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Ciência e Cultura
versão impressa ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.71 no.2 São Paulo abr./jun. 2019
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000200019
CULTURA
POESIA
Pedro Garcia
Formado em filosofia com doutorado em antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é professor e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis (UCP)
porque a poesia é o dom do espanto amo
as palavras
me enamoro delas antes de saber o que
enunciam
as frases são um mal necessário
enfileiradas em busca de significado
não as amo
já as palavras
orgulhosas de ser
fixadas em paredes
mictórios
bares
luminosas ou mal reproduzidas em
grafites de vida curta
piscam para mim seus olhos cúmplices
* * *
VERDE
verde não consta do dicionário
consta na natureza diz o dicionário
nas folhas
naquilo que teu olho aponta
e não consegue capturar
costurar em letras
etiquetar como se etiqueta
um quadrilátero
***
Confessa palavras teus segredos. Não os
mais íntimos:
os corriqueiros. Os do dia a dia. Confessa
de forma não
envergonhada. Diz o que não dizes a nós
mortais, mas
confabulas com iguais palavras.
Liberta-te de nós com plenitude para que
o ser apareça
na sua expressão nua, enfim plena,
despida de adereços,
em pleno banho.
As berinjelas estão alinhadas. Prontas
para o consumo?
Não. Estão simplesmente alinhadas na
cor que as
particulariza.
Observo a passividade delas à mesa da
cozinha. Não
resistirão à faca nem ao forno. E, no
entanto, curioso!,
não sofrem. Aguardam sem ar de
estoicismo o que as
espera. E proliferam.
Amo as berinjelas porque enfrentam o
corte a chama
sem heroísmo.
***
MARESIA
As ondas escrevem com minúsculas
impedindo a
progressão dos pássaros. Leves, elas
acariciam o mar
e seguem.
Hoje é um dia pleno: nada habita a
serenidade estanque.
Estamos sós no silêncio que se anuncia e
cala: nada
sabemos (a contemplação nos nutre).
Estáticos como as pedras (mas
conscientes dos
movimentos), aguardamos.
***
A METAFÍSICA (EM SENTIDO AMPLO)
Quando preciso colocar para fora os meus
demônios,
corro!
Não para fugir deles (que estão sempre
comigo),
mas para distraí-los.
O INTERIOR DA MULHER
Estás de corpo inteiro:
as temporais, as faciais e as belas carótidas
Logo a seguir, como num desfile
infindável de beldades,
a jugular conduzida pelo tronco venoso
Longo silêncio, um intervalo, um riso
distante:
cheia de bobinas coloridas a aorta
abdominal
Tudo funciona enquanto falas, enquanto
Callas canta,
e eu te fito com este olhar detido
meticuloso
medroso de nada perder
Estás esplêndida nesta foto
com as cubitais radiais a todo vapor
Ilíacas primitivas no recôndito poema
homérico me
recordas com as safenas intactas como na
primeira vez
em que tudo se escondia nas abertas
cavernas ovarianas
Como saciar este touro faminto de
nuvens? Como
alimentar este touro carente de cosmo?
Como saciar
esta fome? Esta infinita carência?
Profundo vácuo, vazio que cava a si
mesmo sem amparo.
Não grito: sangue. Nada a estancar:
apenas este fluir de
véus. E são os véus que me alimentam.
Pare de lacrimejar sussurra o anjo
feminino.
Paro engolindo fel em desesperança.
Pedro Garcia é formado em filosofia com doutorado em antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é professor e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Antes de ter fixado residência no Rio de Janeiro, onde vive atualmente, morou em Florianópolis até os 19 anos. Extrai desta ilha a poética que habita a maioria de seus poemas, como se pode constatar em Y (poemas), livro do qual foram extraídos os poemas que foram selecionados para esta publicação.