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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.71 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000200012 

    ARTIGOS
    ANTROPOLOGIABIOLÓGICA

     

    História demográfica e evolutiva humana e de outros primatas: contribuições do laboratório de pesquisa fundado por Francisco Mauro Salzano

     

     

    Maria Cátira Bortolini

    Professora titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atual coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM). É também pesquisadora responsável pelo Laboratório de Evolução Humana e Molecular (LEHM)

     

     

    A história do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) teve início com o modesto Laboratório de Drosophila, fundado por Antônio Rodrigues Cordeiro em 1949, na então Faculdade de Filosofia. O pequeno laboratório atraiu alguns jovens estudantes de história natural da época, dentre eles, Francisco Mauro Salzano, que se graduou no ano seguinte, obtendo seu título de doutor na Universidade de São Paulo, em 1955, sob a supervisão de Crodowaldo Pavan. O Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) da UFRGS, por sua vez, teve origem em 1954, graças ao apoio da recém-criada Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), de alguns convidados estrangeiros (William W. Millstead, ecologista, e J. Ives Townsend, geneticista), bem como dos professores Cordeiro, Casemiro Victorio Tondo e do então contratado Salzano. O PPGBM tem hoje nota 7, máxima da Capes, o que denota seu nível de excelência internacional.

    Salzano, que faleceu em 28 de setembro de 2018, deixou um legado que se confunde com a história da ciência brasileira e mundial. Ele foi o autor/co-autor de 1.511 contribuições para a literatura científica (532 artigos, 60 capítulos e 21 livros). Um total de 89 teses e dissertações foram defendidas sob sua supervisão, todas juntas ao PPGBM. Ele foi membro das Academias de Ciências do Brasil e dos Estados Unidos. Recebeu o título de professor emérito da UFRGS e de doutor honoris causa da Universidade Paul Sabatier, França, e da Universidade da Costa Rica. Recebeu dezenas de condecorações, incluindo membro da Ordem Nacional do Mérito Científico na classe da grã-cruz e Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia (ambos do governo federal do Brasil).

    Ainda, Salzano produziu as obras e reflexões oportunas sobre bioética, em tempos que o termo ainda era desconhecido. Por exemplo, na década de 1960, foi um dos poucos especialistas convidados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para elaborar os princípios a serem seguidos em pesquisas genéticas e evolutivas com seres humanos [1, 2]. Esses documentos forneceram diretrizes que inspiraram muitos procedimentos, normativas e leis posteriores, e que incluem: respeito à privacidade dos voluntários, bem como conforto e bem-estar dos mesmos; acesso a serviços médicos, odontológicos e outros serviços biomédicos; explicações claras sobre possíveis desdobramentos da pesquisa e respeito à integridade cultural da população investigada. Continuou se preocupando com a ética nas pesquisas e no avanço de discursos anti-ciência ao longo de sua carreira, como pode ser observado em várias de suas obras [3].

     

     

    As investigações científicas de Salzano começaram com a Drosophila, organismo modelo em genética. Porém, depois de sua passagem pelos Estados Unidos, no laboratório de James V. Neel, seu interesse voltou-se para a genética humana, em especial para os estudos de povos nativos americanos. Nesse contexto, foi fundado o agora chamado Laboratório de Evolução Humana e Molecular (LEHM), ao qual Salzano esteve vinculado até seus últimos dias de vida.

     

    OS ESTUDOS SOBRE A DIVERSIDADE GENÉTICA DOS NATIVOS AMERICANOS

    No LEHM foram e são desenvolvidos estudos que se enquadram em grandes linhas de pesquisa do PPGBM [4], de modo que, por suas dependências, passaram dezenas de estudantes, docentes e servidores. Junto com colaboradores, produziu-se conhecimento inovador e foram publicados centenas de artigos, capítulos e livros científicos, além de material de divulgação. Tendo em vista que seria demasiado longo descrever, mesmo que brevemente, todos os temas de estudos produzidos por membros do LEHM, aqui serão destacados somente alguns deles, com o intuito de ilustrar a abrangência das investigações realizadas e suas relações com a antropologia biológica. O propósito deste texto não é o de fazer uma revisão exaustiva dos assuntos, pois muitos artigos relevantes poderiam ficar de fora das citações. Não obstante, reconhece-se a importância que outros centros de pesquisa no Brasil tiveram e têm na geração do conhecimento universal no contexto da genética histórica, antropológica, evolutiva e em áreas afins, como é o caso do grupo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) liderado por Sérgio Danilo Pena.

    Os primeiros resultados oriundos do LEHM foram publicados nas décadas de 1950-60 e mostravam, pela primeira vez, o padrão geral da diversidade genética, bem como algumas condições genéticas raras, em nativos americanos. Esses estudos (ver revisão em [5]), que na época se utilizavam da variabilidade nos grupos sanguíneos e em outras proteínas (marcadores agora denominados de "clássicos"), revelaram que caçadores-coletores nativos americanos têm menor variabilidade genética dentro das populações e possuem níveis altos de estruturação, ou seja, de diversidade entre populações, quando comparados aos números observados em grupos nativos de outros continentes. Posteriormente, a partir de investigações feitas com o DNA, corroboramos esse padrão geral [6], indicando baixo fluxo gênico e tamanho populacional efetivo pequeno, o que favorece a ação da deriva genética (mudanças devidas a flutuações casuais), pelo menos nos grupos nativos identificados, com base na dieta e hábitos de vida como caçadores-coletores. Nos Andes, por outro lado, o padrão é contrastante, com pouca estruturação, indicando tamanhos populacionais grandes e intenso fluxo gênico [7], compatível com a história da região - onde ainda em tempos anteriores à chegada de Cristovão Colombo, impérios organizados e grandes cidades emergiram [8]. Vale ressaltar que alguns desses grupos caçadores-coletores também desenvolveram algumas práticas agrícolas incipientes, como visto nas roças de mandioca. Não obstante, o padrão genético segue sendo típico de caçadores-coletores.

    Antes da era do DNA, Neel e Salzano [9] também forneceram a descrição do conceito de fissão-fusão, que propõe que fissões (rupturas) em grupos de caçadores-coletores ocorrem ao longo de linhas de parentesco e são mais comumente associadas a tensões sociais. O grupo emergente a partir da fissão, formado normalmente por parentes, pode formar novo aldeamento, juntar-se a outra aldeia ou até mesmo reingressar na aldeia original depois de algum tempo. O conceito foi revisitado cerca de 30 anos depois pelo próprio Salzano [10] e utilizado por nós para explicar os diferentes padrões de dispersão dos grupos falantes de línguas Tupi e Jê, com base nas sequências do DNA mitocondrial (mtDNA) [11]. Demonstramos que os tupis exibiam o padrão clássico de isolamento por distância, enquanto os grupos Jê apresentaram um modo não linear de dispersão. Sugerimos ainda que a memória coletiva (envolvendo as razões que levaram à ruptura, por exemplo) e outros processos culturais seriam fatores determinantes nos eventos de fissão-fusão, estando também indiretamente ligados ao padrão de estrutura genética, evolução e dispersão de populações indígenas caçadores-coletoras da América do Sul.

     

    SELEÇÃO NATURAL, EVOLUÇÃO BIOLÓGICA, POVOAMENTO E COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA

    O papel da seleção natural na história evolutiva dos nativos americanos começou a ser revelado mais recentemente por pesquisadores do LEHM. Por exemplo, em [12] descrevemos que uma mutação no gene ABCA1, que acarreta a presença de uma cisteína na posição 230 da proteína de membrana ABCA1 - ligada ao fluxo de colesterol -, ocorreu na América. Ainda, a alta frequência desta variante (230Cis, do tipo "econômica") na América Central teria tido uma vantagem seletiva durante os períodos de escassez de alimentos experimentados pelos mesoamericanos durante a implementação da agricultura baseada no milho - e a consequente mudança de estilo de vida em direção ao sedentarismo. Hoje, no entanto, tal variante faria parte do repertório genético que confere suscetibilidade à obesidade e às doenças cardiovasculares e metabólicas correlacionadas, devido à vasta oferta de alimentos calóricos e baixa atividade física a que estão sujeitos indivíduos em sociedades urbanas modernas.

    Em outro estudo com genes de metabolismo, observamos frequências significativamente maiores para o alelo econômico rs429358C de APOE em populações nativas caçadores-coletoras, quando comparados com os agricultores andinos [13]. O produto de APOE se constitui num componente fundamental das lipoproteínas de baixa densidade e de um grupo de lipoproteínas de alta densidade. Merece destaque também o estudo em que mostramos que nativos americanos que vivem em uma gama diversa de ambientes compartilham de forma surpreendente a assinatura da seleção positiva em genes codificadores das dessaturases de ácidos graxos (FADS; [14]). Sugerimos que esse achado estaria relacionado à adaptação local ao clima frio e dieta rica em gordura animal que ocorreu na Beríngia, quando ali estiveram, por milhares de anos, os ancestrais de todos os nativos americanos (ver detalhes abaixo).

    Por fim, outro exemplo envolve genes da via do TP53, essenciais na manutenção da integridade do genoma. Nossos estudos mostram que algumas combinações alélicas estariam potencialmente envolvidas na adaptação humana à grande altitude e condições associadas (baixa concentração de O2 e alta radiação UV, por exemplo) encontradas nos Andes [15].

    Em relação à colonização da América, Bonatto e Salzano [16] foram pioneiros no uso de sequências de DNA mitocondrial (mtDNA) para desvendar o papel de Beríngia (território de aproximadamente 1 milhão de km2 que ligava a América e a Ásia e que emergiu devido à diminuição do nível do mar durante o último máximo glacial no Pleistoceno tardio) para a formação do repertório genético exclusivo nativo americano, o que foi corroborado por estudos posteriores também com dados em nível de DNA [17].

    Ainda sobre esse tema, vale destacar os nossos estudos com abordagens interdisciplinares [18, 19], em que discutimos vários aspectos que dificultavam visões integradoras sobre o povoamento inicial da América a partir de diferentes áreas do conhecimento. Desmistificamos a ideia de que os povos do Novo e Velho Mundo permaneceram em isolamento reprodutivo completo após o desaparecimento de Beríngia. A variabilidade da população fundadora, intensa evolução local na Beríngia e dentro do continente americano, além de um baixo porém sistemático fluxo gênico entre a América do Norte e a Ásia (na região do círculo polar ártico) podem explicar a diversidade genética e morfológica dentro do continente americano sem que se recorra a propostas menos parcimoniosas quando se considera uma visão interdisciplinar - já que algumas delas podem fazer sentido para um tipo de evidência (morfologia craniana), mas não para outros (genética e linguística, por exemplo) e vice-versa.

    As trajetórias históricas, culturais, demográficas e evolutivas dos nativos americanos foram alteradas após a chegada dos conquistadores e colonizadores europeus e dos escravos africanos. O impacto dessas grandes migrações, que reuniram de forma voluntária ou forçada povos de diferentes continentes, foi determinante para mudar o curso da história tanto dos nativos americanos quanto dos migrantes. Parte dessa trajetória pode ser revelada com dados genéticos. Pesquisadores do LEHM vêm se dedicando a isso há décadas. Por exemplo, Salzano e Bortolini [8] estimaram que aproximadamente 43 milhões de nativos em diferentes fases de desenvolvimento cultural e demográfico viviam na América Latina no início da conquista europeia. Esse número diminuiu rapidamente como consequência de vários fatores, incluindo epidemias - como a tuberculose, que ainda hoje configura uma importante causa de morbidade e mortalidade entre indígenas -, indicando que esses grupos são particularmente vulneráveis ​​a essa enfermidade [20, 21]. Concomitantemente, com o triste desaparecimento físico e cultural dos povos nativos, houve a emergência de uma sociedade nacional com raízes profundamente mestiças.

    Mesmo com o emprego de marcadores clássicos já era possível ver como o Brasil era heterogêneo e altamente miscigenado, assim como outros países da América do Sul [8], muito além do que se poderia supor olhando traços fenotípicos como a cor da pele. No entanto, os detalhes sobre esse complexo processo foram revelados somente após o advento de estudos no nível do DNA, utilizando tanto marcadores uniparentais, de herança exclusivamente materna (mtDNA) ou paterna (porção não recombinante do cromossomo Y), quanto biparentais, herança autossômica que vem em igual parcela tanto do pai quanto da mãe. Tais estudos revelaram que a miscigenação inicial envolveu principalmente homens europeus e mulheres indígenas, caracterizando o processo como demograficamente assimétrico. Com a chegada dos escravos africanos, mais elementos foram introduzidos nesse cenário. Como resultado observamos que a maioria dos cromossomos Y nas populações brasileiras contemporâneas é de origem europeia, mas uma parcela significativa das linhagens do mtDNA tem origem ameríndia ou africana, um panorama similar com o observado em outros países da América Latina [22].

    Mostramos também que os gaúchos contemporâneos carregam genomas mitocondriais de origem Charrua, um povo nativo dos pampas considerado extinto [23]. Esse achado revelou que a herança Charrua ia além de uma visível presença na tradicional cultura gaúcha, o que despertou intenso interesse na época da publicação, tanto da imprensa leiga quanto de outras áreas do conhecimento. Um bom exemplo é o trabalho de Kent e Santos [24], em que os autores exploraram a articulação entre a pesquisa de ancestralidade genética feita pelos pesquisadores do LEHM e a construção social de identidades no Rio Grande do Sul.

     

    O LEHM E O CANDELA

    Mais recentemente, passamos a participar do Consórcio para Análise da Diversidade e Evolução na América Latina (Candela), implementado em 2011 e executado até os dias de hoje. O Candela envolveu a genotipagem em larga escala de uma amostra constituída por ~7.500 voluntários nascidos em cinco países (Brasil, México, Chile, Peru e Colômbia). Além dos dados genéticos, também foram obtidos fenótipos visíveis dos voluntários (e.g., cor dos olhos, cabelo e pele; forma do crânio, boca e nariz), bem como dados relevantes do ponto de vista sociocultural e histórico. Com isso, dentre outras coisas, temos conseguido identificar novos genes e variáveis associadas à diversidade morfológica normal das populações latino-americanas, sua dinâmica de mestiçagem, além de explorar a percepção individual de pertencimento e se isso muda ou não a partir da informação sobre a ancestralidade genética inferida. Portanto, o projeto Candela constitui-se na mais ambiciosa proposta de investigação, na América Latina, envolvendo análises que buscam desvendar como os genes influenciam a diversidade fenotípica normal, bem como qual seria o impacto da informação biológica no sentimento individual de pertencimento a um determinado grupo socialcultural e o quanto isso pode (ou não) variar ao longo dos países amostrados.

    Vários trabalhos vêm sendo publicados pelas equipes do Candela. Por exemplo, em [25] estimamos a ancestralidade genética de 7.342 voluntários e constatamos que a autopercepção de ancestralidade, de modo geral, está significantemente correlacionada com a ancestralidade inferida com os dados genéticos. No entanto, alguns atributos físicos (por exemplo, cor da pele) exercem forte influência na autopercepção de ancestralidade, constituindo-se em um elemento de confusão. Em outras palavras, a autopercepção pode facilmente não se correlacionar com a ancestralidade genética inferida quando a cor da pele é usada como parâmetro individual de pertencimento. Em outro estudo recente [26], também envolvendo dados do Candela, identificamos novos genes e variantes que afetam a cor da pele, olhos ou cabelos. Além disso, descobrimos que uma das variantes derivadas do gene MFSD12, relacionada à cor de pele e que está presente quase exclusivamente em asiáticos e nativos americanos, foi selecionada na Ásia possivelmente num contexto relacionado à menor radiação solar dessa região comparada com a África subsaariana.

     

    PESQUISAS COM HUMANOS ARCAICOS E PRIMATAS NÃO-HUMANOS

    Além de abordagens demográficas e evolutivas envolvendo as mais variadas populações de Homo sapiens, pesquisas desenvolvidas no LEHM também focam nos chamados humanos arcaicos (Homo neanderthalensis e espécime de Denisova), já extintos, mas cujo genoma é conhecido. Em um trabalho recente, sugerimos que um repertório genético comum vinculado aos sistemas imunológico e comportamental foi mantido por seleção balanceada (tipo de seleção que mantém muitas variantes genéticas) por milhares de anos, tanto em humanos arcaicos como em modernos. A implicação dessa descoberta pode estar ligada ao sucesso evolutivo do gênero Homo, com sua capacidade criativa, o que é fundamental para a descoberta de inovações culturais com impacto adaptativo [27].

    Primatas não-humanos também têm sido alvo de investigações no LEHM. Estudos com espécies de macacos no Novo Mundo (ou Platyrrhini) têm sido realizados buscando conexões entre variações em nível de genoma com aquelas observadas em nível de fenótipo, um dos maiores desafios que as ciências biomédicas têm na atualidade. Normalmente, os estudos dessa natureza são focados em populações humanas e a identificação de variantes em genes que possam estar correlacionadas com a diversidade normal e patológica dentro de nossa espécie. De menos interesse, mas não menos relevante e desafiador, são as investigações que buscam desvendar o perfil genético por trás de traços fenotípicos que caracterizam uma espécie como um todo, ou mesmo um grupo taxonômico maior (gênero, família, ordem etc.). Em outras palavras, como o(s) produto(s) de um gene (ou um grupo deles) e suas variantes se conectam com fenótipos adaptativos encontrados numa determinada espécie ou gênero? Recentemente, mostramos que uma variante do neuro-hormônio ocitocina, o qual modula comportamentos sociais complexos, denominada de Pro8, estava presente em todas as espécies de macacos no Novo Mundo da família Cebidae (micos e saguis) investigadas. Essa variante se diferencia da forma comum de ocitocina (Leu8) encontrada na maioria dos mamíferos placentários pela presença de uma prolina antes de uma leucina na posição oito da cadeia de aminoácidos da ocitocina.

    Descrevemos ainda a variante Val3Pro8, presente em espécies de Saguinus, gênero que também pertence ao clado Cebidae. Espécies da família Pitheciidae, por sua vez, apresentavam duas formas de ocitocina, Ala8 e Thr8, o que definitivamente quebrou o paradigma de que Leu8 estaria presente em todos os mamíferos placentários. Além disso, verificamos que as alterações no receptor dessa molécula estavam com sinal de seleção positiva e estariam coevoluindo com Pro8. Sendo assim, foi possível sugerir que pelo menos algumas das variantes descritas teriam desempenhado um papel chave na trajetória evolutiva bem-sucedida dos cebídeos, caracterizados por terem pequeno porte, partos gemelares, monogamia social e cuidado paterno [28]. Para avançar no conhecimento funcional das potencialmente adaptativas variantes Cebidae8Pro e Saguinus3Val8Pro, conduzimos experimentos in vitro e in vivo. Demonstramos que as variantes adaptativas citadas acima teriam papel chave na dessensibilização de todo o sistema [29]. Para os testes in vivo, as variantes sintetizadas Cebidae8Pro e Saguinus3Val8Pro foram administradas via spray intranasal em 48 casais de ratos WTG (Rattus norvegicus). De acordo com parâmetros e protocolos bem estabelecidos para estudos de comportamento, foi possível observar um aumento do comportamento materno, bem como cuidados paternos incomuns em ratos [29].

     

     

    Outras variantes potencialmente funcionais e com relevância adaptativa para os Platyrrhini foram também encontradas na região promotora do gene do receptor da ocitocina [30], bem como na região codificadora de importante receptor da serotonina, vinculado a canais de cálcio [31]. Como um todo, esses achados indicam que há um repertório genético envolvendo sistemas de neurotransmissores que teriam contribuído para a emergência de fenótipos adaptativos, incluindo comportamentos complexos, em primatas do Novo Mundo.

    Em outro estudo, sugerimos que variantes em genes dos receptores do sistema da ocitocina e de seu neuro-hormônio parálogo, a vasopressina, poderiam estar envolvidos em alterações comportamentais e fisiológicas que são encontradas em espécies de mamíferos placentários domesticadas pelo homem através de seleção artificial, tais como cachorro, gato, cabra, cavalo, porco, dentre outros [32]. Além disso, abordagens que consideram grande profundidade de tempo evolutivo, capazes de resgatar a evolução de famílias inteiras de genes, e o impacto dessas para a emergência de novidades adaptativas, também têm sido empregadas nos estudos conduzidos por equipes do LEHM [33].

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Como mensagem final, posso dizer que a trajetória de sucesso do LEHM como centro de geração do conhecimento e de formação de recursos humanos com potencial multiplicador tem sido possível, por décadas, não somente pela extraordinária generosidade, capacidade intelectual e agregadora de seu fundador, mas também pela inestimável colaboração de milhares de pessoas, incluindo voluntários, estudantes, servidores e docentes da UFRGS e de outros centros de pesquisa no Brasil e exterior. Além disso, o apoio sempre presente das agências de financiamento públicas brasileiras, através das concessões de recursos e bolsas (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico (CNPq), Capes e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), foi de fundamental importância. Desse modo, só posso concluir dizendo que me sinto extremamente afortunada por fazer parte dessa história, esperando que meu trabalho possa fazer jus a ela. Longa vida ao LEHM!

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. WHO. Research in population genetics of primitive groups. World Health Organization, Geneva. 1964.

    2. WHO. Research on human population genetics. World Health Organization, Geneva. 1968.

    3. Salzano, F. M. "Bioethics, population studies, and geneticophobia". In: Journal of Community Genetics, 6, p. 197-200. 2015.

    4. Ver: http://www.ufrgs.br/ppgbm/ensino-e-pesquisa/linhas-de-pesquisa/

    5. Salzano, F. M.; Calegari-Jacques, S. South American Indians: a case study in evolution. Oxford University Press, Oxford. 1988.

    6. Bortolini, M. C.; Salzano, F. M.; Zago, M. A.; Da Silva Júnior, W. A.; Weimer, T. de A. "Genetic variability in two Brazilian ethnic groups: a comparison of mitochondrial and protein data". In: American Journal of Physical Anthropology, 103 (2), p. 147-56. 1997.

    7. Tarazona-Santos, E.; Carvalho-Silva, D. R.; Pettener, D.; Luiselli, D.; De Stefano, G. F.; Labarga, C. M.; Richards O.; Tyler-Smith, C.; Pena, S. D.; Santos, F. R. "Genetic differentiation in South Amerindians is related to environmental and cultural diversity: evidence from the Y chromosome". In: American Journal Human Genetics, 68, p.1485-1496. 2001.

    8. Salzano, F. M.; Bortolini, M. C. Genetics and evolution of Latin American populations. Cambridge: Cambridge University Press. 2002.

    9. Neel, J. V.; Salzano, F. M. "Further studies on the Xavante Indians. X. Some hypotheses-generalizations resulting from these studies". In: American Journal of Human Genetics, 19, p.554-574. 1967.

    10. Salzano, F. M. "The fission-fusion concept". In: Current Anthropology, 50, p.959-959. 2009.

    11. Ramallo, V.; Bisso-Machado, R.; Bravi, C.; Coble, M. D.; Salzano, F. M.; Hünemeier, T.; Bortolini, M. C. "Demographic expansions in South America: enlightening a complex scenario with genetic and linguistic data". American Journal of Physical Anthropology, 150, p. 453-463. 2013.

    12. Hünemeier T.; Gómez-Valdés, J.; Ballesteros-Romero, M.; de Azevedo, S.; Martínez-Abadías, N.; Esparza, M.; Sjøvold, T.; Bonatto, S. L.; Salzano, F. M.; Bortolini, M. C.; González-José, R. "Cultural diversification promotes rapid phenotypic evolution in Xavánte Indians". In: Proceedings of the National Academy of Sciences USA, 109, p. 73-7. 2012.

    13. Reales, G.; Rovaris, D. L.; Jacovas, V. C.; Hünemeier, T.; Sandoval, J. R.; Salazar-Granara, A.; Demarchi, D. A.; Tarazona-Santos, E.; Felkl, A. B.; Serafini, M. A.; Salzano, F. M.; Bisso-Machado, R.; Comas, D.; Paixão-Côrtes, V. R.; Bortolini, M. C. "A tale of agriculturalists and hunter-gatherers: exploring the thrifty genotype hypothesis in native South Americans". In: American Journal of Physical Anthropology, 163, p.591-601, 2017.

    14. Amorim, C. E.; Nunes, K.; Meyer, D.; Comas, D.; Bortolini, M. C.; Salzano, F. M.; Hünemeier, T. "Genetic signature of natural selection in first Americans". In: Proceedings of the National Academy of Sciences USA, 114, p.2195-2199, 2017.

    15. Jacovas, V. C.; Couto-Silva, C. M.; Nunes, K.; Lemes, R. B.; de Oliveira, M. Z.; Salzano, F. M.; Bortolini, M. C.; Hünemeier, T. "Selection scan reveals three new loci related to high altitude adaptation in Native Andeans". In: Scientific Reports, 8, p. 12733, 2018.

    16. Bonatto, S. L.; Salzano, F. M. "A single and early migration for the peopling of the Americas supported by mitochondrial DNA sequence data". In: Proceedings of the National Academy of Sciences USA, 94, p.1866- 1871, 1997.

    17. Skoglund, P.; Mallick, S.; Bortolini, M. C.; Chennagiri, N.; Hünemeier, T.; Petzl-Erler, M. L.; Salzano, F. M.; Patterson, N.; Reich, D. "Genetic evidence for two founding populations of the Americas". In: Nature, 525, p. 104-108, 2015.

    18. González-José R.; Bortolini, M. C.; Santos, F. R.; Bonatto, S. L. "The peopling of America: craniofacial shape variation on a continental scale and its interpretation from an interdisciplinary view". In: American Journal of Physical Anthropology, 137, p. 175-187, 2008.

    19. Bortolini, M. C.; González-José, R.; Bonatto, S. L.; Santos, F. R. "Reconciling pre-Columbian settlement hypotheses requires integrative, multidisciplinary, and model-bound approaches". In: Proceeding of the National Academy of Sciences USA, 111, p. E213-214, 2014.

    20. Ayres, M.; Salzano, F. M. "Tuberculosis survey in Caiapos Indians from Xingu". In: J Bras Doencas Torac, 4, p.24-26, 1968.

    21. Zembrzuski, V. M.; Basta, P. C.; Callegari-Jacques, S. M.; Santos, R. V.; Coimbra, C. E.; Salzano, F. M.; Hutz, M. H "Cytokine genes are associated with tuberculin skin test response in a native Brazilian population". In: Tuberculosis, 90, p. 44-49, 2010.

    22. Salzano, F. M.; Sans, M. "Interethnic admixture and the evolution of Latin American populations". In: Genetics and Molecular Biology, 37, p.151-170, 2014.

    23. Marrero, A. R.; Silva-Junior, W. A.; Bravi, C. M.; Hutz, M. H.; Petzl-Erler,M. L.; Ruiz-Linares, A.; Salzano, F. M.; Bortolini, M. C. "Demographic and evolutionary trajectories of the Guarani and Kaingang natives of Brazil". In: American Journal of Physical Anthropology, 132, p. 301-10, 2007.

    24. Kent, M.; Santos, R. V. "Os charruas vivem nos gaúchos: a vida social de uma pesquisa de resgate genético de uma etnia indígena extinta no sul do Brasil". In: Horizontes Antropológicos, 37, p. 341-372, 2012.

    25. Ruiz-Linares, A; Adhikari, K.; Acuña-Alonzo, V.; Quinto-Sanchez, M.; Jaramillo, C.; Arias, W.; Fuentes, M.; Pizarro, M.; Everardo, P.; de Avila, F.; Gómez-Valdés, J.; León-Mimila, P.; Hunemeier, T.; Ramallo, V.; Silva de Cerqueira, C. C.; Burley, M. W.; Konca, E.; de Oliveira, M. Z.; Veronez, M. R.; Rubio-Codina, M.; Attanasio, O.; Gibbon, S.; Ray, N.; Gallo, C.; Poletti, G.; Rosique, J.; Schuler-Faccini, L.; Salzano, F. M.; Bortolini, M. C.; Canizales-Quinteros, S.; Rothhammer, F.; Bedoya, G.; Balding, D.; Gonzalez-José, R. "Admixture in Latin America: geographic structure, phenotypic diversity and self-perception of ancestry based on 7,342 individuals". In: PLoS Genetics, 10:e1004572, 2014.

    26. Adhikari, K.; Mendoza-Revilla J.; Sohail, A.; Fuentes-Guajardo, M.; Lampert, J.; Chacón-Duque, J. C.; Hurtado, M.; Villegas, V.; Granja, V.; Acuña-Alonzo, V.; Jaramillo, C.; Arias, W.; Lozano, R. B.; Everardo, P.; Gómez-Valdés, J.; Villamil-Ramírez, H.; Silva de Cerqueira, C. C.; Hunemeier, T.; Ramallo, V.; Schuler-Faccini, L.; Salzano, F. M.; Gonzalez-José, R.; Bortolini, M. C.; Canizales-Quinteros, S.; Gallo, C.; Poletti, G.; Bedoya, G.; Rothhammer, F.; Tobin, D. J.; Fumagalli, M.; Balding, D.; Ruiz-Linares, A. "GWAS in Latin Americans highlights the convergent evolution of lighter skin pigmentation in Eurasia". In: Nature Communications, 10, p. 358, 2019.

    27. Viscardi, L. H.; Paixão-Côrtes, V. R.; Comas, D.; Salzano, F. M.; Rovaris, D.; Bau, C. D.; Amorim, C. E. G.; Bortolini, M. C. "Searching for ancient balanced polymorphisms shared between neanderthals and modern humans". In: Genetics and Molecular Biology, 41, p. 67-81, 2018.

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