congresso Científico Ibero-Americano realizado no Chile, ele comenta sobre o problema que considera recorrente.

    A falta de compreensão acerca dos dilemas científicos e sua importância é explicada pelo fato de que muita informação de má qualidade é selecionada por alguns jornais e oferecida para o público como conteúdo de primeira qualidade. O mesmo problema pode ser observado na seleção, por parte de corpos editoriais, de homens a serem entrevistados sobre assuntos científicos. (Reis, 1962, p.1, tradução nossa)

    José Reis não ignorava os temas que foram extensivamente divulgados por agências e comentados e aproveitou para contextualizá-los e explicar alguns conceitos de determinadas disciplinas. Também ressaltou a importância de abordarem grandes acontecimentos ligados ao campo científico e, como exemplo recorrente, cita o lançamento de foguetes e dos satélites Sputnik. O assunto voltou a ser abordado em um texto na revista Anhembi com o título de "Divulgação científica", publicada em 1962. José Reis explica em quais casos é possível utilizar um acontecimento não necessariamente científico para captar a atenção do leitor:

    Não pode o divulgador furtar-se a comentar o fenômeno que em determinado momento se torna "manchete", ainda que não lhe atribua o mesmo valor, cientificamente falando, que o ruído da imprensa faz supor. É a oportunidade que êle tem de, por intermédio do "passatempo", chegar à ciência e explicar os princípios científicos ligados ao fenômeno. (Anhembi, jul. 1962, p. 7)

    As características para uma divulgação científica de qualidade elencadas por Reis, e que permanecem como modelo nos dias atuais, tinham como pano de fundo a criação de um ambiente de cultura científica para as "massas", incluindo pessoas com ensino superior ou não, como afirma mais adiante no mesmo texto da Anhembi. Nesse trecho, Reis faz uma comparação entre Brasil e Inglaterra, ao dialogar com as ideias do botânico e educador Eric Ashby:

    Qual o público a que o divulgador se deve dirigir? Para Ashby há de ser êle o grande público, o homem que em geral não teve instrução especializada, o que não continuou seus estudos, e não os intelectuais, que para êstes já ofereceria a sociedade recursos vários de informação sistemática. As condições, porém, não são as mesmas aqui e na Inglaterra. Nossas universidades ainda estão longe de constituir o ambiente de mútua informação que seria desejável encontrar nelas. Os especialistas vivem mais ilhados do que os de outros países cientificamente mais adiantados. E o fluxo de informação atual, nos vários domínios da ciência, ainda é praticamente inexistente no sentido do professor secundário e do primário, que na realidade não encontram revistas regulares que os atualizem. A divulgação dos jornais e nas revistas comuns, têrmos gerais, porém criteriosos, constitui muitas vêzes a única fonte de informação tanto para o cidadão comum quanto para vários mestres dos vários níveis de ensino. (Reis, José. Divulgação Científica. In: Anhembi, jul. 1962, Separata, p. 9)

    Esse trecho nos leva a considerar de forma conjunta o porquê e para quem a divulgação científica se destina. Essas reflexões ficam mais claras quando José Reis escreve sobre Bernard Fontenelle (1657-1757), autor do que José Reis classificou, em texto de 1977, como o primeiro documento de divulgação científica da ciência moderna, o "Entretiens sur la plurarité des mondes" e nomeado secretário-geral da Academia Francesa de Ciência. Os escritos de Fontenelle eram destinados à aristocracia, o que motiva Reis a se questionar sobre a existência do trabalho de divulgação, em texto de 1977 citado em palestra realizada no Curso de História da Ciência do Brasil a convite de Shozo Motoyama, em 26 de maio de 1977. Em dado momento do texto, o divulgador brasileiro questiona-se sobre a existência de um processo de popularização da ciência, uma vez que Bernard Fontenelle falava apenas para a aristocracia francesa dos séculos XVII e XVIII.

    Temos, porém, dúvida em situar Fontenelle como popularizador da ciência, uma vez que ele se dirigia ostensivamente a uma aristocracia e manifestava até a convicção de que o conhecimento científico constituía espécie de privilégio da elite, que não deveria divulgar esses "mistérios" à massa ignorante, seu objetivo era, então, aristocratizar a ciência em vez de semeá-la na grande massa, como desejam os atuais divulgadores. (Reis, J.. Divulgação Científica - depoimento. Datilografado. 1977)

    Dois anos depois, ao escrever sobre Fontenelle na Folha de S. Paulo ele revê, em parte, seu posicionamento:

    Mas numa sociedade como a daqueles tempos o "grande público" era mesmo aquele a que Fontenelle se dirigia, formado pelas pessoas que gravitam em torno do poder e nele influem direta ou indiretamente. Tornando a ciência apetecível a esse público, terá ele conquistado muita simpatia para a ciência e os cientistas e, em particular, para as chamadas ciências puras. (Folha de S. Paulo, 22 de abril de 1979, Caderno Ilustrada, p. 65)

    Nessa época, 17 anos depois de falar do distanciamento dos cientistas, José Reis está mais otimista em relação ao diálogo destes com a sociedade e escreve que isso já não é mais uma tão grave preocupação, na sequência do texto de perfil sobre Fontenelle, mas voltou a questionar o modelo de educação:

    Mudaram com o tempo as formas e os meios de divulgação científica e tornou-se possível atuar mais diretamente sobre públicos cada vez maiores. Os próprios cientistas se convenceram disso e hoje se envolvem em debates para as mais variadas platéias. E os modernos divulgadores vêem, como uma das facetas de sua missão, atrair vocações para a ciência, dando muitas vezes ao leitor ou ouvinte aquilo que a própria escola nem sempre dá, com seu formalismo crescente. (Folha de S. Paulo, 22 de abril de 1979, Caderno Ilustrada, p. 65)

    Ainda sobre o papel e objetivos da divulgação científica, em edição da revista Ciência & Cultura, José Reis deixou claro a necessidade de uma divulgação científica que promova uma boa imagem da ciência perante o público, uma vez que as sociedades estão cada vez mais dependentes do progresso científico e a ciência depende de financiamento dos governos para continuar sendo produzida. A preocupação com o público formado por tomadores de decisão é colocada em texto publicado na Folha de S. Paulo, em 1962:

    Num mundo em que a ciência desempenha papel cada vez mais importante e em que ela passou a ser um fator de soberania nacional, é evidente que o cidadão comum, que é em última análise quem decide quanto aos negócios da coletividade, tem de estar a par dos grandes problemas científicos. Ele precisa entender para poder julgar, para poder apoiar sinceramente a própria ciência e o seu desenvolvimento, para poder distinguir entre a verdadeira ciência e a falsa ciência ou as mistificações da ciência. (Folha de S. Paulo, 28 de out. de 1962. p.1).

    O trecho acima destacado é uma das várias menções de Reis à divulgação científica como pilar de um projeto de desenvolvimento nacional. A capacidade de alcançar a "massa" com a transmissão dos conhecimentos da "verdadeira" ciência, traria o apoio e incentivo da sociedade a investimentos em ciência por parte dos governos e levaria, por consequência, ao progresso da nação. Nesse sentido, podemos entender essa postura de Reis como uma crença demasiada no modelo de déficit, como sistematizam Brossard e Lewenstein (2010). No modelo, a principal preocupação está em suprir determinada falta de conhecimentos específicos e não há diálogo entre aqueles que ensinam e que são ensinados.

    No entanto, seria apressado de nossa parte enquadrar seu trabalho nesse modelo, como uma divulgação científica destinada à "massa" pode sugerir. José Reis sempre esteve atento às demandas da sociedade. Vale lembrar que seu trabalho de divulgação junto aos produtores de aves partiu de conversas de seu colega de Instituto Biológico Rodolfo von Ihering. Mas a percepção de que existia uma necessidade de ir além dos feitos científicos e também expor controvérsias é percebida ao longo dos anos. Mudança não só operada por ele, como um reflexo do campo, como Reis pontua em texto produzido para palestra na Universidade de São Paulo (USP), em maio de 1977. "A divulgação científica, que durante muito tempo se limitou quase ao propósito de contar ao público os encantos e os aspectos interessantes da ciência, aos poucos mudou de rumo e passou a refletir também a intensidade dos problemas sociais implícitos na ciência", escreve.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Os textos de José Reis nos permitem enxergar alguns avanços da divulgação científica a partir de suas reflexões enquanto divulgador. Se nos primeiros anos de Folha de S. Paulo ele chegou a comparar a divulgação científica à propaganda, não menos de duas décadas depois ele faz oposição aos termos. Nas décadas seguintes, Reis passa a enfatizar a necessidade de a divulgação científica não se deter nos feitos milagrosos da ciência, temendo um governo de especialistas. Para ele, o trabalho de divulgador não se limitava a informar, mas também educar o público leitor ao longo do tempo, além de tentar envolver estudantes a se interessarem por ciência a partir da promoção de feiras. Por esse motivo, apesar de ter nascido nos primeiros anos do século XX, não podemos limitar o trabalho de José Reis como sendo somente no modelo de déficit. A necessidade de divulgar a ciência sem sensacionalismo e apontando suas fragilidades não o afastou da política científica e, em inúmeros textos, lembrava a necessidade da prática de divulgação científica como forma de atrair a atenção da sociedade e governantes para se atentarem ao investimento em ciência.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    O Acervo José Reis está localizado na Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro. Os cerca de 12 mil livros e 7 mil documentos estão em fase de catalogação e higienização e foram doados por sua família. A coordenação é de Luisa Massarani e Eliane Dias. Este estudo se insere em projeto que conta com apoio do CNPq e do então Departamento de Popularização e Difusão da Ciência e da Tecnologia (DEPTI) do então Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. Agradecemos em particular a Douglas Falcão, então diretor do DEPTI, Leda Pinto e à família de José Reis, que generosamente cedeu o Acervo José Reis à Casa de Oswaldo Cruz, em particular Marcos Reis e Ricardo Reis. Agradecemos também à equipe da Folha de S. Paulo que tem sistematicamente dado acesso ao acervo, especialmente a Marcelo Leite. Os artigos escritos por Reis analisados neste estudo foram reunidos no livro Massarani, L.; Dias, E. (org.). José Reis: reflexões sobre a divulgação científica. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2018. Para saber mais sobre Reis, ver Massarani, L.; Burlamaqui, M.; Passos, J. José Reis, caixeiro-viajante da ciência. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2018.

    2. Abreu, A. A. CPDOC/UFRJ. José Reis. 1982. Entrevista concedida à Alzira Alves de Abreu. Disponível em: <http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/livros/jose_reis_28.html>. Acesso em: 14 dez. 2017.

    Bueno, W. da C."Jornalismo científico: revisando o conceito". In: Victor, C. et al. (org). Jornalismo científico e desenvolvimento sustentável. São Paulo: All Print, 2009. p. 157-158.

    Brossard, D.; Lewenstein, B. "A critical appraisal of models of public understanding of science: using practice to inform theory". In: Kahlor, L.; Stout, P. (orgs.). Communicating science: new agendas in communication. Routledge: Nova Iorque e Londres, 2010, p.11-39.

    Mendes, M. "Uma perspectiva histórica da divulgação científica: a atuação do cientista-divulgador José Reis (1948-1958)", tese de doutorado em história das ciências e da saúde, Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. 2006.

    Reis, J. "A divulgação da ciência e o ensino". Ciência & Cultura, São Paulo: SBPC, v.16, n.4, 1964.

    Reis, J. "Divulgação científica". Ciência & Cultura, São Paulo: SBPC, vol. 19, n.4, 1967.

    Reis, J. "Divulgação da ciência". Folha da Manhã, 1º de março de 1953, Caderno Atualidades e Comentários, p. 11.

    Reis, J. "Examinado em seminário os problemas da divulgação científica". Folha de S. Paulo, 28 de out. de 1962, Caderno Ilustrada, p.1.

    Reis, J. "Divulgação científica". Folha de S. Paulo, 13 de agosto de 1967, Caderno Ilustrada, p.1.

    Reis, J. "Fontenelle e a divulgação científica". Folha de São Paulo, 22 de abril de 1979, Caderno Ilustrada, p. 65.

    Reis, J. "Divulgação científica - depoimento". Datilografado. 1977.