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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.71 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000200015 

    ARTIGOS
    ANTROPOLOGIABIOLÓGICA

     

    A construção da antropologia biológica na Universidade Federal do Pará e a formação nos "quatro campos"

     

     

    Letícia Morgana MüllerI; Hilton P. SilvaII

    IBioarqueóloga, doutoranda em bioantropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisadora da Scientia Consultoria Científica
    IICoordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia (PPGSAS) da UFPA. Também é coordenador do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Ambiente (Lebios) da mesma instituição

     

     

    "Cada antropólogo que conta sua história pessoal relembra como veio de um outro campo do saber, de uma outra região de seu país, ou de outro" (Correa, 1988).

    Talvez por uma ironia, como coloca Corrêa, a antropologia (uma ciência que estuda o humano) tem em muitos países "tradições antropológicas nacionais fundadas por estrangeiros: Franz Boas nos Estados Unidos, Curt Nimuendaju no Brasil, Bronislaw Malinowski na Inglaterra" [1]. Talvez também faça parte desse "estrangeirismo" a formação frente à disciplina da maioria dos antropólogos no Brasil, principalmente antes da criação dos primeiros programas de pós-graduação, ainda na década de 1960, quando se tinha muitos autodidatas vindos das mais diferentes áreas do saber e que dedicavam seu tempo, entre os afazeres de sua profissão, a estudar o "outro". Entre esses autodidatas estão médicos, naturalistas, dentistas, topógrafos, geógrafos, engenheiros e uma ampla gama de profissões. Nesse conjunto de "não-nativos" na antropologia também estão os autores do presente artigo - uma historiadora de formação inicial, especialista em arqueologia e estudante de bioantropologia; e um médico, biólogo e bioantropólogo por escolha, tal como estiveram os pesquisadores Maria Angélica Motta Maués, Anaíza Vergolino, Raymundo Heraldo Maués, Romero Ximenes Pontes, formados em história e professores que construíram parte significativa da história da antropologia na Universidade Federal do Pará (UFPA), assim como Ana Rita Alves, antropóloga cujas memórias serão utilizadas como base neste artigo.

    O campo da antropologia surgiu no século XVI com a curiosidade de se estudar o homem como uma "máquina" de engrenagens próprias passíveis de serem compreendidas [2]. Esse embrião do que depois viria a ser conhecido como antropologia, sobretudo em seu início, como antropologia física, estava interessado em estudar os aspectos biomecânicos e cognitivos dos seres humanos, a matéria funcionando por si, tendo por epifania a dissecação de cadáveres e a busca por diferenças intrínsecas entre as "raças" que se acreditava existirem então. Com o advento das grandes navegações e os choques culturais consequentes do contato com os grupos nativos dos diversos continentes, a necessidade de explicar e compreender esse "outro" ficou ainda mais forte. No século XVIII, esses estudos começam a tomar corpo de ciência e a ter preocupações cada vez maiores com as explicações sobre as "raças" humanas, suas diferenças e as consequências dos cruzamentos [3]. Linnaeus, em 1735, classifica a espécie humana como um animal, Homo sapiens, e, mais tarde, Linnaeus e Blumenbach (1776) dividem a espécie humana em um total de cinco "raças", de acordo com a geografia, a forma do crânio, a cor da pele e outras características morfológicas, o que levaria à uma ativa busca de crânios de índios americanos e nativos de diversas partes do mundo, configurando uma verdadeira "corrida" pela aquisição de esqueletos de diferentes populações para a formação de coleções [4].

    A antropologia física buscava, sobretudo nos crânios, nos ossos e nas análises morfométricas entender as diversidades visualizadas entre os grupos humanos. Da segunda metade do século XX em diante, a diversidade continua a ser o pano de fundo de todos os estudos antropológicos, porém agora não mais como forma de reificar as diferenças entre as supostas "raças", mas buscando entender de que forma a seleção natural e a cultura fazem com que os seres humanos sejam singulares, como as diferentes sociedades lidam com essas variabilidades e quais os impactos destas no cotidiano dos indivíduos e grupos [5].

    A antropologia nascida no século XVIII teve diferentes desdobramentos, gerando abordagens diversas na Grã-Bretanha, Alemanha, França e Estados Unidos, considerados como os principais países de nascimento da disciplina. No Brasil, embora o início seja concomitante com aqueles países, os desdobramentos se dão bem mais tardiamente [6]. Na segunda metade do século XIX, o Museu Nacional (na época ainda denominado Museu Real) recebeu novos investimentos e consolidou a importância científica da antropologia. Embora não tenha sido o Museu a instituição brasileira a apoiar diretamente Peter Lund em seu trabalho pioneiro paleontológico e antropológico em Lagoa Santa, MG, "lá foram criadas as condições para que a antropologia física florescesse" [7]. O primeiro antropólogo físico do Museu Nacional foi o médico João Baptista de Lacerda, brasileiro pioneiro na descrição dos crânios, tais como os antigos de Lagoa Santa e os mais recentes de índios Botocudos, depositados na coleção do Museu. Lacerda, que lecionou no primeiro curso de antropologia física no Brasil, em 1877, foi também proponente da hipótese de que os indígenas contemporâneos seriam descendentes dos indivíduos dos tempos remotos por ele analisados [7].

    A partir de 1910, poucos anos após a abolição da escravidão no país, verifica-se um crescente interesse pelo tema da miscigenação étnica e de suas relações com a formação do povo brasileiro, tendo a somatometria e a somatologia (abordagem física e métrica do corpo humano) aplicadas aos estudos dos negros, mulatos e dos brasileiros contemporâneos em geral, tornando-se foco de maior interesse, ocupando um espaço de destaque anteriormente dado aos indígenas e coleções arqueológicas [8]. O pesquisador mais influente em antropologia daquele período foi Edgar Roquette-Pinto, médico de formação e etnólogo que, entre outras coisas, participou do Primeiro Congresso Universal de Raças, realizado em Londres, em 1911; organizou o segundo curso de antropologia física no Brasil, em 1926; e presidiu o Primeiro Congresso de Eugenia, em 1929. Roquette-Pinto também se destacou pela ampla atuação nos diversos campos da antropologia, da educação e da divulgação científica.

    Outra figura de destaque, também oriunda do Museu Nacional, foi José Bastos de Ávila, que organizou o terceiro curso de antropologia física, em 1932, publicou o primeiro manual técnico brasileiro de antropologia física, em 1958 [7], além de ter organizado no país, de forma pioneira, o ensino dos métodos quantitativos aplicados à pesquisa antropológica. Bastos de Ávila foi um ferrenho defensor de que as condições de vida, muito mais do que questões ligadas a "raças", influenciavam o crescimento físico e a saúde da população [9].

    Assim como nos Estados Unidos e em outros países, a primeira fase da antropologia no Brasil, compreendendo o período que vai até o final da década de 1950, esteve mais relacionada às produções em museus, com forte influência de um modelo quatro campos (four fields). Neste modelo, a antropologia constitui-se na história biológica da humanidade em todas as suas variedades: a evolutiva, a linguística, a etnológica e a arqueológica [4]. Nesse período, houve uma intensa ação de amadores autodidatas, um forte interesse pela temática indígena e pelo processo de formação da sociedade brasileira, e uma influência relevante da antropologia norte-americana, preocupada com a interdisciplinaridade nas pesquisas.

    Essa abordagem, apesar de predominar no Brasil durante o primeiro período, começou a dar sinais de declínio a partir da Segunda Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), realizada em Salvador, em 1955. Distribuída em sessões sobre arqueologia, antropologia física, linguística, antropologia cultural, aculturação e ensino da antropologia, o encontro exemplifica como os antropólogos definiam a disciplina naquele momento no país. Porém, o índice dos trabalhos apresentados demonstra os interesses e orientações dos pesquisadores naquele momento. Os estudos de etnologia indígena compuseram uma sessão e duas conferências (uma feita por H. Baldus, a outra por Darcy Ribeiro); duas conferências trataram de cultura e personalidade (René Ribeiro) e de aculturação (Egon Schaden). Os temas relacionados à aculturação e à comunidade eram frequentes, mas o contato inter-racial, a possessão, o messianismo e a imigração também receberam destaques. A antropologia física, ainda presente na reunião de 1955, tornou-se cada vez mais rara nessas reuniões, até desaparecer nas décadas seguintes, enquanto as discussões acerca do ensino da antropologia passaram a aparecer com maior frequência desde então nos debates da associação [1].

    Um período de considerável crescimento institucional da antropologia foram as décadas de 1960-70 [6, 10]. Nesse período, percebe-se o declínio da antropologia dos quatro campos e a ascensão da antropologia social e cultural. Porém, alguns museus tradicionais continuaram abrigando o trabalho de antropólogos com abordagens mais amplas. Foi o caso de Herbert Baldus, no Museu Paulista desde 1949, e o de Eduardo Galvão, no Museu Paraense Emílio Goeldi, a partir de 1955, ampliando suas seções de antropologia e com uma hegemônica influência da antropologia norte-americana até o final da década de 1960 [1].

    Na década de 1960, começam a ser implantados os primeiros programas de pós-graduação em antropologia nas universidades federais do Brasil [10]. Nessa década, o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, orientando de Florestan Fernandes, da Universidade de São Paulo (USP), organizou o primeiro curso de especialização em antropologia no Museu Nacional, que teceu críticas às bases antropológicas vigentes no Brasil, sob influência da antropologia dos quatro campos, muito forte nos Estados Unidos e menos utilizada nos países europeus. Houve, então, um movimento no sentido de introduzir discussões mais aproximadas às antropologias britânica e francesa, de cunho mais social, com a teoria da fricção interétnica, em substituição ao paradigma teórico da aculturação [11]. Segundo Raymundo Heraldo Maués, um marco nessa mudança que o autor chama de "paradigma" da antropologia é a VII Reunião Brasileira de Antropologia (ABA) que ocorreu em Belém, PA, em 1966. Para Maués, ficou muito claro a presença de dois grupos se defrontando e interagindo: "O grupo que seguia ainda o paradigma mais antigo da antropologia brasileira culturalista etc., liderada por Charles Wagley e Eduardo Galvão; e o grupo novo que estava surgindo liderado pelo Roberto Cardoso de Oliveira com o paradigma da fricção interétnica" [12].

    A partir dessas novas perspectivas, a participação de bioantropólogos nos encontros da ABA foi diminuindo ainda mais. O encontro da ABA em Belém refletiu as principais preocupações de pesquisa da antropologia brasileira até o momento. O maior eixo das discussões eram as populações indígenas, com uma concentração de interesse em temas como a linguística, as situações de contato, a organização e a estrutura social. Tanto que, em consequência das preocupações de parte dos pesquisadores de etnologia indígena, com propostas de ações mais concretas junto aos agrupamentos humanos da Amazônia, aconteceu, em 1967, em Belém, o curso de extensão universitária "Revisão dos estudos do homem na Amazônia", uma parceria entre UFPA e o Museu Paraense Emílio Goeldi [13].

    Depois da fundação dos programas de pós-graduação nas décadas de 1960/70, à (nova) antropologia cabia enfrentar o mesmo desafio colocado na época aos sociólogos: "analisar, compreender e, assim, transformar a sociedade brasileira" [10]. Aos poucos, a antropologia biológica/física torna-se um campo rarefeito no cenário das pesquisas brasileiras, a arqueologia se aninha nos museus e a antropologia social/cultural se fortalece nos programas de pós-graduação.

     

    A ANTROPOLOGIA FÍSICA NA UFPA

    Para a construção do cenário histórico do ensino da antropologia biológica/física na UFPA, serão utilizadas, principalmente, as informações orais cedidas por seis professores que atuaram a partir das décadas de 1960 e 1970 na instituição, lecionando e pesquisando em antropologia, construindo a história deste campo de pesquisa [14].

    Após o término da Segunda Guerra Mundial, as instituições brasileiras retomaram suas atividades com uma expressiva reestruturação acadêmica. Esse foi um período em que disciplinas de antropologia física e evolução humana foram incluídas nas grades curriculares dos cursos de humanidades, prática que, embora ajudasse a atenuar a dicotomia "biológicas versus humanidades", produzia pouco retorno prático devido à dificuldade em formar pesquisadores habilitados para a dimensão mais biológica da antropologia.

    A antropologia na UFPA nasce no mesmo contexto pós-guerra de outras universidades brasileiras, com o aparecimento dos cursos de graduação em ciências sociais, história e geografia [12]. A antropologia física começou a ser ministrada ainda na década de 1950, no curso de história e geografia, surgido para atender à demanda de formação de professores para atuar no ensino ginasial e secundarista. Em pouco mais de uma década, percebeu-se que história e geografia eram grandes demais para continuarem unidas, e foram separadas, sendo que o novo curso de história passou a ser associado com a antropologia [15].

    Nesse novo curso de história, os alunos tinham contato com duas importantes disciplinas da antropologia: etnografia e etnologia do Brasil e antropologia física. A disciplina de etnografia e etnologia do Brasil era ministrada pelo professor Arthur Napoleão Figueiredo e estava alocada no terceiro ano do curso. Esse professor dispunha de dedicação exclusiva para a universidade. Seu propósito, segundo Anaíza Vergolino, era o de formar uma equipe de antropólogos de diferentes áreas, chegando, inclusive, a adquirir equipamentos para um laboratório de antropologia física, embora tal laboratório nunca tivesse existido fisicamente 16]. Apesar de Figueiredo trabalhar na universidade, havia uma grande interação com o Museu Paraense Emílio Goeldi e, em consequência, uma forte influência da antropologia dos quatro campos dominantes naquela instituição.

    O Laboratório de Antropologia coordenado por Figueiredo levava alunos para fazer pesquisas de campo, desenvolvia pesquisas etnográficas e era atuante nas áreas social e cultural. Uma importante pesquisa desenvolvida foi a de "Batuques de Belém" (manifestação cultural afro-brasileira), em meados da década de 1960, que resultou nas primeiras exposições de religiões de matriz africana (lembrando que até esse período era muito forte a etnografia indígena no Brasil). Naquele momento, no entanto, enquanto Napoleão Figueiredo e seus estudantes se dedicavam mais à consolidação da antropologia social/cultural, a antropologia física "perdia-se pelo caminho".

     

     

    Com a criação do curso de ciências sociais, a disciplina antropologia física foi nele introduzida em meados da década de 1950, sendo chamada apenas de antropologia (ao passo que a disciplina etnologia, naquela época, representava o que hoje reconhecemos como antropologia social). Porém, ainda naquela década, passou a ser chamada de antropologia física e também passou a compor o quadro de disciplinas do curso de história. No entanto, com a reforma universitária do final da década de 1960, a disciplina passou a ser optativa para o curso de história. Seu objetivo era dar noção aos alunos sobre o surgimento do homem, "facilitando, com isto, o entendimento do alunato nos temas sobre diversidade cultural" [17]. A disciplina era ministrada durante a primeira fase do curso, pelo médico ginecologista Armando Bordalo da Silva. As aulas eram quase todas ministradas na Faculdade de Medicina, e a base das atividades eram as discussões sobre "raças e pontos antropométricos" [16].

    Com a criação do curso de ciências biológicas na UFPA, em 1971, a antropologia física também passou a fazer parte do currículo desse curso. Em consequência da aposentadoria de Bordalo, no final da década de 1970, a disciplina ficou sem professor, sendo transferida para o Departamento de Morfologia do então Centro de Ciências Biológicas (atual Instituto de Ciências Biológicas). Essa transferência anunciava, além da mudança de olhar e responsabilidade para com a disciplina, também seu futuro: a saída da grade curricular do curso de história e da área das ciências sociais.

    No Departamento de Morfologia, a disciplina passou a ser ministrada por dois professores de anatomia, com o apoio de professores oriundos do laboratório de genética, em esquema rotativo, o que acarretou uma abordagem extremamente geneticista e anatômica, e pouco antropológica. Em consequência disso, houve uma crescente rejeição dos alunos dos cursos de ciências sociais e história, por não conseguirem acompanhar a programação, por lhes faltar a formação básica na área biológica, e por não identificar a relação entre os seus conteúdos e os das ciências sociais, pressionando os coordenadores de seus cursos para a retirada da antropologia física do currículo [17].

    No ano de 1979, através de concurso para seleção de professor para ministrar antropologia física, ingressou no Centro de Ciências Biológicas a antropóloga Ana Rita Alves, que havia desenvolvido seu mestrado nos Estados Unidos, onde a antropologia dos quatro campos era a norma dos cursos de formação. Lá, apesar de realizar sua pesquisa na área da antropologia cultural/social, teve que dedicar a metade do curso a outro campo, optando, então, pela antropologia física. Para isso teve que frequentar disciplinas na graduação, como anatomia, por exemplo, e sua atuação na antropologia física na UFPA, segundo seu relato, foi por oportunidade de concurso.

    Quando assumiu a cadeira de antropologia física, procurou suavizar a disciplina para que os alunos das ciências sociais e história pudessem se interessar mais pelo assunto. Porém, a partir do primeiro semestre de 1982 a disciplina passou a ser oferecida exclusivamente para o curso de ciências biológicas.

    Segundo alguns dos entrevistados, uma das razões de a antropologia física não ter formado entusiastas na UFPA, a ponto de desaparecer dos cursos de história e geografia e se tornar periférica nas ciências biológicas, foi a falta de exclusividade dos professores que a ministravam. Bordalo não formou uma linha de pesquisa, pois era médico e, paralelamente às atividades da universidade, clinicava em seu consultório [16, 18]. Já Ana Rita sempre trilhou o campo da antropologia social, além de contribuir administrativamente, durante muitos anos, com o Instituto Mamirauá. Algo diferente aconteceu com a genética, por exemplo, que surgiu em um "barraco tosco, cimentado, no fundo deste palacete Jaime Lobato lá na antropologia, com o professor Manoel Aires" [16], médico pediatra que deixou de clinicar para se dedicar integralmente à pesquisa. Segundo Ana Rita Alves [19], o laboratório de genética foi criado dentro do curso de educação, onde tinha uma disciplina que relacionava biologia/genética e educação. Esta disciplina, pontua Romero Ximenes Pontes, servia como uma preparação para pedagogos lidarem com a puericultura, que é o estudo dos cuidados com o ser humano durante o seu desenvolvimento [18].

    Desta forma, o fim da antropologia física na UFPA se deu pela gradual falta de interesse dos professores e a falta de atração de alunos pelo campo, que contava apenas com uma disciplina, enquanto na antropologia cultural havia mais disciplinas e mais colaboradores, pela maior demanda de atuação e formação de antropólogos sociais/culturais [12].

    Maria Angélica Motta Maues, formada em história pela UFPA em 1962, tendo se tornado professora de antropologia nesta universidade logo em seguida, colabora com a ideia exposta acima quando fala que viu a "importância da antropologia física depois, fazendo mestrado, me dedicando a orientar trabalhos, a dar aula e perceber esta relação que a gente não pode deixar de estabelecer" [20].

     

    A RETOMADA DA ANTROPOLOGIA FÍSICA E A CONSTRUÇÃO DA BIOANTROPOLOGIA

    A antropologia física passou por grandes transformações nas décadas de 1950 e 1960, vindo a ser renomeada, principalmente nos EUA, de antropologia biológica [21]. Na UFPA, agora chamada de bioantropologia, o campo retoma o cenário na antropologia somente recentemente, em 2010, com a criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, o primeiro criado no país com a abordagem do modelo dos quatro campos [8, 22]. O processo de construção do primeiro programa de pós-graduação envolvendo a antropologia na UFPA foi longo, iniciando com o curso de especialização em teoria antropológica, em 1986. Este curso contou com a participação de profissionais de diferentes formações, além de ter sido oferecido em parceria com o Museu Paraense Emílio Goeldi. Nesse curso, os alunos tinham contato com disciplinas de linguística, arqueologia, antropologia biológica e social/cultural [17].

    O curso de especialização teve sete edições, cessando com a criação do mestrado em antropologia, em 1994. Abandonado definitivamente o modelo de antropologia dos quatro campos, esse primeiro programa de mestrado voltou-se apenas para a antropologia social/cultural, sendo que, no ano de 2003, ele se juntou ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, formando o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS), que passou a contar também com o curso de doutorado. Este programa possuía duas áreas de concentração: antropologia e sociologia [23]. Mais tarde o programa sofreu novas modificações, tendo o seu nome alterado para Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), tal qual funciona ainda hoje. Naquela época, segundo Maués, "nem se pensava em antropologia dos quatro campos" [12].

    Em 2010, um novo programa de pós-graduação foi implantado na UFPA, com alguns dos docentes oriundos do PPGSA e outros do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, do Instituto de Letras, do Instituto de Ciências Biológicas da UFPA, do Museu Goeldi e do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional/ UFRJ, resgatando a preocupação interdisciplinar da antropologia e orientado no modelo quatro campos [24]. O Programa de Pós- Graduação em Antropologia (PPGA) oferece formação em nível de mestrado e doutorado, e começou com docentes e pesquisas nos quatro campos da antropologia, mas, por limitações em relação ao número de docentes de cada subárea, foram abertos inicialmente apenas três campos, sendo eles antropologia social, arqueologia e bioantropologia [24].

    Nesse programa, a antiga antropologia física, determinista e métrica, que buscava reificar diferenças entre «raças" humanas, passou a apresentar uma nova abordagem, mais abrangente, preocupada em qualificar profissionais para atuar de forma interdisciplinar com a arqueologia, a antropologia social, as ciências sociais e biomédicas. Assim, esses profissionais seriam capazes de contribuir na escavação e investigação de sítios arqueológicos e paleoantropológicos; na interação com pesquisadores interessados nos dispositivos biossociais que originam doenças entre populações tradicionais e grupos vulneráveis, possibilitando o desenvolvimento de políticas públicas para estes temas; em estudos sobre as relações entre biodiversidade e sociodiversidade; em questões relacionadas à ética e bioética das pesquisas envolvendo seres humanos e, também, em perícias na área de antropologia genética e forense [25].

     

     

    A bioantropologia nesse programa de pós-graduação possui duas linhas de pesquisa: antropologia genética e forense; socioecologia da saúde e da doença. Segundo a proposta do programa, a primeira linha tem como propósito investigar a evolução biológica e cultural dos diversos grupos humanos que colonizaram a Amazônia desde seu passado remoto até os dias de hoje, englobando a genética e a bioarqueologia. Ela também propõe estudar a distribuição de genes envolvidos em doenças em populações isoladas e na população em geral, além de realizar estudos na área de antropologia e genética forense. Nesta linha tem sido comum o ingresso de estudantes oriundos da biologia, genética, odontologia e arqueologia.

    A segunda linha de pesquisa, socioecologia da saúde e da doença, busca a compreensão das relações contemporâneas entre populações humanas e o meio ambiente, através de estudos bioantropológicos, e as do passado, através de estudos osteológicos e bioarqueológicos, levando em conta a variabilidade biológica e sociocultural dos povos da região amazônica. Ela investiga também a relação entre as características biológicas e as condições ambientais e socioeconômicas, considerando as maneiras como modificações no meio ambiente (naturais, sociais, econômicas, políticas) afetam a vida e a saúde dos grupos humanos. É muito comum o ingresso nessa linha de estudantes advindos da biologia, nutrição e ciências humanas em geral.

    Em contraste com a década de 1960, percebe-se que na segunda década do século XXI houve um aumento significativo de professores atuando na área de bioantropologia na UFPA. Desde sua criação, o PPGA da UFPA já contou com seis professores, contra apenas um na década de 1960, e difere substancialmente do quadro das pesquisas antropológicas feitas no Brasil, visto que é o único programa de pós-graduação em antropologia a formar profissionais em bioantropologia. O programa já formou oito doutores e oito mestres em bioantropologia ao longo de seus quase dez anos de existência. Durante esse período, foram organizados quatro seminários na área, reunindo alunos da UFPA e pesquisadores de fora da instituição, além de diversas exposições sobre evolução humana, com réplicas de fósseis de hominíneos e instrumentos do acervo da instituição.

    Outra diferença marcante entre o ensino da antropologia física da década de 1960 e da bioantropologia hoje é a dedicação dos profissionais. Enquanto Bordalo dividia sua agenda com aulas e clínica, os docentes que atuam no PPGA têm como compromisso a dedicação e investem na pesquisa e na formação de profissionais para atender às demandas da sociedade. Atualmente, há um programa de qualificação, enquanto anteriormente havia uma disciplina, sem laboratório de pesquisa. E, antes disso, a antropologia social, com o professor Figueiredo, e a arqueologia no Museu Paraense Emílio Goeldi, com Mário Simões, desenvolviam atividades de laboratório e de formação de equipes isoladamente.

    Segundo Ana Rita Alves, a antropologia no Brasil peca, historicamente, pela falta de interdisciplinaridade, pelo baixo número de pesquisas em arqueologia, antropologia física e linguística [19]. Há, atualmente, mais de três dezenas de programas de pós-graduação em antropologia e arqueologia no Brasil. Em sua maioria, os programas são essencialmente voltados para o campo cultural e social, enquanto os estudos de linguística são realizados quase que exclusivamente nos cursos de letras e linguística; a arqueologia é predominantemente realizada em museus, cursos de graduação ou pós-graduação em arqueologia ou como uma vertente da história; enquanto a bioantropologia tem alguns docentes historicamente na USP, no Museu Nacional e, mais recentemente, na UFPA.

    No entanto, não se pode esquecer que o próprio modelo de antropologia dos quatro campos passa por revisões e críticas no âmbito internacional, uma vez que poucos antropólogos conseguem fazer, de fato, uma pesquisa que englobe pelo menos três desses quatro campos [4]. No PPGA da UFPA, apesar de tal orientação explícita, percebe-se ainda certa dificuldade em conectar os campos em pesquisas acadêmicas integradas, geralmente tendendo os pesquisadores/estudantes a se especializar em um campo e cursar apenas as disciplinas que sejam obrigatórias de outros campos.

    Mesmo com os avanços que a proposta de pós-graduação do PPGA representa para a antropologia brasileira, a ponto de se tornar certa referência para os documentos da área na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ainda são muitos os desafios, como o pequeno número de profissionais atuando no campo, as poucas disciplinas oferecidas na bioantropologia e arqueologia, comparadas ao leque da antropologia social/cultural, além do ceticismo de muitos antropólogos sobre as possibilidades efetivas de colaboração entre os campos, o que reflete e reforça o modelo teórico ainda predominante no Brasil.

     

    Notas e referências

    1. Correa, M. "Traficantes do excêntrico: os antropólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 3 (6), p. 79-98, 1988.

    2. Kim, J. H. "Exposição de corpos humanos: o uso de cadáveres como entretenimento e mercadoria". In: Mana, 18 (2), p. 309-348, 2012.

    3. Silva, H. P. "Variabilidade, raça e racismo: conversando sobre a diversidade biocultural humana". In: Beltrão, J. F.; Mastop-Lima, L. (orgs.). Diversidade, educação e direitos: etnologia indígena. Educimet, 53, v. 51/59. Belém: IEMCI, p. 10-25, 2009.

    4. Balée, W. "The four fields model of antropology in the United States". In: Amazônica, 1, p. 28-53, 2009.

    5. Beltrão, J. F.; Schaan, D. P.; Silva, H. P. "Diversidade biocultural: conversas sobre antropologia (s) na Amazônia". In: Gama, J. R.; Leão, A. S. Sociedade, natureza e desenvolvimento. São Paulo: Acquerello, p. 181-208, 2012.

    6. Laraia, R. Os primórdios da antropologia brasileira. Laraia. R.; Almeida, A. W. B de (eds.). Manaus: PNCSA/UEA Edições, 2017.

    7. Mendonça de Souza, S. M. "A paleopatologia no Brasil: crânios, parasitos e doenças do passado". In: Ferreira, L. F. ; Reinhard, K. J. Fundamentosda paleoparasitologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, p. 53-67, 2011.

    8. Gaspar Neto, V.V. "Contributions to a historical review of biological anthropology in Brazil from the second half of the twentieth century". In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências. Humanas, 12 (2), p. 517-533, 2017.

    9. Gonçalves, A. S.; Maio, M. C.; Santos, R. V. "Entre o laboratório de antropometria e a escola: a antropologia física de José Bastos de Ávila nas décadas de 1920 e 1930". In: Boletim do Museu Paraense EmílioGoeldi. Ciências. Humanas, 7(3), p. 671-686, 2012.

    10. Peirano, M. G. "A antropologia como ciência social no Brasil. In: Etnográfica, IV (2), p. 219-232, 2000.

    11. Maués, R. H. "Eduardo Galvão, a crise da UnB e a VII Reunião Brasileira de Antropologia". In: Eckert, C.; Godoi, E. P. (orgs)". In: Homenagens:Associação Brasileira de Antropologia: 50 anos. Blumenau: Nova Letra, p. 343-366, 2006.

    12. Maués, R. H. "Entrevista em 16 de dezembro de 2014". Projeto História da Antropologia na Amazônia. (H. P. Silva, entrevistador), 2014.

    13. Vergolino, A. "ABA, Biota e Goeldi 100 anos: pelos fios da lembrança". In: Leitão, W. M.; Maués, R. H. Nortes antropológicos: trajetos, trajetórias. Belém: Editora Universitária UFPA, p. 15-27, 2008.

    14. Todas as entrevistas foram realizadas entre os anos de 2014 e 2016 e fazem parte do projeto "História da antropologia na UFPA e na Amazônia", coordenado por Hilton P. Silva.

    15. Ricci, M. M. História em um curso regular. Disponível em: http://www.ufpa.br/historia/index.php?option=com_content&view=article&id=2&Itemid=2. 2017 (Acesso em 3 de julho de 2017).

    16. Vergolino, A. "Entrevista em julho de 2016". História da antropologiana Amazônia (H. P. Silva, entrevistador), 2016.

    17. Alves, A. R.. "O ensino da antropologia biológica na Amazônia: uma questão a ser repensada". In: Neves, W. A. Biologia e ecologia humanana Amazônia: avaliação e perspectivas. Belém: MPEG, p. 121-130, 1989.

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    21. Fuentes, A. "The new biological anthropology: bringing Washburn's new physical anthropology into 2010 and beyond—The 2008 AAPA Luncheon Lecture". In: Yearbook of Physical Anthropology, 53, p.

    22. Gaspar Neto, V.V. "Biological anthropology in Brazil: a preliminary overview. Vibrant, 14 (3), p. 1-24, 2017.

    23. Beltrão, J. F. "Histórias e memórias da antropologia em Belém – Pará". In: Eckert, C.; Godoi, E. P. (orgs.). Homenagens: AssociaçãoBrasileira de Antropologia: 50 anos. Blumenau: Nova Letra, p. 367-374, 2006.

    24. Gaspar Neto, V. V. "A outra face do crânio: antropologia biológica no Brasil hoje". Tese de doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 2012.

    25. Para mais informações, acessar http://ppga.propesp.ufpa.br/index.php/br/.