SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.71 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000100016 

    CULTURA
    HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO

     

    Por uma cultura brasileira do milho

     

     

    Patricia Mariuzzo

     

     

    O Brasil é o terceiro maior produtor mundial de milho, atrás de Estados Unidos e China. Segundo os dados do acompanhamento da safra de grãos, de dezembro de 2018, feito pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Goiás são os maiores produtores brasileiros. A história do milho nessas regiões, no entanto, é bem mais antiga. Juntamente com Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, parte do Rio de Janeiro e Espírito Santo esses estados compõem a Paulistânia, território onde o milho era a base de uma cozinha rica e diversa, a culinária caipira.

    "Vários produtos eram obtidos do milho-verde recém-colhido, tanto na dieta indígena, quanto na caipira. Desta restaram o curau, a pamonha, o bolo de milho e os mingaus. É o milho seco, entretanto, que se constituiu em matéria-prima de maior importância histórica, seja porque esteve associado à conquista do sertão, seja porque é dele que derivam os principais elementos da dieta caipira", afirmam Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos no livro A culinária caipira da Paulistânia (Três Estrelas, 2018). "Entendo a cozinha caipira como aquela produzida primordialmente como atividade de subsistência, em pequenas propriedades, chamadas 'sítios', que gravitam em torno da cultura do milho e dos seus derivados, além de espécies nativas de legumes como abóbora, feijão, amendoim, que mostra, ainda, agregados o chiqueiro, o galinheiro, o pomar, a horta", explica Dória.

     

     

    Nativo da América Central, abati era como o milho era conhecido entre os tupis-guaranis. "Ele ocupava um papel central na vida desses povos. Seu poder germinativo, aliado à rapidez e à facilidade do cultivo, fez com que ele se adequasse perfeitamente ao ideal de vida nômade dessas comunidades", afirma Rafaela Basso, historiadora que desenvolve pesquisa sobre alimentação dos paulistas no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH Unicamp). Essas características também viabilizaram as viagens bandeirantes para os sertões brasileiros. "O milho garantiu a sobrevivência e a melhor adaptação dos europeus - cuja cultura estava alicerçada no trigo - às adversidades e possibilidades proporcionadas pelo meio que encontram aqui", complementa. No caso dos bandeirantes, ela menciona ainda a facilidade de transportar os grãos sem que eles se estragassem. As expedições sertanistas só puderam acontecer porque pequenos grupos de colonos viajavam antes e faziam roças de milho que antecipavam o comboio.

     

    COMPLEXO DO MILHO

    Com o tempo essas roças deram origem a povoados. "Muitos desses colonos acabaram por se fixar nas rotas para os distritos mineratórios onde, juntamente com o milho, cultivavam e vendiam outros produtos como feijão, carne de porco e de galinha", explica Basso. Além das vantagens no cultivo, o milho também proporcionava uma grande variedade de receitas, mesmo em uma cozinha rústica, característica de um tipo de vida itinerante, como era a desses viajantes. Sal e açúcar, por exemplo, eram ingredientes caros, aos quais só os mais ricos tinham acesso.

    Um alimento derivado do milho, que se tornou fundamental na conformação da culinária caipira, foi a farinha de milho. E, aqui, é importante notar que a introdução do monjolo nos sítios paulistas pelos portugueses possibilitou aumentar e disseminar sua produção e uso. Conforme explica Basso, os indígenas já produziam farinha, mas utilizavam o pilão manual cavado em troncos de árvores. O monjolo, movido a água ou com tração animal, facilitou o trabalho e fez da farinha de flocos amarelos e do fubá matérias-primas de pratos icônicos da culinária caipira como bolos, pães, virados, paçocas, mingaus e bebidas. "A contribuição do uso dessas farinhas para a colonização brasileira é inestimável, sem contar que ambas tinham a função de alimentar o grande número de escravos, cujo trabalho era a base de toda a economia colonial", afirmou Basso.

     

    MINEIRIZAÇÃO

    A despeito da importância do milho no processo de colonização brasileiro, essa memória não permaneceu como elemento da cultura gastronômica brasileira ou mesmo dos paulistas. Conforme explica Basso, ao mesmo tempo em que o milho tem importância fundamental como fonte alimentar dos homens da Colônia, ele também servia para alimentar os animais. "Isso dava um significado secundário e pejorativo para essa planta. Não é à toa que mandioca - outra planta nativa das Américas - foi escolhida por muitos chefs como símbolo da gastronomia brasileira", explica a historiadora.

    Para Dória e Bastos, a existência da cultura caipira é mais ideológica ou imaginária do que real, já que nenhuma comunidade da antiga Paulistânia vive hoje comendo exclusivamente aquela cozinha que se construiu entre os homens pobres ao longo dos séculos. "Essa sociedade e essa cultura são vistas, em especial a partir dos anos 1950, majoritariamente como rurais, em oposição ao dinamismo urbano que surgia; atrasadas, em oposição à cultura moderna que se americanizava. E indesejadas, sob qualquer ponto de vista", dizem. Por isso sua cozinha foi como que soterrada pela comida industrializada, pelos hábitos dos imigrantes europeus e "pelo solene desprezo que o Brasil moderno devota ao seu passado indígena". Ainda de acordo com eles, boa parte dos pratos caipiras são conhecidos hoje como parte da cozinha mineira, algo que eles chamam de mineirização da cozinha caipira. "No fim das contas, não existe diferença notável entre a cozinha mineira e a tradicional paulista, a ponto de justificar uma classificação distinta. O que parece existir são atitudes diferentes dos mineiros e paulistas diante da culinária caipira", acreditam os autores.

     

     

    RESISTÊNCIAS

    Uma cozinha à base de milho, no entanto, não é algo do passado. No Vale do Paranapanema, interior de São Paulo, o milho ainda é um elemento central na cultura culinária, presente no cotidiano e nas festas comunitárias. A pesquisadora da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), Cristina Fachini, identificou diversos pratos à base de milho verde e farinha de milho. A lista de receitas que ela recolheu é grande: paçoca de carne feita no pilão, encapotado, bolinho frito de farinha de milho, cardito de ovo, cabeça de porco "moqueada", quirela de milho com costelinha de porco e o rojão. "A farinha de milho é um ingrediente ainda muito presente aqui na região o que faz com que ainda exista muitos monjolos ativos ou pequenas fábricas de farinha rudimentares", conta.

    Para evidenciar essas práticas tradicionais de produção e uso culinário do alimento, Fachini está organizando um roteiro turístico do milho. O projeto foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural (Proac). "O turista poderá saborear essas receitas e ainda conhecer o modo de vida rural que inclui as festas do milho, danças tradicionais e práticas como a fabricação de peneiras e cestos de palha, uma herança indígena", contou Fachini.

    Segundo ela, ainda permanece nessas localidades formas de colaboração que envolvem a participação voluntária de mais de 200 pessoas para colheita do milho que será utilizado na confecção de produtos para as festas, em geral organizadas pela Igreja Católica. "Na Festa do Milho Verde de Ribeirão Grande, por exemplo, voluntários plantam o milho em um terreno cedido para esse fim. As sementes de milho criolo, próprio para pamonha, também são doadas", conta. Cada festa consome de sete a 19 toneladas de milho verde para a produção dos pratos típicos: pamonha doce e salgada, bolo de milho, curau doce, mingau de milho com frango, quirera com costela defumada, suco de milho verde, milho cozido, bolinho pingado de milho verde, pamonha na chapa e o bolinho de frango.

    Na tradição culinária da região também ocorre nítida separação dos pratos preparados com a farinha de milho daqueles à base de milho verde. "O milho verde é vendido nas festas devido à sazonalidade e à curta duração do produto em ponto de verde. Também está associado às celebrações, às colheitas, à comensalidade, às reuniões familiares. Já a farinha de milho, que pode ser armazenada, faz parte do cotidiano, é a companheira do trabalho na roça e da vida prática. É o ingrediente que dá sustância aos demais pratos, que engrossa o caldo, que dá corpo", explica Fachini.

    Para ela, o roteiro turístico e gastronômico do milho é uma possibilidade de valorizar um modo de vida marcado por um calendário anual que associa fluxos de vida, períodos de colheita, semeadura e celebrações. Ao caminhar pelas ruas de Ribeirão Grande durante a semana santa, por exemplo, pode-se sentir o cheiro dos biscoitos de polvilho com farinha de milho assados na folha de bananeira. "Um roteiro gastronômico do milho traz a possibilidade de criar uma narrativa dessas práticas, de forma a proporcionar ao turista uma experiência sobre as formas de produção e de vida que ainda hoje resistem e são praticadas até mesmo no meio urbano dessa região", acredita a pesquisadora.