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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.71 no.3 São Paulo July/Sept. 2019
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000300017
CULTURA
POESIA
Álvaro Faleiros
Professor livre-docente de literatura francesa na Universidade de São Paulo (USP)
A MUSA DOENTE
Minha musa está soturna
Acordou mal hoje cedo
Teve umas visões noturnas
Anda morrendo de medo
"O anjo tarado e o saci
Te levam a cagar nas calças?
Musinha não fique assim
Papai com jeito ao céu te alça
Ele te quer bem de saúde
Forte e rosada e bem de vida
Acha melhor que você mude
E já pensou numa saída
Comprando um apê em Lisboa
Pois aqui ninguém tá de boa"
VIAJANTES
A tribo profética de olhos ardentes
Segue vagando solta pela estrada
Se entrega à loucura com febre nos dentes
Crê que a humanidade vai ser curada
Os homens com todos seus rifles e tanques
Aos gritos lançaram sua nova cruzada
Decidiram cavar a todo custo um flanco
E já sonham com a vitória da marcha lançada
O Deus da guerra certamente os protegerá
Livrando-os desde já de quaisquer agruras
Já que lutam em nome de Cristo ou Alá
Pelo império familiar das trevas futuras
O GOSTOSÃO NOS INFERNOS
Quando o gostosão desceu aos infernos
Ostentando nos braços tatoos iradas
Um mendigo rindo e de fedor infecto
Encheu-lhe logo a cara de porrada
Exibindo os seus peitinhos tesudos
Bem durinhos todos siliconados
As putinhas que fodera com tudo
Ali morriam de dar gargalhadas
Empregadas acertavam as contas
Gostando de cuspir em sua cara
E o gostosão sem mesmo se dar conta
Tremia qual preso em pau-de-arara
Sua mulher que mil vezes traída
Fingira não ver todos seus excessos
Vendo o rei do gado ali sem saída
Gozou de prazer por sobre seus restos
Um homem de pé em sua armadura
Seguiu calmo segurando o timão
E atravessou o rio de água escura
Desdenhando aquela vil solidão
O CASTIGO DO ORGULHO
Oh meu Deus quanto orgulho
Anda solto por aí
Infinito mergulho
Cego e certo de si
Há o orgulho das cátedras
Que tão altivo reluz
Em teorias críticas
Que à razão nos conduz
Há o orgulho das togas
E de suas sentenças
Que de tão viciosas
Nos infectam as crenças
Há o orgulho do padre
Escolhido por Deus
Onde a fé sempre arde
Nos preceitos dos seus
Há o orgulho do líder
Que dirige o seu povo
Tão refém de seus erros
Que os faria de novo
Há o orgulho do poeta
Que polindo palavras
Arrisca-se profeta
Em sonoras fanfarras
Mas nenhum se iguala
Ao orgulho do ignaro
Que doutrinas exala
Como se fosse catarro
HORROR SIMPÁTICO
Um carro funerário cruza
A estrada do pensamento
Dirigindo vem a musa
De um modo desatento
Olhando os dentes no espelho
Procura um resto de carne
Mas só enxerga o vermelho
De uma casquinha de tomate
Tenta em vão tirar o resto
Entrevado entre os dentes
Repetindo o mesmo gesto
Em vão insistentemente
Mas como já levara o corpo
Ao instituto médico legal
A musa estaciona num posto
E enfim passa o fio dental
SEMPRE O MESMO
De onde vem essa angústia que vitima
Subindo como o mar nas pedras nuas
Depois que o coração fez a vindima
Bem ou mal nossa vida continua
Assim como o sorriso de um menino
Correndo atrevido e irreverente
Entregando-se liberto ao destino
E que cai de cara quebrando os dentes
Oh cega tolice tonta lucidez
Que nos ocupa e que nos atravessa
Melhor seria calar-se de vez
Ou sonhar o ouro de vã recompensa
A morte movendo o fio tênue dos dias
Pela luz sóbria da melancolia
Álvaro Faleiros é professor livre-docente de literatura francesa na Universidade de São Paulo (USP), poeta e tradutor. Como crítico de tradução publicou nos últimos anos: Traduzir o poema (Ateliê, 2012), Mário Laranjeira, poeta da tradução (org. Dobra editorial, 2013), Sereia de papel: visões de Ana Cristina Cesar (org. com Roberto Zular e Viviana Bosi; Eduerj, 2015) e A retradução de poetas franceses no Brasil: de Lamartine a Prévert (com Thiago Mattos; Rafael Copetti, 2018). Como tradutor publicou, entre outros, Latitudes, 9 poetas do Québec (Noroît/Nankin, 2003), Caligramas, de Guillaume Apollinaire (Ateliê/UnB, 2008) e Um lance de dados, de Mallarmé (Ateliê, 2013). Os poemas selecionados fazem parte do livro À flor do mal [transpirações baudelairianas], publicado em 2018 pela editora Selo Demônio Negro.