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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.71 no.2 São Paulo Apr./June 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000200013 

    ARTIGOS
    ANTROPOLOGIABIOLÓGICA

     

    Primatologia e ciências sociais

     

     

    Eliane Sebeika Rapchan

    Antropóloga, doutora em ciências sociais e tem dois pós-doutorados, um em psicologia experimental e outro em evolução humana, ambos pela Universidade de São Paulo (SUP). É docente da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pesquisadora colaboradora do Laboratório de Arqueologia, Antropologia Ambiental e Ecológica da USP .Contato: esrapchan@gmail.com

     

     

    SOBRE HUMANOS E OUTROS PRIMATAS: SEMELHANÇAS E MARCADORES DE DIFERENÇA

    Uma marca do pensamento ocidental é a definição dos marcadores que distinguem a humanidade como uma espécie única. As ciências sociais e humanas constituíram-se, aliás, como disciplinas especializadas em estudar fenômenos tidos como exclusivamente humanos. Ingold [1] já sinalizou o estranhamento das ciências biológicas, considerando seu interesse pela vida de modo geral, frente a uma disciplina como a antropologia sociocultural, dedicada a estudar uma única espécie. Em parte, isso se justificava porque sociabilidade complexa, capacidades cognitivas diversas, deslocamento na postura ereta (bipedia), posse de um cérebro grande em relação ao tamanho corporal (encefalização) e capacidade para produzir e usar ferramentas foram habilidades tidas, até há poucas décadas, como exclusivamente humanas e, mais do que isso, como marcadores de diferença entre humanos e não-humanos.

    Mas esses marcadores têm sido questionados pela primatologia e por outras disciplinas dedicadas ao estudo do comportamento animal. Tanto os dados obtidos através de trabalho de campo quanto as análises que resultam na produção de modelos e de teorias indicam que uma série de atributos, tidos outrora como exclusivamente humanos, estão presentes em outras espécies. Há evidências, por exemplo, da existência de capacidade para fabricação e uso de ferramentas não apenas entre os nossos antepassados hominíneos [2], mas, também, entre alguns outros primatas, como os chimpanzés [3] e os macacos-prego [4]; outros mamíferos, como os golfinhos nariz-de-garrafa [5]; e mesmo entre animais de outros filos, como os corvos [6]. Assim, em relação a esses marcadores, há fortes indícios que as diferenças entre humanos e outras espécies sejam, de fato, graduações ou variações de um mesmo fenômeno desenvolvido independentemente.

    Contudo, fatores como o fortalecimento das relações entre parentes afins (definidos por casamento) baseado na criação de regras de parentesco, o estabelecimento de regras sociais baseadas em diferenças sexuais, na proeminência dos anciãos na tomada de decisões que afetam a coletividade, a racionalidade abstrata, a linguagem semântica, o registro gráfico, os mitos, os ritos e a arte estão ausentes tanto das dinâmicas de comportamento dos chimpanzés quanto de nossos antepassados mais distantes [2, 7]. A ocorrência desse conjunto de fenômenos depende da capacidade humana de produzir, elaborar e comunicar símbolos. Essa capacidade simbólica implica certo tipo de inteligência e de sociabilidade capazes de articular duas operações: a abstração e a associação de elementos usados para representar e fixar essa abstração, como ideias, teorias, concepções, imagens e palavras, a fenômenos total ou parcialmente acessíveis aos sentidos e à cognição dos membros de determinado grupo. Fazem parte desse conjunto todas as expressões culturais humanas, desde o jogo de amarelinha até os rituais funerários ou matrimoniais, o uso de colares, coroas ou pintura corporal, a arte desde a Monalisa, a Sagração da Primavera, Romeu e Julieta, o jazz ou o rock, o princípio da roldana, os relógios, foguetes e computadores. A produção de significados é um fenômeno de tipo global e total, ou seja, uma vez ativado invade todo o tipo de fenômeno social. E é provável que a capacidade simbólica seja a única característica genuinamente humana, em outras palavras, devido à ausência de evidências, não se pode afirmar que animais não-humanos, inclusive os chimpanzés, possuam cultura num sentido antropológico [8].

    Quanto à própria linhagem humana, dados consistentes indicam a presença de expressões simbólicas entre Neandertais e Sapiens e não somente entre os humanos comportamentalmente modernos [7]. Contudo, e considerando a extensão desse debate, bem como as imensas dificuldades de contemplá-lo integralmente, serão tratadas aqui apenas as interfaces entre a primatologia e as ciências sociais, considerando humanos e chimpanzés. São critérios dessa escolha: 1) os chimpanzés, juntamente com os bonobos, são a espécie viva com a qual partilhamos o maior número de genes [9]; 2) os chimpanzés são uma "espécie carismática" que provoca a imaginação, sentimentos e reações nos humanos [10]; e 3) exceto os humanos, os chimpanzés são a espécie viva sobre a qual temos o maior volume de dados já acumulados, em que pesem as importantes e fundamentais resoluções legais adotadas por muitos Estados em favor de banir pesquisas invasivas [11]. Os tópicos a seguir tratarão das habilidades partilhadas por humanos e chimpanzés.

     

    BIPEDIA, CÉREBRO GRANDE E USO DE FERRAMENTAS

    Humanos e chimpanzés locomovem-se de formas distintas. A bipedia está presente na linhagem humana há bastante tempo, inclusive entre nossos ancestrais hominíneos mais antigos [2]. Já a locomoção dos chimpanzés é uma combinação entre a braquiação (deslocamento arbóreo que usa principalmente os braços) e uma alternância entre as posturas bípede e quadrúpede em solo [12]. Por isso, eles combinam a possibilidade de andar com quatro ou dois apoios, possibilitando a liberação das mãos, a habilidade para assumir uma postura ereta quando desejado ou necessário. Quais as consequências disso? Ao assumir a postura ereta um chimpanzé pode alterar sua perspectiva sobre o mundo e, consequentemente, pode reposicionar sua cabeça e outros órgãos do sentido. Pode, também, realizar tarefas complexas com as mãos, o que indica tanto a articulação entre o manuseio de objetos e os estímulos cerebrais quanto a lateralização (a preferência por um lado do corpo, o que estimula determinadas regiões do cérebro) [13]. Na linhagem humana, a bipedia possibilitou a liberação das mãos, que posteriormente favoreceu a fabricação e o uso de ferramentas líticas, e está também fortemente relacionada ao aumento do tamanho do cérebro. Como isso se manifesta entre os grandes símios?

    Quando, na década de 1960, Jane Goodall relatou, pela primeira vez, que os chimpanzés selvagens de Gombe, na Tanzânia, usavam ferramentas, o famoso paleoantropólogo Louis Leakey disparou algo como: "Se você estiver certa, precisaremos mudar o conceito de ferramenta, ou precisaremos redefinir o que é humano" [14]. Hoje sabemos que os chimpanzés são uma espécie constituída por ferramenteiros hábeis, tanto na selva quanto em cativeiro. Há, atualmente, registros de que cada população de chimpanzés selvagens fabrica e reproduz, a cada geração, seu próprio kit, que varia de 8 a 22 tipos de ferramentas [3]. Os chimpanzés fabricam ferramentas a partir de plantas (caules, folhas, esponjas), madeira ou pedra. Chamamos estas últimas de ferramentas líticas. Elas chamam a atenção dos pesquisadores porque sua ocorrência é restrita a poucas espécies [3], já que elas são difíceis de transportar (o que demanda habilidades cognitivas específicas) e de manipular. Além disso, elas sobrevivem à passagem do tempo (o que permite o encontro de peças em contexto antigo).

    As habilidades dos chimpanzés em relação ao uso de ferramentas desdobram-se, por sua vez, em pelo menos dois aspectos marcadamente sociais. Um deles corresponde ao reconhecimento de que aproximadamente 50% das ferramentas fabricadas por chimpanzés selvagens atendem à função de obter alimentos [3], enquanto os outros 50% exercem funções sociais. Entre os exemplos de ferramentas voltadas à edibilidade [3] temos segmentos de galhos flexíveis que servem para obter mel e pescar formigas ou cupins; folhas esponjosas são usadas para absorver e beber líquidos; superfícies ásperas de raízes ou cascas de árvores são úteis para extrair sementes que estão em lugares profundos; pedaços de pedra ou madeira tornam-se instrumentos para quebrar ou triturar castanhas e outros alimentos; rochas de formato de projétil que podem ser lançadas para derrubar frutas ou pequenos animais; galhos servem para prospecção de pequenos animais, raízes ou sementes; folhas podem conter líquidos; rochas afiadas podem ser usadas com a função de cunhas, outras sólidas servem como martelos e bigornas para cortar carne, frutas ou raízes e triturar castanhas. Enfim, há uma enorme diversidade de formas e funções.

    Entre as ferramentas usadas com fins sociais temos o uso de galhos com folhas para acenar, bater, chamar a atenção ou convidar para brincar; cipós e galhos fortes e flexíveis servem para balançar, saltar ou mesmo transpor distâncias, fazendo às vezes de pontes; os galhos com folhas também servem para fazer o grooming leaf (catação usando folhas). O grooming é uma prática social muito importante para os chimpanzés e será tratada em detalhes adiante. Chimpanzés selvagens também fabricam camas ou ninhos com folhas e cipós que são dispostos de modo a aproximar familiares ou grupos de afinidade durante o sono, momento em que todos ficam desprotegidos e suscetíveis a ataques. Chimpanzés também usam folhas duplicadas como luvas ou calçados para proteger mãos e pés de superfícies pedregosas ou espinhosas [3].

    Cada uma dessas ferramentas pode, ou não, fazer parte do kit de determinada população de chimpanzés. Cada grupo possui padrões próprios de seleção, fabricação e utilização de objetos. Há debates acerca do papel das variações e pressões ambientais na seleção, contudo, isso não é determinante. As escolhas são resultado da combinação entre preferências e disponibilidade de matéria-prima. Isso tudo sinaliza a importância da interação social e do uso de ferramentas como extensões do próprio corpo. Além disso, permitem-nos saber que, além da complexidade individual e da importância da espécie, cada população de chimpanzés é única em seu modo de vida e que as ameaças sofridas pelos chimpanzés, selvagens ou cativos, ao redor do planeta, implicam o risco de desaparecimento de formas coletivas de vida que são únicas.

    Ao mesmo tempo, é importante enfatizar que tanto a fabricação quanto o uso de ferramentas específicas não são habilidades inatas dos chimpanzés, em que pesem as evidências de que os chimpanzés nasçam com predisposições e capacidades cognitivas para isso. Ou seja, cada filhote aprende com os adultos do seu grupo como e o que fazer, mesmo que os primatólogos não saibam ainda exatamente como isso acontece, dado que mães e seus filhotes isolam-se durante os primeiros meses de vida, o que dificulta muito qualquer observação [15]. De qualquer modo, a forte propensão à vida social e os intensos vínculos constituídos entre filhotes e adultos decorrentes da enorme dependência e fragilidade prolongada dos recém-nascidos e filhotes (neotenia) [15] são fortemente relacionados às habilidades dos chimpanzés como ferramenteiros.

    Descobertas como essas afetaram, sobremaneira, as concepções das ciências sociais sobre a singularidade humana. Aliás, é importante lembrar que, dentre as cerca de 200 espécies de primatas conhecidas, pouquíssimas usam ferramentas [3]. Assim, a emergência do uso de ferramentas não pode mais ser chamada de "hominização". Acredita-se hoje que o antepassado comum partilhado por bonobos e chimpanzés, que viveu no Pleistoceno há aproximadamente 2 milhões de anos[16], provavelmente usava ferramentas feitas de folhas com o intuito de sinalizar, fazer prospecções e cavar, segundo dados moleculares levantados a partir da demografia das duas espécies. Já o uso de ferramentas líticas surgiu independentemente nas duas espécies. Entre os humanos, na África Oriental, durante o Plioceno, há cerca de 3 milhões de anos. Entre os chimpanzés há 200 e 150 mil anos na costa ocidental da África, onde ficam hoje a Guiné, a Costa do Marfim e a Libéria [16]. Contudo, partilhamos com nossos parentes mais próximos a inteligência, a destreza e o discernimento que nos permite retirar algo da natureza, transformá-lo e usá-lo para estender e/ou potencializar as dimensões dos nossos corpos através do uso de ferramentas.

     


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    Contudo, e apesar da grandeza dessas descobertas, é necessário destacar que não é possível aceitar, sob a ótica da antropologia, ao menos até agora, que o conjunto de ferramentas fabricado e usado por chimpanzés selvagens seja chamado de "cultura material" (chimpanzee material culture, segundo McGrew [3]). Isso porque, apesar de o trabalho apresentar um rico inventário das ferramentas produzidas e usadas por chimpanzés, comparando diferentes sítios africanos, a expressão "cultura material" é inadequada.

    Cultura material é, para a antropologia sociocultural, mas também para a história, a geografia e a arqueologia, não exclusivamente o conjunto dos objetos, seus usos, contextos e funções, mas também, e principalmente, a articulação entre tudo isso e seus significados simbólicos definidos através da dinâmica da vida social. Em outras palavras, para essas disciplinas não se trata apenas de considerar matéria-prima, forma, manufatura e características dos usuários, mas também valores, tecnologias dominantes, hierarquias, poder, conhecimento, magia, sagrado, medo e beleza. Esses fatores não são acessórios nem "somente ideias". Ao invés disso, são dimensões socialmente reais para os humanos, carregadas de caráter simbólico. São fatores essenciais que definem a produção e o uso de absolutamente todos os objetos circulantes nos grupos humanos, tanto coletiva quanto individualmente [17].

     

    A COMPLEXA VIDA SOCIAL DOS CHIMPANZÉS: DINÂMICAS DE GRUPO E APRENDIZADO SOCIAL

    A partir do início de 1960, além dos dados sobre uso de ferramentas, começaram também a se acumular dados e relatos sobre o comportamento de chimpanzés em seus habitats africanos originais que, do mesmo modo, impactaram as concepções então vigentes relativas à singularidade humana. Acreditava-se, então, que o humano era o único ser social que não era orientado por instintos. Contudo, a adoção de métodos que contemplam observação prolongada e sistemática coordenada pelo mesmo núcleo de pesquisadores, registro minucioso dos fenômenos associado à identificação dos primatas por nomes, caracterização de grupos e famílias e produção de histórias de vida, originados nas pesquisas sobre chimpanzés, gorilas e orangotangos, tornaram-se prática disseminada nos estudos sobre comportamento de grandes primatas [14,15,18,19], e têm-se estendido para outras famílias, como é o caso do Cebus latino-americano [4].

    Jane Goodall dedica-se desde a segunda metade da década de 1960 aos chimpanzés do Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia. Registrou, pela primeira vez, o uso de ferramentas, a dieta onívora e as práticas de guerra pelos chimpanzés. Christophe Boesch e Edwiges Boesch trabalham desde 1976 na Floresta de Taï, na Costa do Marfim, onde descobriram que chimpanzés não só usam ferramentas, mas também as fabricam. Toshisada Nishida desenvolveu, desde 1965, trabalhos no Parque Nacional das Montanhas Mahale, na Tanzânia, onde fez várias descobertas sobre as dinâmicas coletivas dos chimpanzés [14,15,18,19]. Esses pioneiros da primatologia [14] tiveram uma enorme dificuldade para identificar e reconhecer que os chimpanzés são animais sociais. Inicialmente, eles foram, de fato, descritos como membros de "hordas" caóticas que se agrupavam, periodicamente, para reprodução. Foi Nishida quem primeiro percebeu que a vida social dos chimpanzés selvagens é regida por uma dinâmica de "fusão e fissão" [20]. Isso significa que cada população é constituída por sub-grupos dispersos constituídos por mães e seus filhotes adultos e pequenos, juvenis machos, adultos machos ou por ambos os sexos, que se aglutinam ou dispersam em um território em função de fatores tais como o cuidado dos filhotes, a caça ou a coleta de alimentos, o grooming, a atividade sexual, a presença de predadores etc. [20].

    Na África, as populações de chimpanzés são conjuntos de 19 a 106 indivíduos, formados por machos e fêmeas, que adotam estratégias reprodutivas diversas. Contudo, sempre os machos alfa, ou seja, aqueles com maior status no grupo, têm privilégio em relação às fêmeas que estão no estro (período de ovulação em que as fêmeas estão férteis, sinalizado pela presença de traseiros bem vermelhos e protuberantes). Nishida chamou os agrupamentos de chimpanzés de "unidades de grupo" (unit-group), rebatizados posteriormente para "comunidades" (community) pelos primatólogos ocidentais. A partir de então, o acúmulo dos dados de campo gerou evidências em favor do reconhecimento da organização e complexidade social dos chimpanzés, e da importância destes para o seu pleno desenvolvimento e bem-estar.

    O subgrupo formado por fêmeas e seus filhotes é o mais estável, e os vínculos formados entre eles costumam estender-se até a vida adulta. Machos adultos que possuem afinidades mútuas também formam subgrupos estáveis. Os outros agrupamentos, constituídos na base da interação, da aliança e da atração sexual são mais fluidos [14, 15, 18, 19, 20]. Os vínculos entre machos adultos não aparentados costumam ser mais fortes que entre fêmeas não aparentadas. Esses grupos de machos patrulham as fronteiras e controlam sexualmente as fêmeas, pois um grupo chimpanzé costuma manifestar intensa animosidade contra seus vizinhos de mesma espécie, o que não quer dizer que não haja uma espécie de "sexo na fronteira" para as fêmeas adultas que conseguem burlar a vigilância ou para as fêmeas jovens, geralmente de status social mais baixo, que migram quando atingem a maturidade sexual. Apenas as fêmeas deixam o grupo onde nasceram, o que ocorre quando são juvenis e estão no estro, mas as fêmeas cujas mães possuem alto status social não costumam abandonar seu grupo. O alto status de uma mãe pode também beneficiar seu filhote macho, aumentando suas possibilidades de se tornar alfa. Nesse processo, o comportamento sexual, uma vez classificado como promíscuo e instintivo pelos pesquisadores, passou a ser observado pela ótica das estratégias reprodutivas [14, 15, 18, 19, 20].

    Outro aspecto importante nas dinâmicas sociais dos chimpanzés é o grooming (catação), previamente mencionado [21]. Quando dois ou mais chimpanzés permitem-se tocar uns pelos outros, eles estão se comunicando e expressando informações sobre o tipo de relação existente entre eles. Assim, o grooming assume uma forma muito importante e plástica de comunicação social. Às vezes, expressa hierarquia, em outras cuidado ou camaradagem [22]. O grooming indica, também, o apaziguamento de um conflito ou um momento de relaxamento de um grupo familiar ou de afinidade [23]. Cada população de chimpanzés possui também formas próprias de grooming. Pode ser feito em filas indianas compostas por cinco ou mais indivíduos ou em duplas, de modo que cada indivíduo tem uma das mãos espalmada e a outra livre para fazer a catação. Esse tipo de grooming é chamado de hand clasping grooming (catação com aperto de mão) [23].

    O reconhecimento de chimpanzés como animais sociais possibilitou análises dos grupos sociais pelas chaves da aliança e do conflito, observando a importância do status e das vantagens adquiridas por cada chimpanzé no interior de seu grupo, bem como os ganhos advindos de suas capacidades de dissimular diante dos mais fortes, o potencial para reagir diante do inesperado e a transmissão de conhecimento adquirido aos mais jovens, mediados pelo que os pesquisadores têm chamado de "tradição" [24].

    Essas "tradições" comportamentais, adquiridas durante o processo de desenvolvimento do organismo, são repassadas no interior do mesmo grupo, de geração a geração, e caracterizam-se pela plasticidade, pela estabilidade intragrupal e pela variabilidade e pluralidade intergrupal. Toda essa complexidade e variabilidade levou os primatólogos a pesquisarem como os comportamentos sociais são aprendidos e reproduzidos. Esses processos são chamados de aprendizado social (social learning) [25].

    Os chimpanzés possuem comportamentos, não inatos, repassados por relações ensino-aprendizado intergeracionais, principalmente, mas não exclusivamente, da mãe para seus filhos e filhas [14, 15, 18, 19, 20]. Tais comportamentos variam com relação ao meio ambiente, mas não de modo determinístico, e diferem entre grupos [14, 15, 18, 19, 20]. Estudos sobre aprendizado social são desenvolvidos entre chimpanzés selvagens [15] ou em parques, zoos e laboratórios.

    Em laboratório, as pesquisas sobre aprendizado social permitem aferir as múltiplas habilidades cognitivas dos chimpanzés em relação à capacidade de sinalização com fins de comunicação e suas dimensões correlatas: percepção espacial, representação, linguagem, aprendizado, invenção, desenvolvimento de capacidades classificatórias e numéricas [26].

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

    Diante das semelhanças identificadas entre humanos e outros animais, fica a pergunta: há sentido nas disciplinas especializadas em fenômenos humanos? As controvérsias entre as ciências sociais e as chamadas "ciências duras", entre elas a primatologia, são a expressão da importância de um projeto de conhecimento mais relacional que integre conhecimentos, ao invés de apartá-los. Tanto Latour [27] quanto Ingold [28] nos lembram que as ciências modernas repousam sobre contradições que sugerem que qualquer diálogo é inviável. Contudo, se ousarmos superar os limites positivistas postos pelas fronteiras disciplinares, talvez sejamos capazes de produzir um outro tipo de conhecimento, mais relacional, capaz de se valer dos ganhos resultantes das alianças entre as disciplinas.

    Entretanto, e ao mesmo tempo, é importante reforçar que não se deve atrelar o valor de uma espécie, qualquer que seja ela, a suas semelhanças com os humanos. Cada espécie é única [29] e possui seu valor próprio e incontestável. Qualquer animal não deve se tornar importante porque se parece com os humanos, mas por seu próprio valor como espécie e como ser vivo [30].

    Resta, então, o fenômeno de caráter simbólico mencionado no início deste texto como o provável e único fator que parece, efetivamente, distinguir os humanos dos não-humanos. Mas, afinal, em que consiste o simbólico?

    O fenômeno simbólico, tomado em sua dimensão humana e cultural, é a habilidade que nos permite dar sentidos a fenômenos quaisquer, desde que sejam relevantes para o nosso grupo. Os sentidos simbólicos atrelados à cultura são públicos e coletivos, organizam e constituem toda a vida física, social e mental dos humanos [31]. Estão profundamente articulados a cada prática, a cada comportamento e a cada experiência [28]. As experiências mediadas pelos símbolos afetam nossos sentidos [32] e modificam nossa percepção do mundo, modulam nossas emoções [28] e cristalizam ideias, ou permitem que elas sejam questionadas.

    Além disso, o símbolo tem o potencial de transcender os próprios limites dados por determinados contextos históricos e sociais nos quais uma sociedade está estabelecida. Por isso, muitos símbolos circulam entre sociedades distintas e permanecem apesar de profundas mudanças históricas: seus significados podem ser reinventados. Ainda não temos evidências de que os chimpanzés possuem capacidade simbólica. Essa lacuna pode se dever a falhas nos métodos de pesquisa ou pode ser que o fenômeno não exista mesmo. Isso, contudo, não torna os chimpanzés menos importantes ou fascinantes. Nem o diálogo entre as disciplinas menos necessário.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Ingold, T. "Humanity and animality". In: T. Ingold (ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology, London: Routledge, p. 14-34, 1994.

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    4. Ottoni, E.; Izar, P. "Capuchin monkey tool use: overview and implications". EvolutionaryAnthropology 17, p.171-178, 2008; Mannu, M.; Ottoni, E. 2009. "The enhanced tool-kit of two groups of wild bearded capuchin monkeys in the Caatinga: tool making, associative use, and secondary tools". American Journal of Primatology 71, p.242-251, 2009; Fragaszy, D. M.; Biro, D.; Eshchar, Y.; Humle, T.; Izar, P.; Resende, B.; Visalberghi, E. "The fourth dimension of tool use: temporally enduring artefacts aid primates learning to use tools". Philosophy Transactions of Royal Socicety B 368, p. 20120410, 2013.

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    15. Matsuzawa, T.; Tomonaga, M.; Tanaka, M. Cognitive development in chimpanzees, Tokyo: Spring-Verlag, 2006; Van de Rijf-Plooij, H.; Plooij, F. "Growing independence, conflict and learning in mother-infant relations in free-ranging chimpanzees", Behavior 101(1-3), jan 1987, p. 1-86.

    16. Haslam, M. 2014. "On the tool use behavior of the bonobo-chimpanzee last common ancestor, and the origins of hominine stone tool use". American Journal of Primatology 76(10), 2014, p. 910-918.

    17. O Journal of Material Culture, publicado desde 1996 até o presente, traz artigos que demonstram os sentidos que a cultura material adquire para as ciências sociais. Em português, o dossiê "Repensando objetos, arte e cultura material", publicado na revista Horizontes Antropológicos 17(36), jul-dec 2011, também traz um conjunto representativo de textos sobre o assunto.

    18. Wrangham, R. W.; McGrew, W. C.; de Waal, F. B. M.; Heltne, P. G. (eds.) Chimpanzee cultures, Harvard: Harvard University Press, 1996. McGrew, W.; Marchant, L. F.; Nishida, T. Great ape societies. Harvard: Harvard University Press, 2008.

    19. Boesch, C.; Boesch, H. "Tool use and tool making in wild chimpanzees", Folia Primatologica 54, 1990. Goodall, J. Uma janela para a vida: 30 anos com os chimpanzés da Tanzânia, Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

    20. Blackburn, A.; Mcgrew, W. C. "Fission-fusion in chimpanzees: feeding as a proximal mechanism at gombe". American Journal of Physical Anthropology 20(2), p.19-22, 2014; Hanamura, S. "Fission-fusion grouping". In: Nakamura, M.; Hosaka, K.; Ith, N.; Zamma, K. (eds.) Mahale chimpanzees. 50 years of research. Cambridge: Cambridge University Press, p.106-118, 2015.

    21. Nishida, T.; Mitani, J. C.; Watts, D. P. "Variable grooming behaviours in wild chimpanzees". Folia Primatologica 75, p.31-36, 2004.

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