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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.71 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000200010 

    ARTIGOS
    ANTROPOLOGIABIOLÓGICA

     

    Bioarqueologia no Brasil: constituindo um campo, consolidando um conceito

     

     

    Sheila Mendonça de Souza

    Médica e bioarqueóloga, doutora em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, onde é hoje pesquisadora titular e vice-diretora de Pesquisa e Inovação. Atuou em diferentes instituições e projetos, lecionando por 20 anos na primeira graduação em arqueologia no Brasil

     

     

    Muito antes da palavra ser criada, já se fazia no Brasil o prenúncio do que chamamos bioarqueologia. Registros de campo sobre análise e interpretação de remanescentes humanos em contexto arqueológico, inclusive aspectos morfológicos, estão presentes em alguns dos primeiros trabalhos, como por exemplo as memórias de Peter Willelm Lund sobre Lagoa Santa, Minas Gerais [1].

    Olhar para ossos humanos e seus contextos arqueológicos pode envolver diferentes abordagens metodológicas, perguntas e técnicas, pertinentes a cada paradigma, tempo e lugar. O estudo de remanescentes humanos arqueológicos vem prosseguindo por décadas de trabalho nas instituições brasileiras, inicialmente alimentado por academias europeias. Depois, seguindo os caminhos mais recentes, prosseguiu sob forte influência da América do Norte. De inspiração e base originalmente biomédicas, esse campo de estudo foi progressivamente integrado à antropologia, de onde hoje provém a maior parte de seus protagonistas [2].

    Antecedida por morfologias classificatórias do normal e não normal, a bioarqueologia surgiu como conceito relativamente novo na década de 1970, propondo o estudo dos remanescentes de corpos humanos que levassem em conta seu contexto e suas características, para inferir sobre estilos de vida, comportamentos, práticas culturais, hereditariedade e outros aspectos [3]. Tal concepção levou à ênfase crescente no estudo dos estados modificados da normalidade. No Brasil, passadas décadas e modas, ideologias e paradigmas, esse tipo de estudo cresceu e se consolidou, afirmando competências e expertises cada vez mais respeitadas nacional e internacionalmente.

    Ainda sob o impacto do desastre no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e o enorme prejuízo às coleções bioarqueológicas nele contidas [4], este texto deve ajudar também a refletir sobre a importância das instituições, de sua adequada proteção e dos saberes produzidos nos espaços acadêmicos brasileiros, onde o esforço de sobrevivência é permanente. Repassar a história da bioarqueologia no Brasil é também reiterar nossos valores e reclamar por um futuro para o nosso passado.

    Este texto conta como chegamos a fazer bioarqueologia no Brasil e o que desafia o futuro deste campo que se propõe a revelar aspectos da vida, da morte e do comportamento de indivíduos e grupos humanos que nos antecederam.

     

    COMEÇO E RECOMEÇO NO MUSEU NACIONAL

    Com a instalação da corte portuguesa no Brasil em 1808, seguida pela implantação de um império neste país, foram criados centros de saberes e ciência. Uma Casa dos Pássaros (nome popularmente atribuído à antiga Casa de História Natural), denominada Museu Real em 1818, reuniu por dote, sorte, ousadia e esforços acadêmicos um grande acervo. Já no tempo do império mostrava sua potência, centralizando os estudos em diferentes campos científicos, inclusive arqueologia e antropologia física [5]. Esta última, entendida como a variação e evolução dos traços físicos humanos, foi precursora do que é hoje chamado bioarqueologia. Antes do incêndio, em setembro do ano passado, o Museu Nacional era o quinto de sua categoria no mundo em termos de acervo, abrigando também coleções zoológicas, paleontológicas, etnográficas, antropológicas e arqueológicas únicas.

    Apesar das primeiras descrições de ossos humanos antigos no Brasil serem atribuídas a Peter Lund, foi durante o século XIX, no Museu Nacional, graças à proximidade de seus pesquisadores com as correntes teóricas da Europa, que a pesquisa antropológica floresceu, atraindo grandes nomes internacionais como o inglês Charles Darwin e o francês Paul Broca. Materiais pré-históricos, inclusive crânios humanos, constavam da primeira Exposição Antropológica feita no Rio de Janeiro, em 1882. Pesquisas e cursos sobre anatomia comparada e paleontologia humana foram ditados por João Baptista de Lacerda, ainda sob os auspícios de Dom Pedro II [6].

    De acordo com Luis de Castro Faria [7], a história da antropologia física no Brasil abrange três períodos: inicial ou de formação (1860-1910), de dedicação aos povos contemporâneos (1910-1930) e de consolidação da disciplina (1930-1950). A esta classificação talvez já possamos acrescentar, a partir dos anos 1970-1980, o da bioarqueologia. A partir daí cresceu a interdisciplinaridade, principalmente a integração com a arqueologia, e os olhares voltaram-se cada vez mais para a busca dos indícios de processos fisiológicos e fisiopatológicos e seu impacto sobre a vida dos indivíduos, nos termos da hoje denominada bioarqueologia. Durante o período de formação, os estudos classificatórios, embora alinhados com paradigmas, métodos e técnicas do final do século XIX, já perguntavam timidamente sobre saúde e comportamento. Naquele tempo, Darwin ainda disputava espaço com o criacionismo e questões como origem, migração e datações eram ainda incipientes. Tal como parece recrudescer hoje, a ciência disputava espaço com mitos e crenças fundamentalistas. Na segunda fase, a república e as questões da identidade nacional motivaram inquietações sobre nossa realidade mestiça, e menos se discutiu o passado mais remoto. No terceiro período, a partir dos anos 1930, a antropologia física no Museu Nacional redirecionou olhares e recursos para os remanescentes pré-históricos, ainda que mantendo seu foco classificatório. E a partir dos anos 1960, as novas missões científicas, a expansão das instituições acadêmicas e a profissionalização acelerada dinamizaram a pesquisa, abrindo caminho para um novo tempo. Nas duas décadas seguintes, Marília Carvalho de Mello e Alvim, entre outros do Museu Nacional, começou a diversificar timidamente os estudos de ossos e dentes humanos. Sob a orientação dela foi feita a primeira tese em paleopatologia no Brasil, de autoria de Jorge Ferigolo, da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Ela própria iniciou os estudos sobre anemia ferropriva em povos pré-históricos do litoral. Outros arqueólogos e antropólogos abriram novas perspectivas de trabalho e, assim, começaram a constituir-se efetivamente pesquisas cada vez mais bioarqueológicas.

    É difícil isolar a instituição Museu Nacional do cenário brasileiro, uma vez que a criação no Rio de Janeiro da primeira - e por longo tempo única - faculdade de arqueologia do Brasil, na Faculdade Marechal Rondon e depois na Universidade Estácio de Sá, interligou histórias institucionais. O surgimento do curso de graduação, antes inexistente, o crescimento de universidades e outras instituições acadêmicas onde a arqueologia firmou-se, a expansão das oportunidades de trabalho e abertura de mercados para o empreendedorismo em arqueologia, os recursos para pesquisa e formação, interligaram instituições e processos profissionais em todo o país. A partir dos anos 1980, as oportunidades de internacionalização também fortaleceram o campo, ampliaram as abordagens, métodos e técnicas, e ajudaram a superar nossa dificuldade em acompanhar os avanços da antropologia, eliminando o risco de desaparecimento da área. O Museu Nacional, como outras instituições, viveu novos ares [2].

    É interessante lembrar que, entre 1970 e 1980, os trabalhos publicados sobre ossos e dentes humanos já se encontravam na décima posição entre os mais citados nas publicações de arqueologia brasileira [1]. O diálogo com a arqueologia entrou em nova fase, também favorecido pela estruturação da formação acadêmica específica no Brasil. Aos poucos, campo e laboratório ficaram mais próximos, as abordagens mais interdisciplinares e bioarqueológicas. Monografias, dissertações e teses foram feitas em programas de pós-graduação diversos, dentro e fora do Museu Nacional. Nas três últimas décadas, um novo e dinâmico quadro profissional, com formação e experiência acumulada na arqueologia, vem assumindo posição: Claudia Rodrigues Carvalho, Andrea Lessa, Andersen Liryo, Murilo Bastos e outros, nas suas diferentes especialidades, atuam, recebem e se destacam naquela instituição secular. Sua produção se destaca nacional e internacionalmente.

    Infelizmente, em setembro de 2018, o Museu Nacional foi atingido pelo sinistro que levou à perda quase total das coleções antropológicas. Ainda assim, a resiliência e a capacidade dos mesmos profissionais vêm permitindo dizer que o museu vive! E assim prosseguir, reconstruir, reinventar formas de manter atividades em bioarqueologia. O maior exemplo talvez seja escavar pela segunda vez os fragmentos do crânio de Luzia (crânio encontrado na década de 1970 na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, e datado em cerca de 11 mil anos, estando entre os mais antigos das Américas), e recuperá-los: símbolo de começo e recomeço da bioarqueologia no Museu Nacional.

     

    BIOARQUEOLOGIA NO BRASIL: MUSEU NACIONAL E O QUE MAIS?

    A escolha do Museu Nacional como eixo para o início desta história respeita o peso histórico e a cronologia das nossas instituições acadêmicas, porém não exclui os demais.

    No século XIX, outros atores institucionais já mantinham diálogo científico relevante. Alguns deles podem ser lembrados, como o Gabinete de Medicina Legal na Bahia, hoje Instituto Nina Rodrigues, além do Museu Paulista, entre outros. Ao longo do século XX isso foi reafirmado e cresceu, apesar da escassez de especialistas. Antes da década de 1980, os trabalhos com remanescentes humanos já eram desenvolvidos por arqueólogos não especializados. Alguns dedicaram-se com grande interesse: Dorath Pinto Uchoa, a partir da década de 1970, na Universidade de São Paulo (USP), e João Alfredo Rohr, a partir da década de 1950, no Museu do Homem do Sambaqui (MHS), são exemplos. Outro, ainda que do campo biomédico, foi Ernesto Salles Cunha, professor de patologia dentária na Universidade Federal Fluminense (UFF), pioneiro na década de 1960 das análises e interpretações dentárias de escravos, povos de sambaquis e de Lagoa Santa.

    No final dos anos 1970, no Rio de Janeiro, com a criação da primeira graduação em arqueologia no país, como mencionado anteriormente, foram formalizadas disciplinas como a paleopatologia, que somaram à formação tutorial, já oferecida dentro e fora das instituições, dando impulso definitivo à bioarqueologia. Em instituições privadas como o Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), atuaram profissionais dedicados a este campo, como Lília Cheuiche Machado, que além de pioneira em paleodemografia, foi talvez a profissional de sua época que mais atuou em campo, configurando de fato o que propunha a bioarqueologia: registro e interpretação dos remanescentes humanos desde o solo até o laboratório.

    Desde os anos 1980, também o nome de Walter Alves Neves se destacou. Egresso e professor titular da USP, e com uma passagem também no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) entre 1986 e 1992, teve papel modernizador dos estudos morfológicos evolutivos no Brasil. Sua experiência internacional permitiu trazer novas abordagens quantitativas, e com elas novos rumos à antropologia física no Brasil. Ele também coordenou projetos bioarqueológicos pioneiros e de longa duração, que mais tarde passaram a incluir novas escavações em sítios clássicos em Lagoa Santa, além de realizar uma revisão de acervos musealizados. Formou novos profissionais e reuniu equipes e instituições nacionais e internacionais e vem aportando resultados importantes para a área. O seu dinâmico Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH), na USP, é um legado que atua dentro e fora do país, tendo papel na formação de profissionais como Mark Hubbe, Pedro da Glória, André Strauss, Danilo Bernardo, entre outros, e hoje sendo coordenado por sua ex-aluna Mercedes Okumura.

    No Museu de Arqueologia e Etnologia da (MAE-USP), instituição destacada também pelas suas coleções de remanescentes humanos, atuam hoje os bioarqueólogos Veronica Wesolowski e André Strauss. Sucedendo arqueólogos que também atuavam em antropologia física, o grupo novo de especialistas vem formando e realizando pesquisas em bioarqueologia. Outras instituições do Brasil, dotadas de coleções de ossos humanos, como o Museu Arqueológico do Sambaqui de Joinville (MASJ), interagem com os centros formadores de bioarqueólogos, tais como o Museu Nacional, proporcionando novas oportunidades de trabalho.

    No campo das especialidades, alguns grupos de formação biomédica se destacaram. O Laboratório de Paleoparasitologia da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), completou, em 2019, os 40 anos de estudos de doenças do passado, liderado por Adauto Araújo e Luiz Fernando Ferreira, criadores dessa área no Brasil, quando praticamente nada havia, mesmo no exterior. O grupo formou numerosos profissionais e favoreceu seu desenvolvimento em outros países. Sua coleção científica de amostras de fezes arqueológicas e fossilizadas usadas nos estudos paleoparasitológicos, paleoambientais e paleonutricionais tem hoje cerca de 2000 lotes, recebendo exemplares e propostas de projetos de pesquisa do Brasil e do exterior [8]. Na mesma instituição, Alena Iñiguez, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), pesquisa paleoparasitologia molecular há mais de 15 anos. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), Sidney Santos e Ândrea Santos foram pioneiros da paleogenética humana.

    Mais oportunidades de atuação em paleopatologia, a forte internacionalização de nossa produção, a criação do Paleopathology Meeting in South America (PAMinSA) e a parceria com outros países vêm alavancando a bioarqueologia no Brasil nos últimos 15 anos. Outros grupos e profissionais seguem produzindo em campos especializados. Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por onde passaram diversos profissionais da área, atua hoje Sergio Silva, que orienta e produz em arqueologia funerária e bioarqueologia. Na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Olivia Carvalho orienta e atua em graduação e pós-graduação. Ainda mais, além de São Paulo e Rio de Janeiro, hoje há bioarqueólogos na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Anne Py-Daniel; na Universidade Federal do Piauí (UFPI), Claudia Cunha; na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Jaciara Silva; e na Universidade Federal do Rio Grande (Furg), Danilo Bernardo, mostrando o crescimento e a ampla distribuição dos profissionais na área.

     

    ESTADO DA ARTE: PARA ONDE VAMOS?

    O crescimento da paleopatologia, enquanto precursora da bioarqueologia, foi acelerado. No século XIX contavam-se cerca de 200 publicações em todo o mundo, e nos 30 primeiros anos do século XX chegaram a ser publicados cerca de 600. No Brasil, nos anos 1970, 15% dos trabalhos publicados em arqueologia já eram sobre remanescentes humanos [1]. Desde então a bioarqueologia no Brasil vem ganhando impulso e papel cada vez mais relevante no cenário internacional. Em um novo ciclo de influências acadêmicas, nomes como Della Collins Cook, da Universidade de Indiana, Estados Unidos (EUA), contribuem para a formação e internacionalização de nossos profissionais. Algumas das linhas investigativas que crescem no Brasil são paleogenética, paleodemografia, paleonutrição (isotópica, morfológica, dos cálculos dentários), paleoparasitologia molecular e imunológica, paleopatologia dos traumatismos, indicadores de estresse físico e fisiológico, entre outras. Estudos baseados em imagens, utilizando os recursos de radiografias, tomografias e reconstruções 3D, vêm contribuindo com análises não destrutivas e menos invasivas de ossos, de blocos e de corpos mumificados.

    As escavações cada vez mais instrumentalizadas e minuciosas das estruturas funerárias resultam em sua melhor interpretação tafonômica, ou seja, dos fatores humanos e ambientais que modificam o registro arqueológico, e paleopatológica, que são as marcas das doenças que ocorreram durante a vida do organismo, confirmando a aproximação cada vez mais bem-sucedida entre a biologia humana e a arqueologia. Projetos integrados para abordagem de sítios com remanescentes humanos, como abrigos e lapas de Lagoa Santa (MG), sambaquis como o Jabuticabeira II e o Cubatão I (SC) e o Sernambetiba (RJ) têm enfrentado melhor a experiência interdisciplinar [9], permitindo a obtenção de novos e melhores dados e interpretações bioarqueológicas.

    No campo forense, os profissionais da bioarqueologia têm apoiado cursos e realizado colaborações para a formação de peritos, a atuação pericial e a criação de serviços de antropologia forense das polícias técnicas no Brasil. Essas relações foram iniciadas também no Museu Nacional, onde, em 2009, foi oferecido curso de antropologia forense, do qual participou Douglas Ubelaker, dos EUA, e alunos de diferentes estados e países vizinhos. Essa aproximação desdobrou-se em parcerias com a Polícia Técnica e o Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Bioarqueólogos hoje tomam parte em projetos como o estudo das ossadas de Perus, que busca desaparecidos políticos, e é desenvolvido no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense associado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O trabalho de nossos profissionais em missões do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em diferentes países confirma a competência de bioarqueólogos do Brasil, como Patrícia Fischer.

    O crescimento das coleções musealizadas, e sua revisão, re-análise, datação direta de ossos humanos, análises físicas, químicas e biológicas vem permitindo a produção acelerada de dados. As pesquisas de campo renovam as questões a serem respondidas e novas hipóteses bioculturais têm surgido. Em arqueologia, dados concretos, provenientes de campos antes desconhecidos, como por exemplo o consumo de carboidratos pelos pescadores pré-históricos, mudam interpretações de décadas que acreditavam que essas populações eram unicamente pescadoras. A adoção de coletas oportunas ou sistemáticas, valorizando registros não visíveis em bioarqueologia, tais como sedimentos coletados da pélvis do esqueleto que podem conter DNA de parasitos, produz dados, mas também novos tipos de amostras, para um futuro em que mais e mais inovações técnicas contribuirão para desvendar o passado.

    Protegidos pela mesma regulação de acesso aos sítios e outros bens arqueológicos, os ossos humanos podem por vezes ser encontrados em contextos pouco claros, e cabe à bioarqueologia dirimir situações que podem ser forenses ou arqueológicas. Cabe observar, no entanto, que, ao contrário de outros países, no Brasil tem havido pouca mobilização ética relacionada aos achados de remanescentes humanos. Em poucos casos, a partir de mobilização comunitária, decisões conservadoras restringiram escavações e análises de remanescentes humanos, e em nenhum caso houve demanda por repatriamento de material [10]. Ainda assim, o re-sepultamento, a exposição sem exumação, ou a criação de memoriais já acontecem em algumas pesquisas bioarqueológicas no Brasil, tais como no Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro.

    Em 1980, em uma publicação seminal, Jane Buikstra e Della Cook, dos EUA, revendo a trajetória da paleopatologia no mundo, recomendavam a elaboração de sínteses, melhores diagnósticos diferenciais, mais enfoques epidemiológicos, uso dos indicadores de estresse e mais integração com a paleonutrição e outros campos correlatos, o que efetivamente se deu a nível mundial [11]. A partir da década de 1990, com pouca defasagem, e mesmo com o nosso reduzido número de profissionais, começamos a implementar com sucesso essas iniciativas no Brasil e, assim como no resto do mundo, avançamos nesses aspectos.

    Mas alguns desafios ainda devem ser enfrentados para que a pesquisa bioarqueológica floresça mais e melhor no Brasil. Talvez o principal deles seja a necessidade de prover formação mais completa e especializada para, efetivamente, profissionalizar a atuação dos bioarqueólogos, cuja atividade expande-se dos trabalhos em coleções para o campo, tanto em arqueologia como em investigação forense. Formados ainda hoje em cursos de graduação e programas de pós-graduação em diferentes áreas, os profissionais atuando com esqueletos humanos carecem de formação técnica sistematizada e mais densa, que os capacite a atuar no espectro de ações, materiais e situações que o campo oferece. Isso tem sido suprido pela prática prolongada, acompanhando tutores em seu trabalho. Falta um programa com conteúdos específicos e treinamento prático com diferentes especialistas. Como o mercado profissional ainda é incipiente, não se percebe demanda expressiva para lidar com esqueletos humanos, de modo que é frequente a atuação, em tempo parcial, de especialistas em áreas disciplinares afins: geneticistas, químicos, parasitologistas e outros. Mas é necessário aprofundar o conhecimento e a habilidade de analisar a morfologia humana, suas variações normais e não normais, e também os múltiplos aspectos que informam sobre questões e relações bioculturais, a partir de elementos arqueológicos visíveis ou não. É necessário melhorar a condição em que se dá o trabalho interdisciplinar, pois apesar do total interesse e necessidade, ainda falta capacitação para atuação mais qualificada que permita diálogo com os especialistas, de cujos sofisticados laboratórios, métodos e técnicas dependem hoje perguntas e interpretações bioarqueológicas.

    Temos avançado muito em superar as barreiras de integração com a arqueologia, e os arqueólogos, por sua vez, estão cada vez menos afeitos ao delivery de sacos com ossos nas salas dos antropólogos físicos. A relação, antes um tanto hierárquica, vem sendo substituída por projetos em colaboração bem coordenados, cujos resultados têm sido animadores [9]. Entretanto, as escavações de estruturas funerárias, muito demoradas e dispendiosas, demandam equipes de especialistas para, efetivamente, atender ao que a bioarqueologia propõe. Então, esse também é um limite a ser vencido.

    A escassez de publicações especializadas, levando à dispersão da literatura e à necessidade de soluções para a circulação de informações produzidas pelos diferentes grupos e suas experiências profissionais, também prejudica o campo. Ao mirar o lugar da bioarqueologia na literatura científica, fica evidente a necessidade de investimentos. Uma busca de palavras-chave na literatura arqueológica brasileira, por exemplo, ainda permite encontrar facilmente os termos antropologia física e paleopatologia, mas raramente bioarqueologia, o que sinaliza para a demora na incorporação dos conceitos desse campo em outras áreas do conhecimento. No Brasil, embora o fato não impeça o crescimento do campo, certamente compromete a fluidez da informação.

    Um olhar para a literatura de paleoparasitologia entre 1980 e 2009, a partir da tese de doutorado de Cassius Palhano [12], e um levantamento das comunicações em eventos nacionais e internacionais de paleopatologia feito por esta autora mostraram crescimento exponencial da produção nas quatro últimas décadas e confirmaram sua dispersão em veículos de diferentes áreas do conhecimento. Apenas dois grandes periódicos especializados em paleopatologia se apresentam no mercado editorial hoje: International Journal of Osteoarchaeology (IJO) e International Journal of Paleopathology (IJP), acompanhados por edições ligeiras em outros formatos como Paleopathology Newsletter, páginas de grupos, instituições e sociedades, edições isoladas e outras poucas formas através das quais se divulga mundialmente. Tal condição penaliza ainda mais o Brasil, cuja produção encontra pouco espaço para divulgação, tornando seus autores menos competitivos do ponto de vista do produtivismo científico tão valorizado atualmente, configurando uma barreira e desestímulo acadêmico.

    Ainda assim, apoiada num campo científico duro, no poder explanatório teórico e prático das ciências biológicas e médicas, na demonstração empírica, intersubjetivamente testável, no desenvolvimento de tecnologias de laboratório potentes e robustos modelos contemporâneos, a bioarqueologia assumiu, nos últimos anos, posição firme no discurso científico sobre o passado, tanto no Brasil como no exterior.

    Tendo ainda tantos desafios a superar, uma reflexão ampliada sobre o campo da bioarqueologia no Brasil, nossos limites e possibilidades poderá ajudar a organizar mais racionalmente nosso potencial.

    Aqui destaca-se um último desafio, que se coloca também internacionalmente: o processamento, armazenamento e uso da informação científica produzida. Em tempos de acesso aberto à produção, produtos e dados, talvez o Brasil deva antecipar-se e ser mais propositivo. Tal como em outros campos da arqueologia, grandes volumes de informação são gerados na pesquisa bioarqueológica. Grandes quantidades de materiais acumulam-se aguardando análise, e mais e mais inovações técnicas e metodológicas oferecem caminhos para obtenção de dados e interpretações. Para muitos estudos, como em paleoepidemiologia, a perspectiva quantitativa e comparativa é essencial. Macroprocessos relacionados à saúde, trabalho, impacto das condições de vida em geral podem ser desvelados em banco de dados mais robustos. Por outro lado, problemas decorrentes da junção de esqueletos de locais e de períodos muito diferentes para constituir uma amostra mais numerosa prejudica ou distorce os resultados. E, de fato, a procura por séries esqueléticas adequadas para testar hipóteses epidemiológicas está na base do sucesso de muitos estudos. Mas nem só de dados biológicos-antropológicos vivem os bioarqueólogos. Os contextos são fundamentais. A complexidade do conceito de saúde, principalmente em perspectiva populacional, é central em bioarqueologia, e reunir toda a informação necessária para as melhores interpretações é um grande desafio.

    Alguns administradores de bancos de dados em paleopatologia e bioarqueologia já propuseram a centralização das informações para uso coletivo, apesar dos desafios conceituais, metodológicos, éticos, de propriedade e acesso. Depósitos institucionais abertos ao constante crescimento na produção de dados, recebendo consultas e contribuições externas, são idealizados. Mas na prática o desafio de atualizar informações sobre os achados, sua curadoria, técnicas e métodos de estudo em contínuo crescimento, e regular de maneira justa e segura os acessos, vem desafiando as propostas implementadas em diferentes países. Um dos ardorosos defensores dos bancos de dados foi o saudoso Phillip Walker, criador do projeto Western Hemisphere Health, que possibilitou a publicação de The backbone of history [13], livro que contou inclusive com contribuição brasileira de Walter Neves e Veronica Wesolowski, ambos na época na USP. Ainda assim, uma busca feita há cerca de dois anos por esta autora em todas as edições dos periódicos especializados (IJO, IJP) não revelou o uso de dados provenientes dos bancos de dados, nem atendimento à prática de realizar depósito aberto de dados referentes às publicações, sugerindo que os bancos ainda não têm impactado estudos paleoepidemiológicos.

    Em tempos de nuvens digitais, quando o armazenamento dos dados é terceirizado e se dá em espaços quase abstratos, o problema dos repositórios vai além das questões específicas da bioarqueologia. Por outro lado, projetar e manter bases de dados significa esforço institucional considerável. Como em paleopatologia os diagnósticos são geralmente sindrômicos (relativos a sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos cujas causas não puderam ser identificadas), os problemas não resolvidos para identificação, classificação, conceituação, registro e interpretação de traços não normais continuam demandando tempo e até mesmo novos estudos na bancada. Esse foi o caso do escorbuto, cujos questionamentos aos critérios diagnósticos motivaram cursos, debates e coletâneas temáticas no esforço para alcançar consensos. O enfrentamento de aspectos de propriedade, ética e leis, e o dilema das grandes assimetrias de acesso à informação e à produção em pesquisas, por outro lado, dificultam as soluções a nível internacional.

    Estamos de acordo que a difusão de achados, hoje possível através de imagens de alta qualidade, permite compartilhamento de materiais, potencializando ainda mais a formação e o nivelamento de critérios e outras bases do trabalho bioarqueológico. O Paleopathology, por exemplo, é um banco de dados financiado pela província de Bolzano, norte da Itália, apoiado no argumento de que publicizar registros é estratégico e expande mais a atuação na área do que qualquer outra forma de divulgação científica. Constituindo um registro dinâmico e público, o banco de dados recebe imagens, diagnósticos (acompanhados de referências), descrições anatômicas, radiográficas, histológicas, entre outras informações referentes a patologias, anomalias, indicadores de estresse, sinais de processos tafonômicos e outros. Embora as imagens sejam arquivadas por ordem de entrada, o sistema permite diferentes acessos e buscas, seja por localização anatômica, seja por patologia. Apesar de promissores, alguns problemas devem ser resolvidos antes de termos bons bancos de dados. Os aspectos descritivos e a discussão que leva ao diagnóstico e à busca das causas de uma patologia ou síndrome, por exemplo, deveriam constituir capas ou camadas independentes. Talvez o grande desafio seja reforçar a construção conceitual e viabilizar a informação na medida adequada para manter o crescimento do campo. Mas o certo é que, sejam as conexões eficientes, o fluxo em tempo real, o compartilhamento livre (creative commons) ou outras as soluções, o que tem pesado é o difícil pacto ético que permitirá interatuar e avançar de maneira menos desigual.

    Em bioarqueologia, como em todas as áreas do comportamento humano, mais que tudo hoje é necessário humanizar e equilibrar nossos atos, retomar criticamente valores e formas de ser e agir, ajustar a dimensão política desta e outras áreas conexas, conciliar interesses e ser capaz de mediar e organizar o crescimento da bioarqueologia no Brasil. Crescemos relativamente rápido, constituímos um campo e consolidamos um conceito no Brasil. Resta preparar para o futuro.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Souza, A. A. C. M. de. "História da arqueologia brasileira". In: Pesquisas (Antropologia), Instituto Anchietano de Pesquisas, 46, p. 11-47, 1991.

    2. Souza, S. M. F. M de. "Paleopatologia no Brasil: crânios, parasitos e doenças do passado". In: Ferreira, L. F.; Reinhardt, K. J.; de Aráujo, A. J. G. (orgs.). Fundamentos da paleoparasitologia. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 53-68, 2011.

    3. Larsen, C. S. Bioarchaeology. Interpreting behavior from the human skeleton. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press. 2015.

    4. Em 2 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções atingiu o Museu Nacional, destruindo quase todo o acervo que estava em exposição.

    5. Schwarcz, L. M. O espetáculo das raças. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 1993.

    6. Santos, R. V. "Mestiçagem, degeneração e a viabilidade de uma nação: debates em antropologia física no Brasil". In: Maio, M. C.; Santos, R. V. Raça como questão. História, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Faperj, p. 83-108. 2010.

    7. Faria, L. C. Antropologia. Escritos exumados. Dimensões do conhecimento antropológico. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. 2000.

    8. Souza, S. M. F. M. de; Guichon, R, A. "Paleopathology in Argentina and Brazil". In: Buikstra, J. E.; Roberts, C. (eds.). The global history of paleopathology. Pioneers and prospects. Oxford: Oxford University Press, p 229-344.,2012.

    9. Gaspar, M. D.; Souza, S. M. F. M de. Abordagens estratégicas em sambaquis. Erechin: Habilis. 2013.

    10. Souza, S. M. F. M. de. "Brazil", In: Marquéz-Grant, N.; Febiger, L. The Routledge handbook of archaeological human remains and legislation. New York: Routledge, p. 587-594. 2011.

    11. Buikstra, J. E.; Cook, D. C. "Paleopathology. An American account". In: Annual Review of Anthropology, 9, p. 433-476. 1980.

    12. Silva, C. S. P "A produção do conhecimento em paleoparasitologia: uma análise bibliométrica e epistêmica". 2011. Tese de doutorado em saúde pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro.

    13. Steckel, R. H.; Rose, J. C. The backbone of history. Health and nutrition in the Western heminsphere. Cambridge: Cambridge University Press. 2002.