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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.71 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000200003 

    BRASIL
    IGUALDADE DE GÊNERO

     

    Intrusas: uma reflexão sobre mulheres e meninas na ciência

     

     

    Fabiana de Oliveira Benedito

     

     

    Há 20 anos, a escritora Susan Bordo utilizou o termo "o outro" para sintetizar a percepção coletiva das contribuições da crítica feminista à ciência. O conceito, elaborado pela filósofa Simone de Beauvoir, aponta para a existência de uma posição social periférica - marcada pelas diferenças sexuais e raciais - onde estariam localizados os estudos feministas. "O outro" é, ainda hoje, uma metáfora possível para falar sobre as mulheres e meninas na ciência. Desde 2015, 11 de fevereiro foi estabelecido como o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. A data foi definida pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de tornar visível o papel e as contribuições das mulheres para o desenvolvimento científico, e que também serve para fomentar as discussões sobre quais barreiras elas enfrentam nas universidades, institutos de pesquisas e nas carreiras científicas, de maneira geral.

    Para Adla Betsaida Martins Teixeira, pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), embora a organização universitária tenha uma ordem masculina, é desde o início da formação escolar que os saberes e potencialidades das meninas costumam ser sabotados. "A menina não pode errar. O menino tem mais chance. Quando ele erra, não tem tanto a sensação do fracasso. Para uma menina pesa muito mais", aponta.

     

     

    LUGAR DE MULHER

    Uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em 2015, mostrou que as mulheres são apenas 28% dos pesquisadores de todo o mundo. No Brasil, 80% da população com idade entre 25 a 34 anos nem sequer chega ao ensino superior, de acordo com dados do Fórum Econômico Mundial. No entanto, há outras estatísticas que apontam para um cenário potencialmente mais positivo em relação às questões de gênero: segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2016, as mulheres eram 57,2% nos cursos de graduação do país e, de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), as mulheres também constituem maioria nos cursos de pós-graduação. Em 2016, eram mais de 126 mil mulheres matriculadas em cursos de doutorado e mestrado - número 18% maior que o de homens matriculados nos mesmos cursos (cerca de 107 mil), (ver tabela).

    Apesar de serem maioria na graduação e na pós-graduação, as mulheres ainda estão sub-representadas em áreas tradicionalmente concebidas como masculinas, como as engenharias, a computação, as ciências exatas e da terra. Para a física Vera Soares, que foi Secretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a ideia de que existem profissões para mulheres e profissões para homens é cultivada em diversos dos espaços de socialização das meninas e meninos. "Esses preconceitos de que as meninas não gostam das disciplinas das áreas de exatas estão presentes na família, na sociedade e também na escola", afirma.

    Foi esse entendimento que motivou a SPM a criar o projeto Meninas e jovens fazendo ciências exatas, engenharias e computação, em parceria do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Petrobras. O objetivo era selecionar propostas - para apoio financeiro - que estimulassem a formação de mulheres para as carreiras nas áreas que dão nome à iniciativa. "A ideia era mudar esse panorama onde vemos poucas mulheres na física, na matemática, nas engenharias", conta Soares. O projeto envolveu meninas de escolas públicas e professores das universidades e do ensino médio. "As meninas estão em profissões que refletem e dialogam com o estereótipo de que o papel das mulheres na sociedade é o cuidado, de que a mulher está restrita ao cuidado", afirma a física. "O que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, disse - que menina veste rosa e menino veste azul - está reafirmando os papéis sociais definidos para meninas e meninos. E isso se reflete fortemente nas escolhas profissionais", completa Soares.

    Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2018, mostram que as mulheres brasileiras gastam, em média, 72% a mais de tempo que os homens no trabalho doméstico e de cuidados. Outro estudo, realizado pelo movimento Parent in Science, mostra que, no ambiente acadêmico, 54% das mulheres que são mães declaram que cuidam sozinhas dos filhos. "Obviamente não podemos esperar que as mulheres consigam o mesmo desempenho na atividade acadêmica quando têm que atuar em casa e no trabalho. Algumas profissionais conseguem fazer isso delegando a atividade do cuidar dos filhos a outras mulheres, mas os homens não precisam fazer isso para continuar no trabalho e ter uma família", declara a física, professora e pesquisadora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marcia Bernardes Barbosa. "Há uma forte correlação entre maternidade e diminuição da produção no período onde somos mais avaliadas. Atualmente estamos trabalhando para reverter isto", completa.

     


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    BASTA DE ASSÉDIO!

    O assédio - moral e sexual - é outra "barreira invisível", nas palavras de Vera Soares, que as universitárias e cientistas enfrentam em suas atividades profissionais. Como há poucos estudos que apresentem números sobre o problema, um grupo de pesquisadores da UFRGS construiu um questionário que será repassado para toda a comunidade acadêmica, após a aprovação do comitê de ética, a fim de reunir dados sobre a questão. "O tema é espinhoso e estamos esperando muito barulho pelo simples fato de perguntar", comenta Barbosa, que está envolvida nesta iniciativa.

    Para Soares, a questão está vindo à tona, entre outras razões, pela atuação dos inúmeros coletivos feministas que se organizaram nas universidades nos últimos anos. "Esse movimento é muito alvissareiro porque, organizadas em coletivos, essas jovens discutem, se apoiam e denunciam o que está acontecendo. Com isso, obrigam as universidades a tomar algumas medidas", comenta.

     

     

    VOCABULÁRIO DA DESIGUALDADE

    No diálogo com mulheres cientistas, é frequente ouvir que o trabalho delas não rende o mesmo reconhecimento creditado aos colegas homens. De tão recorrente, o fenômeno ganhou nome: "efeito Matilda", em uma referência à Matilda Joslyn Gage, ativista pelo sufrágio universal, abolicionista e pensadora americana, que em 1893 escreveu o ensaio Woman as an inventor, em que protesta contra o senso comum de que as mulheres não possuem vocação para invenções. O conceito foi consagrado pela historiadora da ciência Margaret W. Rossiter, da Universidade de Cornell, em 1993, na revista Social Studies of Science.

    Outro fenômeno é o "efeito tesoura", termo utilizado para mostrar como as mulheres vão sendo expulsas da ciência ao longo de suas carreiras, impedindo que elas ocupem posições de liderança. A elite científica no Brasil é composta, majoritariamente, por homens. Enquanto 59% das bolsas de iniciação científica (IC) ficam com mulheres, apenas 35,5% das bolsas de produtividade científica - um dos principais mecanismos de reconhecimento nas carreiras científicas - são destinadas a elas. No grupo de bolsas com maiores recursos (1A), o percentual é ainda menor: 24,6%. Esta dificuldade, de ascender nas carreiras, também é chamada de "teto de vidro".

    Efeito Matilda, efeito tesoura, teto de vidro são algumas barreiras e dificuldades que as mulheres enfrentam para ser cientistas. Elas formam um conjunto de estereótipos de gênero cultivados na família, nas escolas e no ambiente de trabalho. Há, ainda, um longo caminho a ser percorrido para alcançar a igualdade de gênero na ciência e em toda a sociedade.